sexta-feira, outubro 31, 2003 |
Teoria da Conspurcação
Para não variar, o último post editado pela Vareta, está genial.
O sacana arruma em palavras, certas merdas que um gajo nem em pensamentos é capaz de alinhar. Resta-nos por fim elogiá-lo, para que as gajas não nos marginalizem acusando-nos de invejar os dotes literários da já mencionada figura.
Mas eu estou-me a cagar, afinal já tenho namorada.
O que realmente despertou-me atenção no texto foi a curiosidade que ele confessou, em saber o que se passa dentro das casas. Não sei se também repararam mas de há uns tempos para cá, talvez desde que os dois se conheceram, que o Papa tem feito menções à actividade profissional do Vareta. Sem a especificar em concreto, a sua ansiedade em partilhar esse conhecimento com o resto do pessoal sugere que seja algum cargo importante, quiçá com influência nos desígnios do país. A juntar a esse facto, tem sido notória a avidez com que o alentejano tem inquirido o pessoal no que diz respeito a números de telemóvel.
Eu juntei esses factos, isentos de malícia aos olhos dos menos atentos, para os relacionar com o escândalo das escutas que tem assombrado pessoas de bem neste país.
Essas escutas têm sido realizadas a telemóveis de possíveis envolvidos no caso Casa Pia. Para quem não sabe, uma das casas onde foram realizados encontros com menores situa-se em Évora, terra do Papa.
Depreendo daí que possívelmente ele é uma das vítimas. Inclusive, as inúmeras deslocações que realiza à capital levam a crer que está a participar activamente no processo, provavelmente colaborando com a acusação.
Essa vontade de colaborar tem sido tão grande, que agora procura suspeitos em círculos de pessoas que o viam como amigo, nomeadamente na lista do meu pipi. Aconselho vivamente o Menir a acautelar-se pois o seu perfil não o favorece neste caso, é cota, careca, rebarbado e não é do Benfica (o Papa é lampião).
Entretanto a amizade estabelecida com o Vareta, que concluo que afinal ocupa o cargo de Director-Geral do SIS (era um sonho de infância), veio a possibilitar a realização das escutas aos telemóveis entretanto recolhidos.
Concluo portanto que os jantares marcados para este fim-de-semana mais não são que uma cilada, para capturar novos inquilinos para os calabouços da Polícia Judiciária.
Por essa razão, não contem comigo.
Para não variar, o último post editado pela Vareta, está genial.
O sacana arruma em palavras, certas merdas que um gajo nem em pensamentos é capaz de alinhar. Resta-nos por fim elogiá-lo, para que as gajas não nos marginalizem acusando-nos de invejar os dotes literários da já mencionada figura.
Mas eu estou-me a cagar, afinal já tenho namorada.
O que realmente despertou-me atenção no texto foi a curiosidade que ele confessou, em saber o que se passa dentro das casas. Não sei se também repararam mas de há uns tempos para cá, talvez desde que os dois se conheceram, que o Papa tem feito menções à actividade profissional do Vareta. Sem a especificar em concreto, a sua ansiedade em partilhar esse conhecimento com o resto do pessoal sugere que seja algum cargo importante, quiçá com influência nos desígnios do país. A juntar a esse facto, tem sido notória a avidez com que o alentejano tem inquirido o pessoal no que diz respeito a números de telemóvel.
Eu juntei esses factos, isentos de malícia aos olhos dos menos atentos, para os relacionar com o escândalo das escutas que tem assombrado pessoas de bem neste país.
Essas escutas têm sido realizadas a telemóveis de possíveis envolvidos no caso Casa Pia. Para quem não sabe, uma das casas onde foram realizados encontros com menores situa-se em Évora, terra do Papa.
Depreendo daí que possívelmente ele é uma das vítimas. Inclusive, as inúmeras deslocações que realiza à capital levam a crer que está a participar activamente no processo, provavelmente colaborando com a acusação.
Essa vontade de colaborar tem sido tão grande, que agora procura suspeitos em círculos de pessoas que o viam como amigo, nomeadamente na lista do meu pipi. Aconselho vivamente o Menir a acautelar-se pois o seu perfil não o favorece neste caso, é cota, careca, rebarbado e não é do Benfica (o Papa é lampião).
Entretanto a amizade estabelecida com o Vareta, que concluo que afinal ocupa o cargo de Director-Geral do SIS (era um sonho de infância), veio a possibilitar a realização das escutas aos telemóveis entretanto recolhidos.
Concluo portanto que os jantares marcados para este fim-de-semana mais não são que uma cilada, para capturar novos inquilinos para os calabouços da Polícia Judiciária.
Por essa razão, não contem comigo.
Da arbitrariedade
Fui hoje levar o meu veículo automóvel à Inspecção Periódica Obrigatória. Por óbvio excesso de zelo do inspector que me foi designado, reprovou. Vou mais longe, até, e digo: por indesculpável embirração. O cidadão comum, temente a Deus e à Administração Fiscal, devia estar salvaguardado das arbitrariedades destes “pequenos reis”, que se arrogam direitos e autoridade que manifestamente não têm. Pois se o relatório de deficiências e anomalias mal enchia duas páginas, é preciso chegar ao ponto de reprovar, liminarmente, um veículo tão estimado quanto o meu? Mas passo aos factos…
Procedi à inscrição de forma ordeira e educada, e pouco me armei para a moça que me atendeu. Está bem, era um camafeu repelente, mas um homem não pode perder a compostura. Dirigi-me obedientemente ao parque, onde esperei uns minutos pela chamada. Poupo-vos à entediante descrição do processo inspectivo para me concentrar no diálogo final com a vil criatura que me calhou em sorte.
Começou por embirrar com os pneus, e aqui admito ter havido alguma falta de tacto da minha parte, na gestão desta contrariedade. “Os seus pneus estão carecas”, diz ele. “Não senhor, são slicks”(*), atiro eu. “Não brinque comigo. São carecas e já quase têm a tela à mostra”, e eu sei que aqui devia ter desviado a conversa, mas aquele “Olha-m’esta besta ignorante…” saiu-me por instinto (tal como o bocado de expectoração que lhe aterrou no peito) a meio das gargalhadas. Eu vi logo ali que ele ia pegar de ponta comigo. “Além do mais, não são as medidas que estão no livrete”, continua ele. Eu bem lhe tentei explicar as vantagens de um pneu mais largo e de perfil mais baixo, da menor deformabilidade da parede lateral e da vantagem adicional conferida pelo facto de os ter montado um pouco mais para fora, aumentando a via do carro.
- Pois, isso também não pode ser - insiste ele.
- Como não?
- Os pneus não podem sobressair da carroçaria do veículo.
- Mas não sobressaem! A asa é muito mais larga que eles!
- Ainda bem que fala nela. Não bastava ser 15 cm mais larga que a carroçaria, de cada lado, como ainda por cima está 20 cm acima do tejadilho e outro tanto atrás da traseira.
- Mas vocês têm alguma coisa contra a segurança? Não vê que assim tenho muito mais aderência e eficiência no funcionamento da suspensão?
- Falemos, então, de suspensão. O seu carro está demasiado baixo.
- Ai… mas você está-me a gozar? Dá perfeitamente para meter os dedos entre o chassis e o chão!
- Não pode. Além de que, provavelmente, roça com aquele tubo inox de 6 polegadas que você usa como escape (e que também não é legal). E há a questão da panela…
- Qual panela?
- Exactamente. Você retirou todas as panelas.
- Mais potência, mais segurança nas ultrapassagens.
- E o catalizador?
- Tenho-o ali na mala. Quer ver?
- NÃO PODE RETIRAR AS PANELAS E O CATALIZADOR! O CARRO EXCEDE OS LIMITES SONOROS, E DE EMISSÃO DE GASES NEM SE FALA!
- Não é preciso exaltar-se. Está a ser um pouco mal educado.
- (recompondo-se)… e depois há os faróis…
- Até me admirava se você não pegasse com eles…
- Não podem ser roxos.
- Malditos burocratas sem sentido estético. Até com a côr pegam…
- …e não podem apontar horizontalmente para a faixa contrária.
- Ora essa! Assim, os carros que venham em sentido contrário vêem-me muito melhor!
- Acredito que sim. Mas com essa potência que você tem instalada, também não vêem mais nada.
- Ora, só se não fizerem como eu.
- Pois… sabe que também não pode ter os vidros verde garrafa?…
Etc., etc. Sempre a pegar com coisas que eu instalei com o único objectivo de melhorar a segurança, minha e dos restantes condutores. Quem é que, nos dias de hoje, presta atenção quando ouve uma buzinadela normal? Pois fiquem sabendo que também é crime ter uma buzina que toca o “Apita o Combóio”. Até o cuidado com a pintura é censurado! Já um homem não pode pôr faixas de protecção nas portas, para não ficar com aquelas mossas arreliadoras; não-sei-quê que ele pra lá inventou a pegar com os espigões em inox que eu lhe pus. Ora porra, se aquilo fosse de borracha alguém tinha cuidado para não bater?!?
(*) Pneus com a superfície lisa, sem nenhum desenho, usados normalmente em competições de pista com piso sêco.
quinta-feira, outubro 30, 2003 |
PESSOAS E EDIFÍCIOS
Uma das muitas vezes em que se riram de mim foi quando eu disse a quem estava comigo, aqui há uns anos, enquanto esperava pelo autocarro 42 ali ao pé da Travessa das Florindas, que me enchia de curiosidade ao cair da noite, quando se sente que há vida por detrás das portas e das janelas. Lembro-me perfeitamente de ter dito: "Tantas vidas a desenrolarem-se do lado de lá e eu sem saber nada delas". E riram-se. E chamaram-me tontinho, e "vizinho" e cuscuvilheiro e tudo o que bem lhes aprouve. Não guardo ressentimento contra eles. Afinal, todas as contas serão acertadas no juízo final...
A razão do que disse na altura é simples: gosto de pessoas. Ainda não terei chegado à fase "Brigitte Bardot" de preferir os animais, mas gosto mesmo de pessoas. Quantas mais conheço, mais rico me sinto, mais aprendo - e, claro, maiores são as probabilidades de não ter os pés frios no Inverno.
AS ESCADAS
Conhecer alguém é um bocado como subir uma escada pela primeira vez. Nunca se sabe bem o que se vai encontrar quando chegarmos ao fim. E, terminado esse processo, a analogia mantém-se: há escadas que voltamos a subir, há outras que descemos a correr sem vontade de regressar... e também há aquelas em que nos espalhamos ao comprido e esfolamos as mãos e os joelhos.
AS JANELAS
As janelas não servem só para arejar uma casa, deixar a luz entrar e os germes sair. Das janelas podemos olhar para fora - excepto as que dão para saguões infectos. E podemos ver os outros e aprender com eles. Podemos ficar a saber que há uma pedra solta em que alguém tropeçou, um buraco na estrada em que alguém partiu a direcção, que ainda há famílias, que ainda há pais e filhos e que estes hoje em dia ou se chamam Fábios, Igores, Renatas e Sorayas ou se chamam Fredericos, Bernardos, Caetanas e Franciscas (parece-me efeito da República: a distinção social passou dos apelidos para os nomes próprios...). A vida dos outros fascina-me enquanto fonte de aprendizagem e, confesso, enquanto manancial de histórias que podemos amalgamar, despersonalizar e lembrar ou contar.
AS PORTAS
Tenho sempre a esperança de ser positivamente surpreendido de cada vez que abro uma porta. Já tomo uns comprimidos para atenuar isto, mas ainda não resultaram. É-me impossível não fazer um quadro mental do que vou encontrar, conheça ou não o cenário que está do outro lado. Por vezes basta encontrar "tudo na mesma" para ficar satisfeito. Por outras vezes não. Há poucas sensações mais agradáveis - que não envolvam a genitália, pelo menos - do que abrir uma porta e sermos surpreendidos por alguém que nos espera. Esse alguém até nos pode esperar todos os dias, mas a surpresa é sempre renovada (digo eu, que sou um rapazola; quem já tiver muitos anos de surpresa que se manifeste...).
A minha paixão pelos edifícios justifica-se por isto: é lá que as pessoas vivem. E a vida, a minha e a dos outros, é a coisa mais improvável e fascinante que conheço. As escadas, as janelas, as portas, tudo isso são acessos aos outros ("pontres", diria mesmo...). Não levem a mal este deslumbramento infantil por descobrir a cada dia que o mundo não acaba em mim.
Uma das muitas vezes em que se riram de mim foi quando eu disse a quem estava comigo, aqui há uns anos, enquanto esperava pelo autocarro 42 ali ao pé da Travessa das Florindas, que me enchia de curiosidade ao cair da noite, quando se sente que há vida por detrás das portas e das janelas. Lembro-me perfeitamente de ter dito: "Tantas vidas a desenrolarem-se do lado de lá e eu sem saber nada delas". E riram-se. E chamaram-me tontinho, e "vizinho" e cuscuvilheiro e tudo o que bem lhes aprouve. Não guardo ressentimento contra eles. Afinal, todas as contas serão acertadas no juízo final...
A razão do que disse na altura é simples: gosto de pessoas. Ainda não terei chegado à fase "Brigitte Bardot" de preferir os animais, mas gosto mesmo de pessoas. Quantas mais conheço, mais rico me sinto, mais aprendo - e, claro, maiores são as probabilidades de não ter os pés frios no Inverno.
AS ESCADAS
Conhecer alguém é um bocado como subir uma escada pela primeira vez. Nunca se sabe bem o que se vai encontrar quando chegarmos ao fim. E, terminado esse processo, a analogia mantém-se: há escadas que voltamos a subir, há outras que descemos a correr sem vontade de regressar... e também há aquelas em que nos espalhamos ao comprido e esfolamos as mãos e os joelhos.
AS JANELAS
As janelas não servem só para arejar uma casa, deixar a luz entrar e os germes sair. Das janelas podemos olhar para fora - excepto as que dão para saguões infectos. E podemos ver os outros e aprender com eles. Podemos ficar a saber que há uma pedra solta em que alguém tropeçou, um buraco na estrada em que alguém partiu a direcção, que ainda há famílias, que ainda há pais e filhos e que estes hoje em dia ou se chamam Fábios, Igores, Renatas e Sorayas ou se chamam Fredericos, Bernardos, Caetanas e Franciscas (parece-me efeito da República: a distinção social passou dos apelidos para os nomes próprios...). A vida dos outros fascina-me enquanto fonte de aprendizagem e, confesso, enquanto manancial de histórias que podemos amalgamar, despersonalizar e lembrar ou contar.
AS PORTAS
Tenho sempre a esperança de ser positivamente surpreendido de cada vez que abro uma porta. Já tomo uns comprimidos para atenuar isto, mas ainda não resultaram. É-me impossível não fazer um quadro mental do que vou encontrar, conheça ou não o cenário que está do outro lado. Por vezes basta encontrar "tudo na mesma" para ficar satisfeito. Por outras vezes não. Há poucas sensações mais agradáveis - que não envolvam a genitália, pelo menos - do que abrir uma porta e sermos surpreendidos por alguém que nos espera. Esse alguém até nos pode esperar todos os dias, mas a surpresa é sempre renovada (digo eu, que sou um rapazola; quem já tiver muitos anos de surpresa que se manifeste...).
A minha paixão pelos edifícios justifica-se por isto: é lá que as pessoas vivem. E a vida, a minha e a dos outros, é a coisa mais improvável e fascinante que conheço. As escadas, as janelas, as portas, tudo isso são acessos aos outros ("pontres", diria mesmo...). Não levem a mal este deslumbramento infantil por descobrir a cada dia que o mundo não acaba em mim.
quarta-feira, outubro 29, 2003 |
Cruzes! Uma polémica!
Tresli o meu poste e continuo perplexo. Aparentemente, ofendi a Charlotte, que me dedicou extensa reflexão, em que afirma ser eu a personificação de não sei quantos defeitos atávicos dos portugueses, mais alguns que serão exclusivamente meus. Começo por falar daquela que mais mal-estar causa, o suposto insulto que estaria contido na frase “Uma senhora viu nos textos do Pipi uma oportunidade editorial e seduziu-o.”
Ora, tenha paciência, Charlotte. A seguir vai dizer que eu desmascarei o Pipi como sendo o James Cagney? Sugiro-lhe que consulte um dicionário sobre o significado do verbo “seduzir” e o enquadre no sentido figurado dessa frase e das que se lhe seguem. E nada, mesmo nada, do que eu escrevo supõe menor licitude, moral ou lisura da sua parte. Você trabalha em/para uma editora, o Pipi representava uma oportunidade editorial. A 3ª edição em que (creio) já vai o livro demonstra quão acertada foi a sua visão. Não invalida em nada o que eu escrevo, o MEU Pipi, que no contexto deste poste se deve ler como “aquilo que o Pipi representava para mim” (tenho que me lembrar de acrescentar um glossário aos postes), morreu com a sua institucionalização.
A certa altura protesta, dizendo: “Mas afinal qual é problema? Desde quando é que um blogue pertence ao mesmo universo dos livros? E qual é o problema de o autor querer fazer dinheiro com o que escreve?” A argumentação que lhe serve de suporte ao protesto responde à primeira parte. O meu comentário final “Goza a tua fama e os teus proventos, Pipi, que bem os mereces” devia responder à segunda. Devolvo, inteirinho, o protesto: qual é o problema, afinal?
Fala ainda do problema do anonimato, da “inveja colectiva” que lhe vai associada e do “grande medo das pessoas que escrevem este tipo de posts”. E fala provavelmente bem, porque a única referência que faço ao anonimato do Pipi é para destacar que faz todo o sentido na arquitectura do personagem. Qual é o problema, afinal?
Pelo meio temos ainda uma imputação do muito luso espírito do “dantes é que era bom”, defendido com um “É falso que os primeiros textos do Pipi sejam melhores do que os últimos.”, e aqui entramos no domínio da fantasia. Eu afirmei tal coisa? Tem graça, não vi. E mesmo que tivesse dito, não seria um direito meu considerá-los assim, tal como ela considera o contrário? O problema aqui, é simples: eu nunca me atreveria a epitetar a Charlotte de mesquinha, mal agradecida, portuguesa aflita e incapaz de suportar a ideia dos outros serem melhores, por ter uma opinião diferente da minha. Mas é argumento nulo, uma vez que eu não afirmei tal coisa. O que eu afirmo, sim, é que a aura do personagem se esfumou. Em lugar nenhum falo de qualidade, maior ou menor, dos textos.
“O Belo Menir diz que está saudoso de um Pipi que dedicava a sua vida ao blogue e aos outros. Só por isso dedico ao Belo Menir um sólido getalife!” Se quiser a Charlotte fazer o favor de me apontar onde é que digo isto, agradeço. Se não o fizer, dedico-lhe eu, com todo o carinho, um “get a sense of humour, or at least some sense of proportion”. É que pintar-me de mesquinhez, incapacidade de gozar as coisas boas da vida, falta de generosidade, português aflito, incapaz de suportar a ideia de que outros são muito melhores, medíocre, invejoso, medroso, patético, avarento e miserável, além de outras construções imaginativas sempre em termos pouco abonatórios, parece-me excessivo para quem estava feliz e comenta apenas alguém que mete a pata na poça.
Parece-me, também, muitas outras coisas. Mas essas, guardo-as para mim.
Tresli o meu poste e continuo perplexo. Aparentemente, ofendi a Charlotte, que me dedicou extensa reflexão, em que afirma ser eu a personificação de não sei quantos defeitos atávicos dos portugueses, mais alguns que serão exclusivamente meus. Começo por falar daquela que mais mal-estar causa, o suposto insulto que estaria contido na frase “Uma senhora viu nos textos do Pipi uma oportunidade editorial e seduziu-o.”
Ora, tenha paciência, Charlotte. A seguir vai dizer que eu desmascarei o Pipi como sendo o James Cagney? Sugiro-lhe que consulte um dicionário sobre o significado do verbo “seduzir” e o enquadre no sentido figurado dessa frase e das que se lhe seguem. E nada, mesmo nada, do que eu escrevo supõe menor licitude, moral ou lisura da sua parte. Você trabalha em/para uma editora, o Pipi representava uma oportunidade editorial. A 3ª edição em que (creio) já vai o livro demonstra quão acertada foi a sua visão. Não invalida em nada o que eu escrevo, o MEU Pipi, que no contexto deste poste se deve ler como “aquilo que o Pipi representava para mim” (tenho que me lembrar de acrescentar um glossário aos postes), morreu com a sua institucionalização.
A certa altura protesta, dizendo: “Mas afinal qual é problema? Desde quando é que um blogue pertence ao mesmo universo dos livros? E qual é o problema de o autor querer fazer dinheiro com o que escreve?” A argumentação que lhe serve de suporte ao protesto responde à primeira parte. O meu comentário final “Goza a tua fama e os teus proventos, Pipi, que bem os mereces” devia responder à segunda. Devolvo, inteirinho, o protesto: qual é o problema, afinal?
Fala ainda do problema do anonimato, da “inveja colectiva” que lhe vai associada e do “grande medo das pessoas que escrevem este tipo de posts”. E fala provavelmente bem, porque a única referência que faço ao anonimato do Pipi é para destacar que faz todo o sentido na arquitectura do personagem. Qual é o problema, afinal?
Pelo meio temos ainda uma imputação do muito luso espírito do “dantes é que era bom”, defendido com um “É falso que os primeiros textos do Pipi sejam melhores do que os últimos.”, e aqui entramos no domínio da fantasia. Eu afirmei tal coisa? Tem graça, não vi. E mesmo que tivesse dito, não seria um direito meu considerá-los assim, tal como ela considera o contrário? O problema aqui, é simples: eu nunca me atreveria a epitetar a Charlotte de mesquinha, mal agradecida, portuguesa aflita e incapaz de suportar a ideia dos outros serem melhores, por ter uma opinião diferente da minha. Mas é argumento nulo, uma vez que eu não afirmei tal coisa. O que eu afirmo, sim, é que a aura do personagem se esfumou. Em lugar nenhum falo de qualidade, maior ou menor, dos textos.
“O Belo Menir diz que está saudoso de um Pipi que dedicava a sua vida ao blogue e aos outros. Só por isso dedico ao Belo Menir um sólido getalife!” Se quiser a Charlotte fazer o favor de me apontar onde é que digo isto, agradeço. Se não o fizer, dedico-lhe eu, com todo o carinho, um “get a sense of humour, or at least some sense of proportion”. É que pintar-me de mesquinhez, incapacidade de gozar as coisas boas da vida, falta de generosidade, português aflito, incapaz de suportar a ideia de que outros são muito melhores, medíocre, invejoso, medroso, patético, avarento e miserável, além de outras construções imaginativas sempre em termos pouco abonatórios, parece-me excessivo para quem estava feliz e comenta apenas alguém que mete a pata na poça.
Parece-me, também, muitas outras coisas. Mas essas, guardo-as para mim.
BASE
Normalmente sou uma pessoa bastante ligeira. A única profundidade que me preocupa é a das fossas sépticas. Nunca quis medir os meus pensamentos e também já passei a fase em que se aferia com regularidade o tamanho do membro viril. O que quero mesmo é não me aborrecer, ter tempo para aqueles de que gosto e para aquilo de que gosto.
Mas hoje não é um dia como normalmente. Bastou um pequeno susto com a saúde de um familiar e caiu-me em cima o peso extraordinário daquela parte escura do meu cérebro (até prova em contrário penso que tenho um), aquela em que se escondem os medos, os fantasmas, a porção de indizível que julgo que todos temos. É uma massa densa, que nos empurra para um qualquer fundo e que nos tira o chão de baixo dos pés.
Até hoje não perdi quase nada. As dores do que perdi já as calei, mas era capaz de apostar que hoje senti o eco de cada uma delas. O que fiz durante o dia foi feito com um distanciamento estranho, com alguma falta de mim. Só agora, já de noite, sem "outros" que não eu, é que consegui perceber o que sentia. MEDO.
Um medo porventura parvo de perder algum dos alicerces em que me apoio. E um medo, ainda que seja um medo da falta dos outros, é sempre uma expressão de egoísmo. Eu não queria isso. Queria ser capaz de sublimar este sentimento descontando-me da operação.
Normalmente sou uma pessoa ligeira. Estou para a humanidade como o Engelbert Humperdinck está para o cançonetismo - sou uma distração. E vou-me esforçar por ver uma parte boa nisto tudo. Afinal, o melhor da palavra susto é estar tão ligada a alívio, é o facto de acabar precisamente na última letra - assim que se fala de um é porque o mesmo já passou.
Já o medo, esse, é pior. É uma poderosa máquina de lavar em centrifugação acelerada. Aí, meus amigos, uma vez entrados, não há Soflan que nos impeça de desbotar um bocadinho. O que nos vale é o exorcismo da escrita (ou outro) a servir de tinturaria.
Normalmente sou uma pessoa bastante ligeira. A única profundidade que me preocupa é a das fossas sépticas. Nunca quis medir os meus pensamentos e também já passei a fase em que se aferia com regularidade o tamanho do membro viril. O que quero mesmo é não me aborrecer, ter tempo para aqueles de que gosto e para aquilo de que gosto.
Mas hoje não é um dia como normalmente. Bastou um pequeno susto com a saúde de um familiar e caiu-me em cima o peso extraordinário daquela parte escura do meu cérebro (até prova em contrário penso que tenho um), aquela em que se escondem os medos, os fantasmas, a porção de indizível que julgo que todos temos. É uma massa densa, que nos empurra para um qualquer fundo e que nos tira o chão de baixo dos pés.
Até hoje não perdi quase nada. As dores do que perdi já as calei, mas era capaz de apostar que hoje senti o eco de cada uma delas. O que fiz durante o dia foi feito com um distanciamento estranho, com alguma falta de mim. Só agora, já de noite, sem "outros" que não eu, é que consegui perceber o que sentia. MEDO.
Um medo porventura parvo de perder algum dos alicerces em que me apoio. E um medo, ainda que seja um medo da falta dos outros, é sempre uma expressão de egoísmo. Eu não queria isso. Queria ser capaz de sublimar este sentimento descontando-me da operação.
Normalmente sou uma pessoa ligeira. Estou para a humanidade como o Engelbert Humperdinck está para o cançonetismo - sou uma distração. E vou-me esforçar por ver uma parte boa nisto tudo. Afinal, o melhor da palavra susto é estar tão ligada a alívio, é o facto de acabar precisamente na última letra - assim que se fala de um é porque o mesmo já passou.
Já o medo, esse, é pior. É uma poderosa máquina de lavar em centrifugação acelerada. Aí, meus amigos, uma vez entrados, não há Soflan que nos impeça de desbotar um bocadinho. O que nos vale é o exorcismo da escrita (ou outro) a servir de tinturaria.
Requiem pelo MEU Pipi
Já tanto se escreveu sobre o Pipi que corro o risco de apenas ressoar o que já foi dito por quem mais e melhor sabe dizer do assunto. Há, porém, uma razão funda que me conduz irresistivelmente para este lamento público; para quem não saiba, este belogue tem a sua raiz n’O Meu Pipi. Foi de pessoas que se conheceram nos comentários dess’outro belogue e que decidiram continuar em contacto através de uma mailing list que nasceu o porco. É por isso muito o que devemos colectivamente ao Pipi, e eu pretendo saldar a minha dívida hoje.
O Pipi é, basicamente, um tipo com uma ideia. E a ideia dele é escrever, muito e bem, fodas. Não escrever sobre fodas, nem reflectir sobre elas, o amor, as pulsões, as dúvidas, as traições, as obsessões ou tantas outras formas como é, literariamente, embrulhado o sexo. As fodas do Pipi não ilustram, não representam nem acrescentam, não são assunto nem objecto, são a própria matéria da sua escrita. Sendo as fodas a sua escrita, os assuntos são diversos e abordados com mais ou menos subtileza, sempre impregnados de um humor agudíssimo, sempre envolvidos em prosa rendilhada, bastas vezes salpicados de referências discretas que denunciam a sua imensa cultura e literacia. O veículo choca quem não queira ver para lá dele, mas além está um mundo...
O anonimato do Pipi, sem dúvida motivado pelo embaraço que seria assumir estes textos antes da obra ter corpo suficiente para que se tornasse perceptível, acaba por ser uma componente fundamental de toda a trama. É o Zé anónimo que fala como os zés falam, que coça os tomates, que não põe a roupa suja no cesto, que olha para o cu e para as mamas antes de pensar na gaja, mas que não perde a sua dimensão humana complexa no processo.
Recusa frontalmente o politicamente correcto, afronta as figuras públicas da cultura, das artes, da política, dos media, etc., chamando-os pelos nomes. Reduz, cuidadosa e sistematicamente, as mulheres à condição de pitos ou cricas e os homens à de abichanados. O Pipi é um manifesto. Num país em que é raro estar frio ou calor e a maioria dos dias são quentinhos ou frescotes, o Pipi despreza as meias tintas. Assume uma revolta e encena-a tornando-se algo que, estou seguro, odeia: um estilo de gajo que todos nós (re)conhecemos, machista, arrogante, vão e irritante. O Pipi é, nestes tempos em que tanto se fala de Qualidade, uma não-conformidade militante.
Como alguém, um dia, escreveu nos comentários do belogue, os textos do Pipi deviam ser impressos, copiados, escritos nas paredes ou entregues à porta das escolas e das igrejas. Mas o Pipi cedeu à tentação. Uma senhora viu nos textos do Pipi uma oportunidade editorial e seduziu-o. Ele aceitou, dócil. O rebelde penteou-se e vestiu um fatinho, James Cagney não subiu ao Céu em chamas - Top of the world, Ma!... - mas desceu por uma escada com corrimão e agora dedica-se a disparar fulminantes para gáudio da populaça. A sua escrita, em vez de subverter, passou a reverter. A inconformidade enquadrou-se, a revolta parece postiça e, temo-o, acabou-se a frontalidade e o despudor que fizeram d’O Meu Pipi uma das mais entusiasmantes aventuras literárias a que tive o privilégio de assistir (não foram muitas, confesso-o...).
Não foi pela publicação, que mais público não podia ser o Pipi. Estava disponível, 24 horas por dia, para todos. Não foi pela exposição suplementar, porque um blog chega muito mais longe do que um livro. Terá sido apenas pelo prestígio de ter um livro editado? Pelo dinheiro? Será O Meu Pipi, afinal, um meio de curto-circuitar o calvário que conduz à oportunidade de publicar uma obra?
Goza a tua fama e os teus proventos, Pipi, que bem os mereces. Deste-me horas de gozo imenso e será sempre um prazer ler-te neste registo (tenho o livro para me recordar). Mas, lamento dizer-to, tu e a Charlotte mataram o Meu Pipi.
terça-feira, outubro 28, 2003 |
Orgulho Luso - I
Hoje, ao almoço, tive uma revelação. Vou propôr à Unesco que seja concedido o estatuto de Património da Humanidade à muito lusa “Sopa de Feijão com Hortaliça”. Neste caldo, de côr indefinível e consistência quase repugnante, pode estar a salvação da sociedade portuguesa, quiçá até da espécie humana!
Desde já, é um triunfo da reciclagem. Numa SdFcH cabe tudo, desde que se não omita o feijão e a couve, obviamente. A poderosa combinação de odor e travo destes ingredientes disfarça qualquer coisa que se oculte por baixo da película escura e opaca dum prato cheio e fumegante. Seja entrecosto, caroços de maçã, patas de frango ou espinhas de bacalhau, numa SdFcH tudo passa.
Depois, sempre foi uma refeição saudável e completa, muito antes de ter sido inventado e sistematicamente reformulado o conceito de refeição saudável e completa. Tem fartura de proteínas sem origem em carne vermelha, hidratos de carbono, fibras, vitaminas, sais minerais, etc., em proporções quase tóxicas, seguramente muito acima da DDR que tantas mixórdias empacotadas fazem questão de ostentar nas coloridas lombadas. É, por isso, um prato que sempre esteve, e estará, muito à frente do seu tempo, um farol de bons hábitos alimentares nas revoltas vagas das correntes científicas, estéticas ou esotéricas que tentam normar a alimentação. Os franceses inventaram a nouvelle cuisine? E então?, nós a temos a cuisine eternelle.
Há ainda um valor tradicionalista agregador associado a esta maravilha culinária; num tempo em que se sacrifica a saúde, o bem-estar, o lazer, os amigos, enfim, a vida, em nome do emprego, da carreira ou da oportunidade, comer uma SdFcH num prato fundo de loiça branca e espessa, sobre uma toalha aos quadrados e sentado num banco de madeira, daqueles com um furo a meio do assento, dá-nos uma sensação de pertença só igualada, e a custo, pelo beliscão na bochecha que o tio Amaral insiste em dar-nos pelo Natal enquanto nos chama “Tózinho” ou “Nelito”, apesar de já termos 45 anos e andarmos a tentar arranjar maneira de explicar à família, lá na terra, porque é que a nossa filha mais velha tatuou um dragão a côres nas costas sem que nós o percebessemos.
Há depois o sentimento religioso associado à ingestão de uma porção significativa de SdFcH. Fica-se prostrado em extasiada beatitude durante longos minutos, até percebermos que alguma coisa tomou conta do nosso organismo. É nesses momentos que o homem percebe quão pequeno é à face de Deus e de como há coisas na vida maiores que nós, que nos pegam pelo estômago e nos viram do avesso, devolvendo o mais composto e articulado executivo de fato-e-gravata a um estado de incivilidade primevo e impoluto. Bem, impoluto talvez não, mas isso é outra história…
No fundo, a SdFcH é um ícone da portugalidade, de prestígio equiparável à bandeira ou ao hino. Arranquem as flores dos jardins e substituam-nas por ordeiras filas de feijoeiros, ladeadas pelos esguios talos das couves galegas. Pendurem panelões fumegantes às janelas nos feriados nacionais, sirva-se diariamente às crianças e perfilemo-nos todos, em silenciosa continência, na presença de um prato de Sopa de Feijão com Hortaliça.
sábado, outubro 25, 2003 |
Bom fim de semana
Sou presunçoso quanto baste para não necessitar de estímulos que me façam sentir melhor que a generalidade da massa humana. Deixem-me explicar melhor: sou um optimista nato e gosto de Gente, e por essa razão não sinto nenhuma premência especial em comparar-me favoravelmente face ao meus pares. Serve esta introdução-à-laia-de-confissão para vos explicar porque hoje estou bem disposto.
Acabei de ver as notícias, julgo que da SIC. Numa delas falava-se do sr. Carlos Mourato, do seu burro Quarenta Bocas e da cadela (cujo nome não fixei, perdoa-me, perra...), que se fizeram à estrada há uns largos dias, desde Campo Maior até ao Novo Estádio da Luz, por ocasião da inauguração deste, com o confesso desejo de circular no passeio pedonal que o circunda. Podia apelar à minha veia sportinguista para uma biliar destilação sobre os meus adversários de estimação, e até o sr. Carlos Mourato ajudou, dizendo (com alguma graça) que os acessos do estádio eram mais apropriados ao Quarenta Bocas e respectiva carroça do que a automóveis. Mas não farei nenhum comentário acintoso.
Noutra notícia falava-se da encenação que a Editorial Presença preparou no Panteão Nacional para o lançamento da edição portuguesa do 5º volume da saga Harry Potter. Cabe aqui abrir um parêntesis e explicar que tenho para com a J. K. Rowling uma eterna dívida de gratidão; foi graças ao seu Harry Potter que o meu filho aprendeu a ler em quantidade e ganhou o gosto à palavra escrita por oposição às adaptações tele ou cinematográficas das obras. Não tenho qualquer dúvida que a editora dos livros tenha organizado esta festa (que o foi, a fazer fé nas imagens e declarações recolhidas no local) com o fim de promover um pouco mais do seu produto, escudada nas exorbitantes vendas de um milhão de exemplares dos volumes anteriores (em conjunto) e acautelando mais uma taluda que se prevê gorda, mas não vou de forma alguma criticar esta iniciativa publicitária.
Aquilo que me agradou e me pôs em paz com a humanidade nestas duas notícias é de outra monta. Por um lado, temos uma genuína manifestação popular de devoção ao clube e, por tabela, à bola. É um tipo, que não me interessa nada saber se é trabalhador agrícola ou delegado do Ministério Público, que pega no burro e na carroça e, com eles, num bocadinho do seu rural e periférico Campo Maior e ruma à capital para ver o novo estádio do clube do seu coração. Acresce a isto a carga simbólica do tandem burro-carroça vindos da raia alentejana e das evocações de ciganos e contrabandistas que lhe estão indissoluvelmente associadas. É o povo (encenado ou não) e o ritual da bola, nada de milhões, sistemas, árbitros, SAD’s e afins. É povo. É bola. É bonito.
Por outro lado temos uma festa de crianças e adolescentes encenada num dos símbolos da nação, o Panteão Nacional, chão sagrado onde repousam os restos de tantos heróis nacionais. Ainda sou do tempo em que estes fantasmas veneráveis pairavam ominosos e sobre nós lançavam o seu olhar grave e triste, seguros que estávamos de nunca sermos capazes de viver a nossa própria história de forma a honrar minimamente a sua pesada herança. Ontem à noite, este lugar tão impregnado de poeira dourada e de sussurros atemorizados foi palco de uma festa de jovens, que se entretiveram descontraidamente a dar largas à sua devoção a um pequeno herói de papel. Não consta que por tal tenha sido reduzida a importância aos impressionantes feitos dos nossos egrégios avós, e se eu fosse de acreditar em vida além-túmulo estou em crer que teria adivinhado um largo sorriso de satisfação na sua face, aborrecidos que devem andar de morar em tão severa e opressora morada. São jovens. É festa. É bonito.
sexta-feira, outubro 24, 2003 |
MOMUS
Hoje actua em Lisboa, nesse antro que mistura o pior dos fanchonos com as melhores das gajas e que tem nome de sabonete com o qual a Victoria Principal já se lavou por baixo, este cromo acima ilustrado. Momus, Nicholas Currie de seu nome, mulherengo inveterado (hossana!) e poeta genial.
Deixo-vos aqui um exemplo:
Enlightenment
In the 1970s
When everyone could do
Just what they wanted to
Sex was like a handshake between friends
But now that life and death and destiny
Are in you when you're next to me
Tell me that you'll love me 'til the end
And tell me you'll be there
If I ever find
I've only got one kidney left
And tell me you'll be there
When I've only got one eye
And say that you'll be there to care for me
When a wheelchair is my chair
You'll be there upon the day I die
Enlightenment in the nowness of now
All we have is the nowness of now
Enlighten me to the nowness of now
All we have is the nowness of now
In the doctor's surgery
I keep my fingers crossed
Because I know the cost
This test for positivity implies
Still I do this willingly
Because I want to know what I don't want to know
Unthinkable thoughts are thoughts we have to try
So tell me you'll be there
When my head's on backwards
And my skin is turning green
And tell me you'll be there
When my brain has turned to glue
And tell me you'll still be my baby
When my guts are on the floor
And when I'm paralytic will you still be true?
In the eighteenth century
They said "We'll shortly know
All there is to know
All things will be clear to us one day"
Well I'm sick to death of optimism
Sick to death of the shit it drops us in
Will they find a cure for hope? No-one can say
But tell me you'll be there
When I'm knocked out flat
With a drip feed in my arm
And tell me you'll be there
When the swansong starts to fade
And when a life support machine
Supports me in a coma you'll be there
And when I'm just a cabbage save me from the spade
So tell me you'll be there
If I ever find
I've only got one kidney left
And tell me you'll be there
When I've only got one eye
And say that you'll still be my baby
When a wheelchair is my chair
You'll be there upon the day I die
And tell me you'll be there
When my head's on backwards
And my skin is turning green
You'll be there
When my brain has gone to sand
And tell me you'll still be my baby
When my guts are on the floor
And when I'm catatonic
I'll still be your man
Enlightenment in the nowness of now
All we have is the nowness of now
É hoje, às 23h00. Se puderem, vão. A música dele é um bocado como um 2CV, em que, mais do que o carro, o importante é o condutor - e casos (como os carros) assim já são raros.
Hoje actua em Lisboa, nesse antro que mistura o pior dos fanchonos com as melhores das gajas e que tem nome de sabonete com o qual a Victoria Principal já se lavou por baixo, este cromo acima ilustrado. Momus, Nicholas Currie de seu nome, mulherengo inveterado (hossana!) e poeta genial.
Deixo-vos aqui um exemplo:
Enlightenment
In the 1970s
When everyone could do
Just what they wanted to
Sex was like a handshake between friends
But now that life and death and destiny
Are in you when you're next to me
Tell me that you'll love me 'til the end
And tell me you'll be there
If I ever find
I've only got one kidney left
And tell me you'll be there
When I've only got one eye
And say that you'll be there to care for me
When a wheelchair is my chair
You'll be there upon the day I die
Enlightenment in the nowness of now
All we have is the nowness of now
Enlighten me to the nowness of now
All we have is the nowness of now
In the doctor's surgery
I keep my fingers crossed
Because I know the cost
This test for positivity implies
Still I do this willingly
Because I want to know what I don't want to know
Unthinkable thoughts are thoughts we have to try
So tell me you'll be there
When my head's on backwards
And my skin is turning green
And tell me you'll be there
When my brain has turned to glue
And tell me you'll still be my baby
When my guts are on the floor
And when I'm paralytic will you still be true?
In the eighteenth century
They said "We'll shortly know
All there is to know
All things will be clear to us one day"
Well I'm sick to death of optimism
Sick to death of the shit it drops us in
Will they find a cure for hope? No-one can say
But tell me you'll be there
When I'm knocked out flat
With a drip feed in my arm
And tell me you'll be there
When the swansong starts to fade
And when a life support machine
Supports me in a coma you'll be there
And when I'm just a cabbage save me from the spade
So tell me you'll be there
If I ever find
I've only got one kidney left
And tell me you'll be there
When I've only got one eye
And say that you'll still be my baby
When a wheelchair is my chair
You'll be there upon the day I die
And tell me you'll be there
When my head's on backwards
And my skin is turning green
You'll be there
When my brain has gone to sand
And tell me you'll still be my baby
When my guts are on the floor
And when I'm catatonic
I'll still be your man
Enlightenment in the nowness of now
All we have is the nowness of now
É hoje, às 23h00. Se puderem, vão. A música dele é um bocado como um 2CV, em que, mais do que o carro, o importante é o condutor - e casos (como os carros) assim já são raros.
quinta-feira, outubro 23, 2003 |
Mais sobre tabaco
Na lotaria dos disparates, saiu-me hoje um maço engraçado. Caiu, com um “ploft” seco, na gaveta da máquina e por lá ficou a olhar para mim, com um “Fumar mata” taxativo e arrogante estampado na frente.
Ora, eu podia estar comodamente instalado num sofá forrado a veludo bordeaux e morrer engasgado numa bolacha Maria ensopada em chá de limão. Dificilmente me ocorre actividade mais inócua e insuspeita de causar dano mortal. Mas até a inactividade pode ser perigosa: uma crise de apneia do sono mais cabeluda pode fazer o meu já depauperado cérebro entrar em anoxia e atirar-me para um confortável esquecimento vegetal ou, no limite, matar-me. Mas isto é retórica, e vamos acreditar que quem pôs este anúncio (passe a mentira descarada) o fez na convicção de que fumar aumenta, em muito, os riscos de morte a um indivíduo.
No verso do dito maço, porém, reza o anúncio “Fumar pode provocar morte lenta e dolorosa”. O que, combinado com o anterior, significa que a morte lenta e dolorosa é uma das que podem ocorrer a quem fuma. Fumar mata e seguramente, como nos dizem, mas essa morte pode ser lenta e dolorosa. E se pode ser, também pode não ser.
(um parêntesis: é patético ver como o legislador, que tentou calar a boca a um lobby de histéricos anti-tabagistas com esta nova moda, tem pudor de escrever “cancro”. Estigmatize-se o fumador, arranje-se uma nova encarnação de estrelas amarelas na lapela, mas deus-nos-livre de ferir susceptibilidades e escrever a palavra que é normal e eufemisticamente substituída por “doença prolongada”...)
É então uma das hipóteses que o fumador “compra”, a da morte lenta e dolorosa. E é uma arrelia, convenhamos, um gajo agonizar em sofrimento. Mas há mais possibilidades. Vejamos:
- Uma morte rápida e dolorosa. Também não parece atractivo, mas ao menos é rápido (e nem quero falar do relativismo do “rápido/lento” e “doloroso/indolor”). Um gajo, num minuto, está a beber uns canecos e a comer tremoços com os amigos na esplanada, e segundos-de-grande-sofrimento depois é adubo. Chato. Mas, repito, rápido. É um empate, por assim dizer.
- Uma morte rápida e indolor. Isto é universalmente considerado como a melhor maneira de esticar o pernil, e por isso não podemos considerar isto como uma coisa realmente desagradável.
- Uma morte lenta e indolor. Isto parece-me um excelente projecto de vida! Um gajo vai morrendo lentamente, mas sem sofrimento. No fundo, é uma outra maneira de dizer “uma vida sem preocupações”. Há lá coisa melhor!
Sejamos agora simpáticos e atribuamos a cada uma das possibilidades igual probabilidade de ocorrência. Temos que, fumando, temos 25% de hipóteses de ter uma morte aborrecida, 25% de morrer assim-assim e 50% de hipóteses de morrer em grande. É como comprar metade dos bilhetes da lotaria e saber que metade do restante não foi vendido! Até ver projecções fidedignas das probabilidades de morte para não-fumadores, vou continuar a fumar. É que, sabem, não é por não fumarem que vocês vão ficar vivos...
Na lotaria dos disparates, saiu-me hoje um maço engraçado. Caiu, com um “ploft” seco, na gaveta da máquina e por lá ficou a olhar para mim, com um “Fumar mata” taxativo e arrogante estampado na frente.
Ora, eu podia estar comodamente instalado num sofá forrado a veludo bordeaux e morrer engasgado numa bolacha Maria ensopada em chá de limão. Dificilmente me ocorre actividade mais inócua e insuspeita de causar dano mortal. Mas até a inactividade pode ser perigosa: uma crise de apneia do sono mais cabeluda pode fazer o meu já depauperado cérebro entrar em anoxia e atirar-me para um confortável esquecimento vegetal ou, no limite, matar-me. Mas isto é retórica, e vamos acreditar que quem pôs este anúncio (passe a mentira descarada) o fez na convicção de que fumar aumenta, em muito, os riscos de morte a um indivíduo.
No verso do dito maço, porém, reza o anúncio “Fumar pode provocar morte lenta e dolorosa”. O que, combinado com o anterior, significa que a morte lenta e dolorosa é uma das que podem ocorrer a quem fuma. Fumar mata e seguramente, como nos dizem, mas essa morte pode ser lenta e dolorosa. E se pode ser, também pode não ser.
(um parêntesis: é patético ver como o legislador, que tentou calar a boca a um lobby de histéricos anti-tabagistas com esta nova moda, tem pudor de escrever “cancro”. Estigmatize-se o fumador, arranje-se uma nova encarnação de estrelas amarelas na lapela, mas deus-nos-livre de ferir susceptibilidades e escrever a palavra que é normal e eufemisticamente substituída por “doença prolongada”...)
É então uma das hipóteses que o fumador “compra”, a da morte lenta e dolorosa. E é uma arrelia, convenhamos, um gajo agonizar em sofrimento. Mas há mais possibilidades. Vejamos:
- Uma morte rápida e dolorosa. Também não parece atractivo, mas ao menos é rápido (e nem quero falar do relativismo do “rápido/lento” e “doloroso/indolor”). Um gajo, num minuto, está a beber uns canecos e a comer tremoços com os amigos na esplanada, e segundos-de-grande-sofrimento depois é adubo. Chato. Mas, repito, rápido. É um empate, por assim dizer.
- Uma morte rápida e indolor. Isto é universalmente considerado como a melhor maneira de esticar o pernil, e por isso não podemos considerar isto como uma coisa realmente desagradável.
- Uma morte lenta e indolor. Isto parece-me um excelente projecto de vida! Um gajo vai morrendo lentamente, mas sem sofrimento. No fundo, é uma outra maneira de dizer “uma vida sem preocupações”. Há lá coisa melhor!
Sejamos agora simpáticos e atribuamos a cada uma das possibilidades igual probabilidade de ocorrência. Temos que, fumando, temos 25% de hipóteses de ter uma morte aborrecida, 25% de morrer assim-assim e 50% de hipóteses de morrer em grande. É como comprar metade dos bilhetes da lotaria e saber que metade do restante não foi vendido! Até ver projecções fidedignas das probabilidades de morte para não-fumadores, vou continuar a fumar. É que, sabem, não é por não fumarem que vocês vão ficar vivos...
ARRUMOS
Para guardar a minha vida, precisaria de alguns caixotes e uns quantos tupperware. É essa a vantagem e desvantagem de se ter 27 anos: ainda não temos quase nada, só tempo e espaço para ter.
Pondo de lado os caixotes para os livros e os discos (e a furgoneta para o parco mobiliário...), tenho só algumas memórias, facilmente acomodáveis nas caixinhas de plástico quase indestrutíveis que as nossas mães usavam como desculpa para conviver. Guardá-las-ia ali porque as caixas tupperware simbolizam um cordão umbilical com o meu passado: durante estes já 9 anos de Lisboa, era nessas caixinhas que eu, num ou noutro fim-de-semana, trazia umas refeiçõezinhas pré-cozinhadas, que ajudaram a fazer de mim este rapagão forte e robusto. De cada vez que lhes abria a tampa, sentia o cheiro do carinho paternal, venciam-se os 130 kms de distância, era, no fundo, como abrir a porta de casa.
Que niguém me gabe as virtudes dos postais ilustrados quando comparados com um tupperware cheio de feijoada ou jardineira! De que valem os correios ou os telefones ao pé deste tráfico sentimental de caixas que vinham de Tomar cheias de carinho e íam de Lisboa cheias de saudade e de vontade de reencontro?
Bastar-me-ia, portanto, um conjunto como o acima ilustrado: recipientes para memórias líquidas, fluídas e instáveis; recipientes para memórias sólidas e definitivas; e um escorredor para ali deixar que as más memórias fossem perdendo o azedume. Teria, assim, uma organização abstracta, incatalogável, mas de fácil utilização para quem, como eu, é tão avesso ao método. Com a vantagem decisiva de, a qualquer momento, poder aquentar o meu passado no micro-ondas...
Para guardar a minha vida, precisaria de alguns caixotes e uns quantos tupperware. É essa a vantagem e desvantagem de se ter 27 anos: ainda não temos quase nada, só tempo e espaço para ter.
Pondo de lado os caixotes para os livros e os discos (e a furgoneta para o parco mobiliário...), tenho só algumas memórias, facilmente acomodáveis nas caixinhas de plástico quase indestrutíveis que as nossas mães usavam como desculpa para conviver. Guardá-las-ia ali porque as caixas tupperware simbolizam um cordão umbilical com o meu passado: durante estes já 9 anos de Lisboa, era nessas caixinhas que eu, num ou noutro fim-de-semana, trazia umas refeiçõezinhas pré-cozinhadas, que ajudaram a fazer de mim este rapagão forte e robusto. De cada vez que lhes abria a tampa, sentia o cheiro do carinho paternal, venciam-se os 130 kms de distância, era, no fundo, como abrir a porta de casa.
Que niguém me gabe as virtudes dos postais ilustrados quando comparados com um tupperware cheio de feijoada ou jardineira! De que valem os correios ou os telefones ao pé deste tráfico sentimental de caixas que vinham de Tomar cheias de carinho e íam de Lisboa cheias de saudade e de vontade de reencontro?
Bastar-me-ia, portanto, um conjunto como o acima ilustrado: recipientes para memórias líquidas, fluídas e instáveis; recipientes para memórias sólidas e definitivas; e um escorredor para ali deixar que as más memórias fossem perdendo o azedume. Teria, assim, uma organização abstracta, incatalogável, mas de fácil utilização para quem, como eu, é tão avesso ao método. Com a vantagem decisiva de, a qualquer momento, poder aquentar o meu passado no micro-ondas...
quarta-feira, outubro 22, 2003 |
OS VALORES QUE A TV ME ENSINOU
Os pequenos heróis do meu tempo não tinham animais de estimação com poderes estranhos e ataques-vómito, como os Pokémons... Tinham cães, ou gatos, ou macaquinhos, ou papagaios, ou cavalos; animais que eram animais, com aquele poder único e real de serem amigos e leais.
Os pequenos heróis do meu tempo tinham vidas desgraçadas, famílias disfuncionais, viviam muitas vezes no limiar da pobreza e viam nos adultos, geralmente, um adversário a ultrapassar.
Os pequenos heróis do meu tempo eram bons, traquinas, ardilosos, inventivos, preserverantes, corajosos - enfim, mais qualidades que aquelas que o Gabriel Alves seria capaz de identificar na equipa do Real Madrid.
Os pequenos heróis do meu tempo mostravam o quão pouco valiam as barreiras sociais, o poder de alguns sentimentos e do indivíduo, ensinavam-nos o prazer da partilha e tudo numa linguagem muito mais acessível que a de uma encíclica papal.
Os pequenos heróis do meu tempo não eram escolhidos em conclave, eram heróis improváveis, adequados ao traço português de uma certa felicidade medíocre - ou felicidade-apesar-de-tudo, se quiserem.
Os pequenos heróis do meu tempo riam-se, zangavam-se, choravam, namoriscavam, andavam à pancada e eram pouco dados aos cuidados de higiene. Eram crianças normais, com o que de extraordinário cada criança tem.
Hoje fiquei com um sorriso aparvalhado na cara quando ouvi o álbum "Dear Catastrophe Waitress", dos Belle&Sebastian. Seria a banda sonora de eleição para o jantar de reunião dos pequenos heróis do meu tempo...
Os pequenos heróis do meu tempo não tinham animais de estimação com poderes estranhos e ataques-vómito, como os Pokémons... Tinham cães, ou gatos, ou macaquinhos, ou papagaios, ou cavalos; animais que eram animais, com aquele poder único e real de serem amigos e leais.
Os pequenos heróis do meu tempo tinham vidas desgraçadas, famílias disfuncionais, viviam muitas vezes no limiar da pobreza e viam nos adultos, geralmente, um adversário a ultrapassar.
Os pequenos heróis do meu tempo eram bons, traquinas, ardilosos, inventivos, preserverantes, corajosos - enfim, mais qualidades que aquelas que o Gabriel Alves seria capaz de identificar na equipa do Real Madrid.
Os pequenos heróis do meu tempo mostravam o quão pouco valiam as barreiras sociais, o poder de alguns sentimentos e do indivíduo, ensinavam-nos o prazer da partilha e tudo numa linguagem muito mais acessível que a de uma encíclica papal.
Os pequenos heróis do meu tempo não eram escolhidos em conclave, eram heróis improváveis, adequados ao traço português de uma certa felicidade medíocre - ou felicidade-apesar-de-tudo, se quiserem.
Os pequenos heróis do meu tempo riam-se, zangavam-se, choravam, namoriscavam, andavam à pancada e eram pouco dados aos cuidados de higiene. Eram crianças normais, com o que de extraordinário cada criança tem.
Hoje fiquei com um sorriso aparvalhado na cara quando ouvi o álbum "Dear Catastrophe Waitress", dos Belle&Sebastian. Seria a banda sonora de eleição para o jantar de reunião dos pequenos heróis do meu tempo...
Outros Blogues |
Gosto de passear pela blogoestrada pela manhã. Dou uma rápida olhadela aos blogues do costume para me pôr ao corrente de novos escritos. É já um hábito, tal como o de visitar as páginas dos jornais diários.
Hoje, ao visitar um dos blogues “obrigatórios” de seu nome Mata-mouros, fui remetido para um outro blogue que desconhecia, chamado O Vilacondense, no qual fui encontrar um post intitulado "Greve do Ensino Superior" que considero digno de ser lido, apesar de não concordar com algumas das coisas que lá são ditas.
Estudei na Universidade de Évora. Nunca fui grevista nem apologista do género de manifestações a que temos assistido, nomeadamente daquelas em que se encerram universidades a cadeado. Neste ponto, estou em total desacordo com a posição adoptada pelos dirigentes associativos da universidade pela qual me formei.
No entanto, não posso deixar passar em claro alguns pontos que me pareceram exagerados na crítica que o "O Vilacondense" faz:
1º - Nem todos os alunos do ensino superior público são "beneficiados da sociedade". Formei-me com a ajuda dos meus pais, aos quais agradeço o enorme sacrifício efectuado. Para além disso, lembro-me de uma rapariga da minha turma que chegava a passar fome para poder comprar livros, sebentas e fotocópias. Há um mês, chegou à Universidade de Évora um rapazinho dos Açores, recém-entrado para o curso de Engenharia Informática, que não tinha dinheiro para fazer a viagem dos Açores para o continente. A sua família é numerosa e de poucas posses, não tendo sequer água canalizada em casa. A sua vinda só foi possível graças a um grupo de pessoas – amigos, vizinhos e até mesmo desconhecidos – que reuniram dinheiro suficiente para a viagem e para o primeiro mês de estadia. Deram-lhe também alguma roupa usada que ele aceitou de bom grado, dado que, para além do que tinha vestido, pouco mais possuía.
Ainda hoje, não sabe se o dinheiro que vai receber da bolsa lhe dará para comer, pagar a residência onde vive e comprar material escolar, muito menos para roupa e propinas.
2º - Quando afirma que "Geralmente, aqueles que chegam à Universidade são os jovens mais protegidos (pela familia e pela sociedade)", penso que se estará a referir aos que podem estudar em universidades privadas por terem capacidade económica para suportar uma mensalidade.
De qualquer forma, não vejo que venha mal ao mundo pelo facto de alguém ser protegido pela família. Não considero que isso seja um indicador económico ou social do aluno.
3º - Uma boa fatia dos que começam a trabalhar aos 15/16 anos não o fazem por impossibilidade de continuar a estudar.
Alude ainda o "O Vilacondense" àqueles que enveredam pela marginalidade, como se fosse o único escape possível. A isso, apenas respondo com o exemplo dado no ponto 1º.
4º - “Os grevistas são fascistas”: garanto-lhe que a maioria dos grevistas e manifestantes desta universidade são comunistas.
Gostaria ainda de relevar que não sou contra o pagamento de propinas. Sou contra algumas generalizações feitas e que denotam total desconhecimento da realidade vivida por muitos dos alunos. Como será possível ao jovem açoriano pagar o mesmo que outro aluno possuidor de condições económicas razoáveis?
Nota: Entrei para a Universidade de Évora em 1996. Nessa altura não se pagavam propinas. Até hoje, não notei qualquer melhoria na qualidade de ensino. Apenas um aumento do número de professores convidados que são pagos a peso de ouro para dar meia dúzia de aulas num semestre. Noto também a beleza dos Audi’s, Mercedes e BMW’s dos mesmos.
terça-feira, outubro 21, 2003 |
FEIRA
Quando era pequeno gostava muito da Feira de Santa Iria, em Tomar. Em adolescente, achava aquilo obscenamente foleiro. Agora, tomado pela razão, gosto muito outra vez.
Não sei porque é que a OCDE e outras organizações congéneres gastam rios de dinheiro em estatísticas sobre desenvolvimento económico. Basta ir à Feira de Santa Iria - ou a qualquer outra, suponho - e toma-se o pulso à realidade do país. Percebe-se, também, que a globalização é bem real: as canecas de barro a dizer "Recordação de Tomar" vão sendo substituídas pelas contrafacções de "Hilfiger", "Ralph Lauren", "Burberrys" e o mais que se possa imaginar; os guarda-chuvas têm todos o autocolante "made in china"; as bancas de artesanato andino prosperam e o orgulho pátrio só é salvo pelos maços de 6 pares de peúgas a 5 euros...
Deixem-me ver se vos consigo explicar o meu fascínio recente pela feira:
Há toda uma sorte de rituais de feira que têm uma poesia muito própria. Os engates nos carros-de-choque; as posições arriscadas nos "carrocéis" mais modernaços como ritual de acasalamento; o faltar às aulas para ir à feira; os beijos tímidos com gosto ao açúcar das farturas; as mãos coladas pelo suor e pelo algodão doce; os dentes negros das castanhas mais tisnadas; os cheiros; as cores; os gritos; a música ensurdecedora... e a improbabilidade desta criação de um cenário apocalíptico para nele se fazerem negócios.
É nesta altura do ano que a população das freguesias rurais do concelho mais contacta com a cidade. É nesta altura que se assombram com os ideais de progresso e que, como vingança, se embebedam e se lançam em desacatos catárticos. Saem-lhes as notas das carteiras (ou dos envelopes, ou dos sacos de plástico) e entra-lhes na alma a riqueza da civilização (e as botas de trabalho, e as mantas para a azeitona - é grande e espaçosa a alma de um homem do campo).
Aquilo que mais me encanta e enternece é a satisfação visível que as mulheres que habitam fora da cidade por destino e não por opção tiram desta semana de feira. Por sete dias (ou apenas um, dependendo da frequência com que a possam visitar), podem sentir-se mulheres, consentem-se a liberdade de serem vaidosas, de comprar alguma coisa para elas, para a casa, para os filhos... Destes gestos nasce uma alegria, uma re-humanização que me fascina.
Acho que vou gostar muito da feira até ao fim dos meus dias - pelo menos enquanto continuar a ser o palco destes minúsculos milagres do consumo.
Quando era pequeno gostava muito da Feira de Santa Iria, em Tomar. Em adolescente, achava aquilo obscenamente foleiro. Agora, tomado pela razão, gosto muito outra vez.
Não sei porque é que a OCDE e outras organizações congéneres gastam rios de dinheiro em estatísticas sobre desenvolvimento económico. Basta ir à Feira de Santa Iria - ou a qualquer outra, suponho - e toma-se o pulso à realidade do país. Percebe-se, também, que a globalização é bem real: as canecas de barro a dizer "Recordação de Tomar" vão sendo substituídas pelas contrafacções de "Hilfiger", "Ralph Lauren", "Burberrys" e o mais que se possa imaginar; os guarda-chuvas têm todos o autocolante "made in china"; as bancas de artesanato andino prosperam e o orgulho pátrio só é salvo pelos maços de 6 pares de peúgas a 5 euros...
Deixem-me ver se vos consigo explicar o meu fascínio recente pela feira:
Há toda uma sorte de rituais de feira que têm uma poesia muito própria. Os engates nos carros-de-choque; as posições arriscadas nos "carrocéis" mais modernaços como ritual de acasalamento; o faltar às aulas para ir à feira; os beijos tímidos com gosto ao açúcar das farturas; as mãos coladas pelo suor e pelo algodão doce; os dentes negros das castanhas mais tisnadas; os cheiros; as cores; os gritos; a música ensurdecedora... e a improbabilidade desta criação de um cenário apocalíptico para nele se fazerem negócios.
É nesta altura do ano que a população das freguesias rurais do concelho mais contacta com a cidade. É nesta altura que se assombram com os ideais de progresso e que, como vingança, se embebedam e se lançam em desacatos catárticos. Saem-lhes as notas das carteiras (ou dos envelopes, ou dos sacos de plástico) e entra-lhes na alma a riqueza da civilização (e as botas de trabalho, e as mantas para a azeitona - é grande e espaçosa a alma de um homem do campo).
Aquilo que mais me encanta e enternece é a satisfação visível que as mulheres que habitam fora da cidade por destino e não por opção tiram desta semana de feira. Por sete dias (ou apenas um, dependendo da frequência com que a possam visitar), podem sentir-se mulheres, consentem-se a liberdade de serem vaidosas, de comprar alguma coisa para elas, para a casa, para os filhos... Destes gestos nasce uma alegria, uma re-humanização que me fascina.
Acho que vou gostar muito da feira até ao fim dos meus dias - pelo menos enquanto continuar a ser o palco destes minúsculos milagres do consumo.
segunda-feira, outubro 20, 2003 |
UMA SEMANA
Roma é uma cidade esmagadora.
Esta frase precisa de espaço. Ou, pelo menos, eu preciso de lhe dar espaço. Em Roma não há espaço, porque tudo está tomado pelo tempo.
Não queria vir para aqui armado em basbaque, falar-vos da História, da importância simbólica da cidade... Não sou o Vasco Graça Moura nem o David Mourão-Ferreira. Mas também me é impossível limitar-me a dizer que a cidade é ao mesmo tempo uma benção e um tormento pelo número avassalador de mulheres bonitas nas ruas, nos cafés, nos restaurantes, nas lojas, nas paragens de autocarro, no metro...
Roma esfrega-nos o tempo na cara. É uma lição de humildade. Senti-me, como nunca, relativizado, amesquinhado, posto no lugar.
Voltei com uma sensação estranha, que precisa de uma nova visita para poder ser confirmada: a vida urgente e febril dos romanos de hoje é uma fuga ao peso do tempo que ali se sente. Os gritos, o carácter expansivo, os gestos, a frequência com que se tocam... tudo aquilo me parece, a esta distância, uma tentativa de se conferirem valor e importância num cenário cuja escala monumental os menospreza e desrespeita.
Não consigo "contar" Roma, nem tão pouco falar muito dela. Apenas estive lá, apenas a visitei o pouco que pude. E não me senti estrangeiro - nem sei se essa será uma condição ao alcance de um ocidental, assim como não sei se alguém consegue pertencer a Roma. Senti-me num lugar em que as pessoas vivem para as pessoas - com o pecadilho desculpável da vaidade - e se refugiam no número para se enquadrarem numa das mais sobre-humanas das construções do Homem.
Escuso-me a descrever o prazer que se encerra em tal "refúgio no número" quando esse mesmo número é tão pródigo em beleza.
Roma é uma cidade esmagadora.
Esta frase precisa de espaço. Ou, pelo menos, eu preciso de lhe dar espaço. Em Roma não há espaço, porque tudo está tomado pelo tempo.
Não queria vir para aqui armado em basbaque, falar-vos da História, da importância simbólica da cidade... Não sou o Vasco Graça Moura nem o David Mourão-Ferreira. Mas também me é impossível limitar-me a dizer que a cidade é ao mesmo tempo uma benção e um tormento pelo número avassalador de mulheres bonitas nas ruas, nos cafés, nos restaurantes, nas lojas, nas paragens de autocarro, no metro...
Roma esfrega-nos o tempo na cara. É uma lição de humildade. Senti-me, como nunca, relativizado, amesquinhado, posto no lugar.
Voltei com uma sensação estranha, que precisa de uma nova visita para poder ser confirmada: a vida urgente e febril dos romanos de hoje é uma fuga ao peso do tempo que ali se sente. Os gritos, o carácter expansivo, os gestos, a frequência com que se tocam... tudo aquilo me parece, a esta distância, uma tentativa de se conferirem valor e importância num cenário cuja escala monumental os menospreza e desrespeita.
Não consigo "contar" Roma, nem tão pouco falar muito dela. Apenas estive lá, apenas a visitei o pouco que pude. E não me senti estrangeiro - nem sei se essa será uma condição ao alcance de um ocidental, assim como não sei se alguém consegue pertencer a Roma. Senti-me num lugar em que as pessoas vivem para as pessoas - com o pecadilho desculpável da vaidade - e se refugiam no número para se enquadrarem numa das mais sobre-humanas das construções do Homem.
Escuso-me a descrever o prazer que se encerra em tal "refúgio no número" quando esse mesmo número é tão pródigo em beleza.
quarta-feira, outubro 15, 2003 |
O Sangue
O sangue, que nos enrubesce a excitação e acinzenta o temor. O sangue que se verte, em acção ou intenção, por causa, idéia, honra, pátria, amigo ou loucura. O sangue feminino-outonal, promessa de fértil primavera. O sangue, afinal, tecido nosso e alma tangível.
Quando o sangue adoece, é a nossa essência que se molesta. Não há refúgio nem recurso cirúrgico que extirpe o mal. À ferida que nos mata podemos apontar um dedo e dizer-lhe, amargos, "foste tu e é por ti". Quando é o sangue que nos mata é como se o corpo se enojasse de nós.
Quem nos é querido fina-se sempre a destempo por coisa vã e injusta. Não podendo morrer de amores, não há maneira boa de acabar. Mas acabar de mal do sangue é como morrer às mãos da mãe que nos amamenta. Ter uma doença mortal do sangue deve ser uma das coisas mais aterradoras que pode suceder a um Homem.
(perdoem-me o mau alinhavo. É tarde e estou cansado, mas não quis deixar de dar um bocadinho a tão nobre causa.)
Luta contra a Leucemia |
Através de um blogue amigo, soubemos que existe um movimento de blogues que se comprometeram a escrever algo sobre a Leucemia, como forma de alerta e sensibilização para aqueles que dela padecem e para o que cada um de nós pode fazer em seu auxílio.
Infelizmente, chegámos atrasados para acrescentar algo ao que já foi dito.
Comoveu-nos, ainda, constatar que existem blogues que se interessam por causas nobres.
Resta-nos sublinhar e louvar tão altruísta acção, manifestando o nosso apoio e desejando força e sorte àqueles que lutam contra a enfermidade.
Para sempre |
Este post não é mais do que uma pequena homenagem a um grande amigo meu. Já tinha pensado em escrevê-lo, só não sabia muito bem quando e como. Ainda agora, que principio a redigir estas linhas, não sei muito bem como abordar o tema. É uma coisa pessoal, um sentimento com o qual, muito provavelmente, a maior parte dos leitores não se identifica, o que, diga-se de passagem, é bom sinal.
Falo do sentimento de perda, não de um familiar, mas daquele que era um dos meus melhores amigos. Arrisco a dizer o melhor, sabendo de antemão que corro o risco de estar a ser injusto com outras pessoas. Um amigo de infância que morava no prédio em frente e com o qual passei momentos inesquecíveis. Crescemos juntos, brincámos juntos, andamos à porrada juntos e apanhámos as primeiras bebedeiras juntos. Fumei a primeira ganza com ele.
Ainda que o leitor pense - com toda a legitimidade, diga-se - que não tem nada a ver com este assunto, que só a mim me diz respeito, rogo-lhe compreensão para com o meu desabafo.
Aproveito-me então da Internet para estampar o meu sentimento numa página que, provavelmente, estará condenada ao abandono com o passar dos tempos. No entanto, não necessitarei, espero eu, de voltar a falar tão abertamente deste assunto. Está aqui. Para quem quiser ler. Para quem se identificar com ele.
Foi a forma que encontrei para eternizar a amizade que ainda sinto por aquele sacana.
Esta, foi uma situação que nunca consegui ultrapassar muito bem, já lá vão cinco anos, feitos a 18 de Agosto de 2003. Lembro-me como se tivesse sido ontem. Acabava eu de chegar à minha terra natal, findas as minhas férias no algarve. Saímos para tomar café e acabámos por ir comer uns caracóis numa tasca, enquanto víamos o ciclismo, desporto pelo qual ele era fanático. Comprámos um maço de Rothmans, que fumámos a meias durante a tarde. Foram os últimos cigarros que fumámos juntos. À noite transmitiam um jogo do Benfica na televisão. Desde logo combinámos que iríamos a qualquer lado ver o jogo e beber umas cervejolas.
Às 17h fomos para casa, ficando ele de ir ter a minha casa perto das 20h para irmos ver o jogo do clube do nosso coração.
Perto das 20h batem-me à porta. Não era o meu amigo, ao contrário do que esperava. Era um vizinho a dizer-me que ele acabara de se suicidar. Com um tiro na cabeça.
Ainda hoje não sei porquê. Tinha apenas 22 anos e uma vida inteira pela frente.
Um grande abraço para o J.F.S.S., deste amigo de sempre. Para sempre.
sexta-feira, outubro 10, 2003 |
A festa dos belogas
Roído por um indomitável desejo de ver a tromba aos belogueiros nacionais, rumei ontem à noite ao "Madres de Goa", esperando introduzir-me discretamente no meio dos convivas a coberto do nevoeiro etílico que, suspeitava, reinasse no espaço. Enganei-me. Aquilo era uma coisa bem organizada, com segurança à porta, detectores de metais, assinatura de declarações de non-disclosure e o Diabo a sete. À porta, um beloga corpulento barrou-me a passagem:
- Hoje é só para belogas!
- Eu sei - disse eu com o meu ar mais blasé.
- E qual é o teu belogue?
- Eu sou o Pipi.
- Não és nada!
- Pois não. Sou muito mentiroso.
- És o MuitoMentiroso?!?!
- Estava a brincar! Sou do Desejo Casar.
- Ah, bom... espera lá! Do Desejo Casar sou eu e não te conheço!
Como aquilo ameaçava eternizar-se, espreitei por cima do ombro dele e disse, em voz alta:
- Olha, a Fernanda Serrano!
Aproveitei a confusão que se gerou de seguida para entrar e sentar-me numa mesa mal iluminada dum canto. Um passar de olhos rápido pela sala revelou um problema: os belogas correspondem rigorosamente ao retrato-robot que alguém fez deles, e no meio dos belogas eu sou tão chamativo quanto uma mosca num prato de merengue. Já desesperado com os olhares desconfiados que me lançavam, avistei, num outro canto, um velho que fumava cachimbo com ar alucinado. Ia-lhe pedir uma passa quando me ocorreu que aquela visão era estranhamente familiar...
- Ouve lá, tu não és o Bom Selvagem?
- E seremos nós aquilo que pensamos? Ou as nossas vidas serão apenas um sonho de alguém?
- ...e esse cachimbo não cheira a tabaco...
- Conheces o meu gato? Deve andar por aí... (disse ele, disfarçando mal o incómodo)
- Deixa-te de tretas e dá cá uma passa disso.
Ficámos uns minutos a fumar calmamente e a observar. Eu confesso que tive algum receio inicial; pensava que os belogas nacionais seriam todos uma cambada de rejeitados ou feios ou gordos. Enganei-me redondamente. São, isso sim, uma cambada de rejeitados, feios e gordos. As belogas, por outro lado, são muito jeitosas. Há-as altas, baixas, magritas, gorduchas, mas a maioria é muito apreciável. E, no meio de tanto estafermo masculino, o Belo Menir tornou-se rapidamente o centro das atenções.
Quando se acabou o gás do isqueiro, de tanto lume dar a gaijas que mo vieram pedir, e se finou também a imaginação para inventar belogues onde eu escreveria - vocês acreditam que até pelo Abrupto passei? - comecei a ficar inquieto. O Bom Selvagem ressonava alarvemente ao meu lado, os belogas olhavam-me com inveja e elas começaram a cercar-nos. Era a altura de começar a pensar em retirar, mas como? Levantei-me, encarei a assistência e disse, apaziguadoramente, de mãos no ar...
- OK, OK, eu confesso: eu sou o Zé Nabo.
Ainda me dói o corpo de tanta porrada que levei até à rua.
Roído por um indomitável desejo de ver a tromba aos belogueiros nacionais, rumei ontem à noite ao "Madres de Goa", esperando introduzir-me discretamente no meio dos convivas a coberto do nevoeiro etílico que, suspeitava, reinasse no espaço. Enganei-me. Aquilo era uma coisa bem organizada, com segurança à porta, detectores de metais, assinatura de declarações de non-disclosure e o Diabo a sete. À porta, um beloga corpulento barrou-me a passagem:
- Hoje é só para belogas!
- Eu sei - disse eu com o meu ar mais blasé.
- E qual é o teu belogue?
- Eu sou o Pipi.
- Não és nada!
- Pois não. Sou muito mentiroso.
- És o MuitoMentiroso?!?!
- Estava a brincar! Sou do Desejo Casar.
- Ah, bom... espera lá! Do Desejo Casar sou eu e não te conheço!
Como aquilo ameaçava eternizar-se, espreitei por cima do ombro dele e disse, em voz alta:
- Olha, a Fernanda Serrano!
Aproveitei a confusão que se gerou de seguida para entrar e sentar-me numa mesa mal iluminada dum canto. Um passar de olhos rápido pela sala revelou um problema: os belogas correspondem rigorosamente ao retrato-robot que alguém fez deles, e no meio dos belogas eu sou tão chamativo quanto uma mosca num prato de merengue. Já desesperado com os olhares desconfiados que me lançavam, avistei, num outro canto, um velho que fumava cachimbo com ar alucinado. Ia-lhe pedir uma passa quando me ocorreu que aquela visão era estranhamente familiar...
- Ouve lá, tu não és o Bom Selvagem?
- E seremos nós aquilo que pensamos? Ou as nossas vidas serão apenas um sonho de alguém?
- ...e esse cachimbo não cheira a tabaco...
- Conheces o meu gato? Deve andar por aí... (disse ele, disfarçando mal o incómodo)
- Deixa-te de tretas e dá cá uma passa disso.
Ficámos uns minutos a fumar calmamente e a observar. Eu confesso que tive algum receio inicial; pensava que os belogas nacionais seriam todos uma cambada de rejeitados ou feios ou gordos. Enganei-me redondamente. São, isso sim, uma cambada de rejeitados, feios e gordos. As belogas, por outro lado, são muito jeitosas. Há-as altas, baixas, magritas, gorduchas, mas a maioria é muito apreciável. E, no meio de tanto estafermo masculino, o Belo Menir tornou-se rapidamente o centro das atenções.
Quando se acabou o gás do isqueiro, de tanto lume dar a gaijas que mo vieram pedir, e se finou também a imaginação para inventar belogues onde eu escreveria - vocês acreditam que até pelo Abrupto passei? - comecei a ficar inquieto. O Bom Selvagem ressonava alarvemente ao meu lado, os belogas olhavam-me com inveja e elas começaram a cercar-nos. Era a altura de começar a pensar em retirar, mas como? Levantei-me, encarei a assistência e disse, apaziguadoramente, de mãos no ar...
- OK, OK, eu confesso: eu sou o Zé Nabo.
Ainda me dói o corpo de tanta porrada que levei até à rua.
quinta-feira, outubro 09, 2003 |
CONTABILIDADE ORGANIZADA
Felizmente nem todas as mulheres são assim. Não falo do cabelo, falo de uma certa característica com que volta e meio me deparo nalgumas mulheres: a contabilidade organizada. As suas cabeças são como enormes livros de registos com uma particularidade: a coluna do haver é imensamente maior que a do deve.
"Eu telefonei-te 4 vezes na semana passada e tu só telefonaste 2"; "8 sms's contra 3"; "Lembras-te quando disseste em Fevereiro de 1997 que qualquer dia havíamos de ir não sei onde"; "Não percebo porque é que dizes isso, porque houve uma vez, à saída do cinema, a 3 de Agosto de 2000, em que te disso isto e isto e isto"...
Não há paciência. Não há cabeça que aguente. Faço questão, nisto dos afectos e mesmo das amizades, de não manter tal tipo de contabilidade ou registo. A partir do momento em que gosto das pessoas, gosto e pronto. Qual é que é a necessidade de telefonar para utilizar essa frase vil e purulenta: "Era só para saber se estava tudo bem..."? Francamente! Revolta-me esse espírito de que, para provar qualquer tipo de sentimento, é preciso marcar presença constante com chamadinhas, mensagens, cartõezinhos, e-mails ou sms's. Que é feito da confiança à antiga?
Acho bem que chamem esse tipo de mulheres para o Governo. Eu, por mim, prefiro procurar uma mulher desgovernada.
Felizmente nem todas as mulheres são assim. Não falo do cabelo, falo de uma certa característica com que volta e meio me deparo nalgumas mulheres: a contabilidade organizada. As suas cabeças são como enormes livros de registos com uma particularidade: a coluna do haver é imensamente maior que a do deve.
"Eu telefonei-te 4 vezes na semana passada e tu só telefonaste 2"; "8 sms's contra 3"; "Lembras-te quando disseste em Fevereiro de 1997 que qualquer dia havíamos de ir não sei onde"; "Não percebo porque é que dizes isso, porque houve uma vez, à saída do cinema, a 3 de Agosto de 2000, em que te disso isto e isto e isto"...
Não há paciência. Não há cabeça que aguente. Faço questão, nisto dos afectos e mesmo das amizades, de não manter tal tipo de contabilidade ou registo. A partir do momento em que gosto das pessoas, gosto e pronto. Qual é que é a necessidade de telefonar para utilizar essa frase vil e purulenta: "Era só para saber se estava tudo bem..."? Francamente! Revolta-me esse espírito de que, para provar qualquer tipo de sentimento, é preciso marcar presença constante com chamadinhas, mensagens, cartõezinhos, e-mails ou sms's. Que é feito da confiança à antiga?
Acho bem que chamem esse tipo de mulheres para o Governo. Eu, por mim, prefiro procurar uma mulher desgovernada.
E o nomeado desta semana é... |
Que país ignorante nós temos. Uma pessoa está presa preventivamente uns meses, depois é-lhe aplicada uma medida de coacção mais leve - termo de identidade e residência - e fala-se logo em "verdade a vir ao de cima".
A sua inocência presume-se até à condenação em julgamento, é certo, mas sejamos comedidos nos festejos. Foi ridícula a forma como um Dr., supostamente bem formado e informado, sai da prisão preventiva como herói e como se ignorasse que as coisas não acabaram ali. Como se alguém lhe tivesse dito "Pronto, és inocente e estás livre de qualquer suspeita".
Estas euforias são o reflexo de uma cultura de "manifestações, gritos e choros" semanais à porta de uma casa na Venda do Pinheiro. A própria saída apoteótica de Paulo Pedroso fez lembrar essas belas noites. Espantou-me a ausência da Teresa Guilherme e de uma qualquer alma caridosa e desdentada que gritasse "Só me apetece é ganir".
Convém não esquecer é que Paulo Pedroso continua "nomeado para entrar na casa", não tendo, ainda, sido expulso em definitivo.
Ponham a razão acima do coração e deixem de fazer figuras tristes...
quarta-feira, outubro 08, 2003 |
De orelhas em pé - VI
Esta tarde foi libertado o deputado Paulo Pedroso, por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, que alterou a medida de coacção que lhe tinha sido aplicada pelo juiz Rui Teixeira de prisão preventiva para termo de identidade e residência. Após ser libertado, o deputado dirigiu-se à Assembleia da República, onde se encontra reunido à porta fechada com o líder do seu partido.
Espera-se a qualquer momento a libertação do cidadão Paulo Pedroso para que se possa reunir com a família, com quem não se encontra há quatro meses e meio.
ENGRAÇADINHO
Meninos e meninas brincavam com bananas. As crianças andavam nuas pelas praias até aos 8, 9 anos. A Pipi das Meias Altas mostrava as cuequinhas em praticamente todos os episódios. As "hot-pants" de hoje em dia parecem saiotes se comparadas com alguns calções de ginástica que se usavam nesse tempo...
Meninos e meninas brincavam com bananas. As crianças andavam nuas pelas praias até aos 8, 9 anos. A Pipi das Meias Altas mostrava as cuequinhas em praticamente todos os episódios. As "hot-pants" de hoje em dia parecem saiotes se comparadas com alguns calções de ginástica que se usavam nesse tempo...
Crónica de um ateu religioso
1990, noite quente. No velho estádio do Sporting, uma turba de jovens irresponsáveis insiste em pular junto ao palco onde canta o David Bowie, ao som de coisas tão inverosímeis como o Life on Mars ou o Sound and Vision. No extremo oposto do estádio, na bancada, um monte de gente ouve, calmamente, o concerto. São casais ou pessoas sozinhas, em comum o ar beatificado e os muitos charros que passam sonolentos, sem dono. Afinal, foram muitos anos à espera de ver o Camaleão ao vivo...
3 de Julho de 1973. Último concerto da tournée do mesmo Bowie e último da era Spiders from Mars. As imagens mostram, na assistência, adolescentes em êxtase, vivendo uma experiência mística mais tangível do que qualquer outra coisa que alguma vez tenham experimentado. (recomendo vivamente o DVD).
Hoje podemos saber com razoável precisão a consistência das fezes do Bowie, e a regularidade com que as liberta. Se ele vier a Portugal tocar, saberemos com toda a antecedência o décor, a constituição da banda de suporte, o alinhamento dos temas, etc. Se quisermos saber toda a história da gravação do último álbum, está à distãncia de um clique. Vê-lo será quase apenas uma formalidade, uma consequência de uma certa cultura de "validação pela presença". Não se vai a sítios para "ver" as coisas, vai-se para dizer que se esteve, para carimbar a certidão de vivência.
Em 1990 não havia Internet, e-mail ou TV Cabo. Em 1973 não havia Press Centers com dezenas de revistas em várias línguas. As notícias eram escassas e muito filtradas, os ídolos pop endeusados. Ver um concerto era uma coisa religiosa, elevada. Uma maneira de chegar perto de Deus. A profusão de informação que hoje se nos oferece matou muito da espiritualidade na fruição destes fenómenos. É tudo fácil e rápido. Mastiga e deita fora, venha o próximo.
Não há mal nenhum em aumentar a expectativa. Um ser humano "espiritualmente orientado" procuraria ir mais longe na sua busca da comunhão com o artista/criador, perseguindo a iluminação por via da arte dele. O mal está em convencerem-nos que, ao mesmo tempo que nos servem os ídolos numa bandeja, não há mais para buscar. Está tudo feito por nós, não é preciso dedicação, profissão de fé, perseverança, reflexão, etc. Não há espaço para a nossa relação com eles, há um "culto" oficial. Há um novo dogma.
Mataram (outra vez) Deus. E nós deixámos.
1990, noite quente. No velho estádio do Sporting, uma turba de jovens irresponsáveis insiste em pular junto ao palco onde canta o David Bowie, ao som de coisas tão inverosímeis como o Life on Mars ou o Sound and Vision. No extremo oposto do estádio, na bancada, um monte de gente ouve, calmamente, o concerto. São casais ou pessoas sozinhas, em comum o ar beatificado e os muitos charros que passam sonolentos, sem dono. Afinal, foram muitos anos à espera de ver o Camaleão ao vivo...
3 de Julho de 1973. Último concerto da tournée do mesmo Bowie e último da era Spiders from Mars. As imagens mostram, na assistência, adolescentes em êxtase, vivendo uma experiência mística mais tangível do que qualquer outra coisa que alguma vez tenham experimentado. (recomendo vivamente o DVD).
Hoje podemos saber com razoável precisão a consistência das fezes do Bowie, e a regularidade com que as liberta. Se ele vier a Portugal tocar, saberemos com toda a antecedência o décor, a constituição da banda de suporte, o alinhamento dos temas, etc. Se quisermos saber toda a história da gravação do último álbum, está à distãncia de um clique. Vê-lo será quase apenas uma formalidade, uma consequência de uma certa cultura de "validação pela presença". Não se vai a sítios para "ver" as coisas, vai-se para dizer que se esteve, para carimbar a certidão de vivência.
Em 1990 não havia Internet, e-mail ou TV Cabo. Em 1973 não havia Press Centers com dezenas de revistas em várias línguas. As notícias eram escassas e muito filtradas, os ídolos pop endeusados. Ver um concerto era uma coisa religiosa, elevada. Uma maneira de chegar perto de Deus. A profusão de informação que hoje se nos oferece matou muito da espiritualidade na fruição destes fenómenos. É tudo fácil e rápido. Mastiga e deita fora, venha o próximo.
Não há mal nenhum em aumentar a expectativa. Um ser humano "espiritualmente orientado" procuraria ir mais longe na sua busca da comunhão com o artista/criador, perseguindo a iluminação por via da arte dele. O mal está em convencerem-nos que, ao mesmo tempo que nos servem os ídolos numa bandeja, não há mais para buscar. Está tudo feito por nós, não é preciso dedicação, profissão de fé, perseverança, reflexão, etc. Não há espaço para a nossa relação com eles, há um "culto" oficial. Há um novo dogma.
Mataram (outra vez) Deus. E nós deixámos.
terça-feira, outubro 07, 2003 |
O QUE É QUE ACONTECEU AO FUTURO?
Quem, como eu, teve a ditosa sorte de crescer nos anos 80 ficou certamente marcado pelas imagens de um certo futuro. Comboios em monocarril circulando por altíssimos viadutos, cidades cobertas por campânulas, pequenos veículos aéreos algo parecidos com os monovolumes de hoje mas sem rodas, construções em altura, vestuário em tecidos sintéticos que nos fariam dispensar o colete reflector em caso de avaria na estrada... Era o futuro que eu esperava para breve, na minha infância, alimentado a sintetizadores analógicos e comida leofilizada.
De repente, houve uma inflexão qualquer e começou-se a pensar num outro futuro. Terá sido o advento do “digital” a foder isto tudo? Não digo que não... Ou bem que foi isso ou bem que foi o Relatório Bruntland, de 1987, que pela primeira vez falou em desenvolvimento sustentável. Seja como for, as visões “futuristas” do meu início dos 80 passaram a ser mais um ridículo “amanhã de ontem”. Compreendem o drama que é enfrentar um futuro mais parecido com o presente e para o qual não estava preparado?!
Tragam-me as campânulas! Tragam-me as discotecas do Buck Rogers em que as pessoas se abanavam segurando uns tubos luminosos! Tragam-me as portas deslizantes! Os “fatos-macaco” estilizados! Os monocarris! As naves! Os jardins suspensos! Os edifícios de formas impossíveis! Os estacionamentos de veículos aéreos unifamiliares que desafiavam a gravidade! Tragam-me a comida em pastilhas! As casas inteligentes! Os carros sem condutor! Tragam-me esse futuro estranho e fascinante em que não havia lixo, nem ribeiras poluídas, nem descargas de suiniculturas, nem demandas infrutíferas pelo lince ibérico... Caso não seja possível, então tragam-me um cheque para pagar ao psiquiatra.
Quem, como eu, teve a ditosa sorte de crescer nos anos 80 ficou certamente marcado pelas imagens de um certo futuro. Comboios em monocarril circulando por altíssimos viadutos, cidades cobertas por campânulas, pequenos veículos aéreos algo parecidos com os monovolumes de hoje mas sem rodas, construções em altura, vestuário em tecidos sintéticos que nos fariam dispensar o colete reflector em caso de avaria na estrada... Era o futuro que eu esperava para breve, na minha infância, alimentado a sintetizadores analógicos e comida leofilizada.
De repente, houve uma inflexão qualquer e começou-se a pensar num outro futuro. Terá sido o advento do “digital” a foder isto tudo? Não digo que não... Ou bem que foi isso ou bem que foi o Relatório Bruntland, de 1987, que pela primeira vez falou em desenvolvimento sustentável. Seja como for, as visões “futuristas” do meu início dos 80 passaram a ser mais um ridículo “amanhã de ontem”. Compreendem o drama que é enfrentar um futuro mais parecido com o presente e para o qual não estava preparado?!
Tragam-me as campânulas! Tragam-me as discotecas do Buck Rogers em que as pessoas se abanavam segurando uns tubos luminosos! Tragam-me as portas deslizantes! Os “fatos-macaco” estilizados! Os monocarris! As naves! Os jardins suspensos! Os edifícios de formas impossíveis! Os estacionamentos de veículos aéreos unifamiliares que desafiavam a gravidade! Tragam-me a comida em pastilhas! As casas inteligentes! Os carros sem condutor! Tragam-me esse futuro estranho e fascinante em que não havia lixo, nem ribeiras poluídas, nem descargas de suiniculturas, nem demandas infrutíferas pelo lince ibérico... Caso não seja possível, então tragam-me um cheque para pagar ao psiquiatra.
Crepúsculo
O homem não ri, mas baila um esboço de sorriso na sua cara. De mãos gravemente cruzadas sobre o farto abdómen, o severo perfil apenas contornado pelo feixe de luz que se escoa a custo por entre os pesados reposteiros, tem os olhos demasiado vivos para que a sua expressão possa parecer simpática. Sentado num pesado cadeirão de espaldar direito, desviado para um lado da sala, encerra em si o centro de gravidade da divisão austera.
Os seus interlocutores, três, desconfortáveis nas suas cadeiras, remexem-se inquietos.
- A saúde dele... começa um deles.
- Sim, que tem?, responde ele, impassível.
- Bem vê... aquilo está por um fio...
- Acha? E o Doutor - disse voltando-se para um outro que estava na sombra, por trás dele - acha que é coisa assim iminente?
O Doutor pôs um ar enfastiado e fez, com a mão, um gesto vago.
- Vê? - disse, voltando a encarar os três - É exagero seu.
O mais irrequieto dos três disparou nervosamente:
- Já se começa a falar de como é grotesco mantê-lo à frente disto. O homem parece um boneco, é penoso, sequer, olhar para ele!
- Penoso?!? - disse com inesperada dureza - Que sabe você disso? Só porque meia dúzia de estagiários em pasquins manhosos não têm mais sobre o que escrever?
Levantou-se bruscamente, mas logo se acalmou e dirigiu-se para a janela com estudada lentidão, enquanto pensava em voz alta. "O que conta é a figura que ele encarna. Ele pode desagradar a muitos, mas ainda é o chefe e a presença dele continua a impressionar. Não podemos dar sinais de fraqueza agora. Substituí-lo está fora de questão, até porque é uma decisão que não nos cabe". Virou-se para os interlocutores, as mãos cerradas sobre o peito, e declarou com ar dramático: "Vocês sabem que há acima de nós quem decida tudo..."
- Não é cristão sujeitá-lo a este sacrifício... - começou o terceiro.
Recortado contra a luz que entrava na sala pela janela, levantou a mão e interrompeu-o secamente:
- Não está nas nossas mãos. Ele sabia, quando aceitou, o sacrifício que se lhe pedia. Este assunto está encerrado.
Enquanto os três saíam, vergados, voltou-se para a janela e afastou ligeiramente os cortinados com a ponta do indicador. A Praça de São Pedro começava a encher-se de fiéis. "Além disso", pensou, "ele sabia que quem entra, já não sai..."
O homem não ri, mas baila um esboço de sorriso na sua cara. De mãos gravemente cruzadas sobre o farto abdómen, o severo perfil apenas contornado pelo feixe de luz que se escoa a custo por entre os pesados reposteiros, tem os olhos demasiado vivos para que a sua expressão possa parecer simpática. Sentado num pesado cadeirão de espaldar direito, desviado para um lado da sala, encerra em si o centro de gravidade da divisão austera.
Os seus interlocutores, três, desconfortáveis nas suas cadeiras, remexem-se inquietos.
- A saúde dele... começa um deles.
- Sim, que tem?, responde ele, impassível.
- Bem vê... aquilo está por um fio...
- Acha? E o Doutor - disse voltando-se para um outro que estava na sombra, por trás dele - acha que é coisa assim iminente?
O Doutor pôs um ar enfastiado e fez, com a mão, um gesto vago.
- Vê? - disse, voltando a encarar os três - É exagero seu.
O mais irrequieto dos três disparou nervosamente:
- Já se começa a falar de como é grotesco mantê-lo à frente disto. O homem parece um boneco, é penoso, sequer, olhar para ele!
- Penoso?!? - disse com inesperada dureza - Que sabe você disso? Só porque meia dúzia de estagiários em pasquins manhosos não têm mais sobre o que escrever?
Levantou-se bruscamente, mas logo se acalmou e dirigiu-se para a janela com estudada lentidão, enquanto pensava em voz alta. "O que conta é a figura que ele encarna. Ele pode desagradar a muitos, mas ainda é o chefe e a presença dele continua a impressionar. Não podemos dar sinais de fraqueza agora. Substituí-lo está fora de questão, até porque é uma decisão que não nos cabe". Virou-se para os interlocutores, as mãos cerradas sobre o peito, e declarou com ar dramático: "Vocês sabem que há acima de nós quem decida tudo..."
- Não é cristão sujeitá-lo a este sacrifício... - começou o terceiro.
Recortado contra a luz que entrava na sala pela janela, levantou a mão e interrompeu-o secamente:
- Não está nas nossas mãos. Ele sabia, quando aceitou, o sacrifício que se lhe pedia. Este assunto está encerrado.
Enquanto os três saíam, vergados, voltou-se para a janela e afastou ligeiramente os cortinados com a ponta do indicador. A Praça de São Pedro começava a encher-se de fiéis. "Além disso", pensou, "ele sabia que quem entra, já não sai..."
segunda-feira, outubro 06, 2003 |
EXISTÊNCIA
Diziam-me hoje ao almoço, com ar doutoral: "para se conseguir fazer humor, há que tirar partido do grande mal entendido que é esta existência".
Enquanto fazia exercícios de contorcionismo com a língua para desalojar o fiampo de vitela que se prendera entre um molar e o siso do rés-do-chão esquerdo, fui pensando no assunto. A minha clarividência já não é o que era... A única conclusão a que cheguei foi um redutor "Que se foda!", a qual não tive oportunidade de verbalizar dada a natureza e faixa etária dos restantes comensais.
Agora penso de novo. Se esta existência é um mal entendido que caminho devemos tomar? Tentar esclarecê-lo ou contribuir para que ninguém se entenda?
Assim como alguém arranjou nove maneiras diferentes de ver uma porra de uma flor (como vêem, não é uma questão de "sensibilidade" que preside à escolha da imagem mas uma adequação à linha de pensamento), também podemos olhar para a minha ou qualquer outra existência como bem nos apetecer. Até que ponto é que alguém se entende verdadeiramente para poder dizer que os outros incorrem num mal entendido a seu respeito? E, se todos pensássemos assim, como é que se conseguiria ser engraçado?
Tudo isto para redundar na questão que vos queria pôr: o humor faz-se, tem-se ou acha-se?
Diziam-me hoje ao almoço, com ar doutoral: "para se conseguir fazer humor, há que tirar partido do grande mal entendido que é esta existência".
Enquanto fazia exercícios de contorcionismo com a língua para desalojar o fiampo de vitela que se prendera entre um molar e o siso do rés-do-chão esquerdo, fui pensando no assunto. A minha clarividência já não é o que era... A única conclusão a que cheguei foi um redutor "Que se foda!", a qual não tive oportunidade de verbalizar dada a natureza e faixa etária dos restantes comensais.
Agora penso de novo. Se esta existência é um mal entendido que caminho devemos tomar? Tentar esclarecê-lo ou contribuir para que ninguém se entenda?
Assim como alguém arranjou nove maneiras diferentes de ver uma porra de uma flor (como vêem, não é uma questão de "sensibilidade" que preside à escolha da imagem mas uma adequação à linha de pensamento), também podemos olhar para a minha ou qualquer outra existência como bem nos apetecer. Até que ponto é que alguém se entende verdadeiramente para poder dizer que os outros incorrem num mal entendido a seu respeito? E, se todos pensássemos assim, como é que se conseguiria ser engraçado?
Tudo isto para redundar na questão que vos queria pôr: o humor faz-se, tem-se ou acha-se?
De orelhas em pé - Vb
O Médio Oriente esperneia, a União Europeia lamenta cautelosamente, os Estados Unidos calam-se. Israel atacou alvos palestinianos em território sírio, violando o espaço aéreo de dois países soberanos e bombardeando o território de um vizinho.
Não percebo o côro de protestos que se levanta de alguns lados, tal como não percebo a estranheza na não-condenação, por parte dos EEUU, do ataque. Afinal, Israel apenas fez o mesmo que os mesmos Estados Unidos - declarou o alinhamento da Síria com o Eixo do Mal e atacou, preventina ou punitivamente, pouco importa. Se este episódio resultar numa escalada regional da violência teremos ficado elucidados quanto à sageza de tal forma de lidar com os problemas.
Há, porém, uma ideia que me perturba. No dia 10 de Setembro de 2001, e nos meses anteriores, um país albergava, pelo menos, uma dúzia de terroristas suicidas, do mais perigoso e sanguinário que alguma vez existiu. Esse país fornecia-lhes, e forneceu-lhes, meios e formação para levarem a cabo o mais horrível atentado terrorista alguma vez efectuado. Seria isso razão suficiente para que esse país fosse alinhado no Eixo do Mal e justificar "acções militares preventivas" contra ele? É que esse país chama-se Estados Unidos da América...
De orelhas em pé - Va
A maçonaria portuguesa homenageou ontem, dia 5 de Outubro (não, nada tem de inocente, a data...), dois homens extraordinários do nosso país, a propósito dos 80 anos da sua iniciação.
Emídio Guerreiro, 104 anos de idade, e Fernando Valle, 103, mostraram-se sobejamente lúcidos e incomodados com a homenagem. Afinal, os maçons definem-se a si próprios como "homens livres e de bons costumes" e eles limitaram-se a cumprir o seu dever.
Não creio que inveje a idade que atingiram, nem tão pouco a lucidez com que lá chegam. Invejo, de certeza, a tranquila consciência com que olham para todo o século passado.
sexta-feira, outubro 03, 2003 |
O QUE É QUE ELA VÊ?
As mulheres não vêem como nós. Para ser mais rigoroso: as mulheres não vêem como eu. A minha miopia não vem para o caso, nem pretendo fazer divulgação científica de experiências de oftalmologia. O que eu quero dizer é que sou um básico: olho para qualquer coisa e vejo o que lá está. Uma mulher não; uma mulher olha, vê o que lá está, vê o que lá falta, vê o que ela lá punha e vê ainda o que "quer dizer" a maneira canhestra e inequívoca como eu olho para essa mesma coisa. Isto aplica-se a tudo: uma paisagem, uma casa, uma pessoa ou uma simples pedra.
Não lhes invejo essa capacidade, mas admiro-a. As mulheres dos quadros do Edward Hopper estão muitas vezes assim: a olhar para uma coisa ou pessoa ou sítio e a ver muitas. O que vai por dentro da cabeça de uma mulher é uma trama fascinante que bate qualquer obra de ficção. Pena é que essa trama se transmute tantas vezes em discursos ininteligíveis para quem, como eu, olha pela janela e só vê a vista.
As mulheres não vêem como nós. Para ser mais rigoroso: as mulheres não vêem como eu. A minha miopia não vem para o caso, nem pretendo fazer divulgação científica de experiências de oftalmologia. O que eu quero dizer é que sou um básico: olho para qualquer coisa e vejo o que lá está. Uma mulher não; uma mulher olha, vê o que lá está, vê o que lá falta, vê o que ela lá punha e vê ainda o que "quer dizer" a maneira canhestra e inequívoca como eu olho para essa mesma coisa. Isto aplica-se a tudo: uma paisagem, uma casa, uma pessoa ou uma simples pedra.
Não lhes invejo essa capacidade, mas admiro-a. As mulheres dos quadros do Edward Hopper estão muitas vezes assim: a olhar para uma coisa ou pessoa ou sítio e a ver muitas. O que vai por dentro da cabeça de uma mulher é uma trama fascinante que bate qualquer obra de ficção. Pena é que essa trama se transmute tantas vezes em discursos ininteligíveis para quem, como eu, olha pela janela e só vê a vista.
Um Novo Mundo - III
É um bocadinho irreprimível o sorriso desdenhoso que os ocidentais esboçam quando se fala do Japão. Entre visões de gueixas vestidas com floridos kimonos em casas de papel-de-arroz, tomando chá em mesas baixas, usando delicados chinelos e dormindo sobre almofadas de madeira, imagens de famílias felizes macaqueando a América próspera do pós-guerra e tenebrosos mafiosi que cortam os dedos, ficamos sempre com a sensação de que o Japão é um país que vive fora do tempo. Como se ditar o tempo fosse um exclusivo do Ocidente, arrogância que nos advém, quiçá, do facto de ser na Europa que está o relógio atómico que marca a hora certa.
Outra particularidade que identificamos rapidamente com os japoneses é a de praticarem – tudo o indica – a máxima do better life through technology. A ubiquidade do made in Japan em tudo o que era electrónica, na minha geração, associou indissoluvelmente o Japão à criação da chamada “electrónica de consumo”. Quando pensamos em audio, video, cinema em casa, televisão, etc., são sobretudo marcas japonesas que nos ocorrem imediatamente, apesar da pujante produção alemã e holandesa nessa área.
Dito isto, é - no mínimo! – despropositado que se chegue a certos extremos, e funda-se seguramente em algo mais que a perspectiva oriental do mundo em 16:9, contra os habituais 4:3 ou 3:2 ocidentais, o processo mental que levou à criação da solução tecnológica apresentada nesta página. Haverá limites para tudo? Creio (sinceramente) que, depois disto, não.
Além de tudo o resto, é um mito que cai, ferido de morte: o do japonês trabalhador obsessivo-compulsivo. Tudo mentira. Os japoneses são o povo mais preguiçoso do mundo.
É um bocadinho irreprimível o sorriso desdenhoso que os ocidentais esboçam quando se fala do Japão. Entre visões de gueixas vestidas com floridos kimonos em casas de papel-de-arroz, tomando chá em mesas baixas, usando delicados chinelos e dormindo sobre almofadas de madeira, imagens de famílias felizes macaqueando a América próspera do pós-guerra e tenebrosos mafiosi que cortam os dedos, ficamos sempre com a sensação de que o Japão é um país que vive fora do tempo. Como se ditar o tempo fosse um exclusivo do Ocidente, arrogância que nos advém, quiçá, do facto de ser na Europa que está o relógio atómico que marca a hora certa.
Outra particularidade que identificamos rapidamente com os japoneses é a de praticarem – tudo o indica – a máxima do better life through technology. A ubiquidade do made in Japan em tudo o que era electrónica, na minha geração, associou indissoluvelmente o Japão à criação da chamada “electrónica de consumo”. Quando pensamos em audio, video, cinema em casa, televisão, etc., são sobretudo marcas japonesas que nos ocorrem imediatamente, apesar da pujante produção alemã e holandesa nessa área.
Dito isto, é - no mínimo! – despropositado que se chegue a certos extremos, e funda-se seguramente em algo mais que a perspectiva oriental do mundo em 16:9, contra os habituais 4:3 ou 3:2 ocidentais, o processo mental que levou à criação da solução tecnológica apresentada nesta página. Haverá limites para tudo? Creio (sinceramente) que, depois disto, não.
Além de tudo o resto, é um mito que cai, ferido de morte: o do japonês trabalhador obsessivo-compulsivo. Tudo mentira. Os japoneses são o povo mais preguiçoso do mundo.
VIVAM OS NOVOS ESTÁDIOS DE FUTEBOL!
Fazia-me papagaios de papel e espingardas de madeira para ir com ele à caça.
Mapas para descobrir tesouros misteriosos.
Ensinou-me a andar e a nadar. A ler e a conversar. A obedecer e a questionar, a enfrentar, a ter coragem, a ser solidária e orgulhosa. Apontou-me os princípios dele e eu segui-os.
Os primeiros passos na política, as referências literárias, os esclarecimentos das dúvidas da adolescência.
Como era bom ser filha… Sem ter de o conduzir e alimentar e cuidar e explicar e proteger.
A doença de Alzheimer é uma doença terrível. Requer a vigilância do doente 24 horas por dia. Ninguém nos ensina, não existem livros: “Aprenda a cuidar do seu papá”; “Como se explica ao pai que somos a filha dele e não a prima ou irmã”; “Ensine o seu pai a fazer a barba”; “Como ensinar ao seu pai que não se deve roubar objectos nos supermercados”.
Estima-se que existam em Portugal 60.000 doentes de Alzheimer.
Foi recentemente inaugurada a sede da Associação Portuguesa de Familiares e Amigos de Doentes de Alzheimer que tem o único Centro de dia do país para estes doentes. Para onze.
Tenho agora a oportunidade de me revelar o ser humano que ele me ensinou a ser.
Não tenho filhos, mas deve ser a isto que vulgarmente se chama Amor Maternal.
Fazia-me papagaios de papel e espingardas de madeira para ir com ele à caça.
Mapas para descobrir tesouros misteriosos.
Ensinou-me a andar e a nadar. A ler e a conversar. A obedecer e a questionar, a enfrentar, a ter coragem, a ser solidária e orgulhosa. Apontou-me os princípios dele e eu segui-os.
Os primeiros passos na política, as referências literárias, os esclarecimentos das dúvidas da adolescência.
Como era bom ser filha… Sem ter de o conduzir e alimentar e cuidar e explicar e proteger.
A doença de Alzheimer é uma doença terrível. Requer a vigilância do doente 24 horas por dia. Ninguém nos ensina, não existem livros: “Aprenda a cuidar do seu papá”; “Como se explica ao pai que somos a filha dele e não a prima ou irmã”; “Ensine o seu pai a fazer a barba”; “Como ensinar ao seu pai que não se deve roubar objectos nos supermercados”.
Estima-se que existam em Portugal 60.000 doentes de Alzheimer.
Foi recentemente inaugurada a sede da Associação Portuguesa de Familiares e Amigos de Doentes de Alzheimer que tem o único Centro de dia do país para estes doentes. Para onze.
Tenho agora a oportunidade de me revelar o ser humano que ele me ensinou a ser.
Não tenho filhos, mas deve ser a isto que vulgarmente se chama Amor Maternal.
quinta-feira, outubro 02, 2003 |
De orelhas em pé - IV
Sempre me ensinaram que os detentores de responsabilidades governativas, políticas, sociais, religiosas, militares, etc., deviam cuidar de manter uma aparência impoluta, a salvo do menor reparo. À mulher de César não basta ser séria, tem que parecer séria.
É bastante óbvio que nem todos estudámos pela mesma cartilha. Por exemplo, se a obrigação dos governantes serem cidadãos exemplares fosse levada a sério, quando um Ministro da Ciência e do Ensino Superior colocasse por decreto seu a filha de um Ministro dos Negócios Estrangeiros no curso de mais difícil acesso, e ao abrigo de um regime especial reservado aos filhos do pessoal diplomático ao qual ela não tivesse direito, ambos acordariam amanhã não-ministros.
Não sendo assim, ainda alguém nos vai tentar convencer de que, a haver um favorecimento indevido da dita rapariga, ela teria sido colocada em Santa Maria e não na Universidade Nova...
P.S. Corrigi um lapso imperdoável. O Ministro que proferiu o despacho não foi o da Educação, foi o do Ensino Superior...
Injustiças
A minha gaja anda chateada comigo. Não, deixem-me re-escrever isto de uma forma mais correcta: a minha gaja anda mais chateada comigo do que é costume. Eu até compreendia e aceitava se fosse por me ter apanhado a alisar as rugas que a saia da boazona do 3ºB tem na bufa, ou a dar uma milonga épica a uma qualquer mulher avantajada de peito. Mas não foi nada disso, que eu sou discreto e cuidadoso...
A minha gaja anda chateada comigo porque eu não percebi que ela tinha ido ao cabeleireiro. Cortou quase 1 centímetro ao cabelo e avivou levemente o tom ruivo do cabelo, e eu não reparei. Fodi-me, claro. Deixei passar dois dias e ela, qual chaleira de apito estreito, explodiu em chiadeira chorosa, recheada de não-me-ligas-nenhumas, é-assim-que-gostas-de-mins e outras coisas ininteligíveis para um homem.
Não está certo! Só as mulheres é que se preocupam com estas minúcias, porque raio hão-de cobrar sobre o nosso saudável desprendimento? Para que não pensem que me estou a queixar sem razão, deixo-vos uma lista das coisas que ela não reparou que eu fiz, recentemente:
- A semana passada cortei as unhas dos pés. Nem é meu hábito ser tão cuidadoso com isso, afinal ainda em Maio as tinha cortado, quando o tempo começou a aquecer. Julgam que ela disse alguma coisa? Nada!
- Anteontem pus as peúgas para lavar. Lembro-me perfeitamente, tinha acabado de ver o jogo e estava parado, com ar bovino, a fixar o infinito e a contemplar os mistérios da vida e do Universo, quando reparei que o infinito era cinzento, tinha uns losangos esverdeados e cheirava. Maquinalmente (reparem, não me esforcei!), peguei nas peúgas entre as pontas do polegar e do indicador e levei-as para o cesto. Agradeceram vocês? Assim fez ela.
- Ainda ontem pus o lixo na rua. Estava a despejar cascas de amendois no saco e aquela merda estava sempre a cair. Percebi que a pilha de talões do totoloto que eu cuidadosamente equilibrara sobre as latas de cerveja não estava a deixar entrar mais nada para o saco. Agarrei no saco e levei-o para o latão, na rua. Quando voltei, esperava-me algum agradecimento? Ah ah ah! Nem pensar! Um berreiro a propósito de não sei que cascas e papéis espalhados desde a cozinha até à porta, foi o que foi.
E depois queixam-se. Ele há coisas muito injustas...
A minha gaja anda chateada comigo. Não, deixem-me re-escrever isto de uma forma mais correcta: a minha gaja anda mais chateada comigo do que é costume. Eu até compreendia e aceitava se fosse por me ter apanhado a alisar as rugas que a saia da boazona do 3ºB tem na bufa, ou a dar uma milonga épica a uma qualquer mulher avantajada de peito. Mas não foi nada disso, que eu sou discreto e cuidadoso...
A minha gaja anda chateada comigo porque eu não percebi que ela tinha ido ao cabeleireiro. Cortou quase 1 centímetro ao cabelo e avivou levemente o tom ruivo do cabelo, e eu não reparei. Fodi-me, claro. Deixei passar dois dias e ela, qual chaleira de apito estreito, explodiu em chiadeira chorosa, recheada de não-me-ligas-nenhumas, é-assim-que-gostas-de-mins e outras coisas ininteligíveis para um homem.
Não está certo! Só as mulheres é que se preocupam com estas minúcias, porque raio hão-de cobrar sobre o nosso saudável desprendimento? Para que não pensem que me estou a queixar sem razão, deixo-vos uma lista das coisas que ela não reparou que eu fiz, recentemente:
- A semana passada cortei as unhas dos pés. Nem é meu hábito ser tão cuidadoso com isso, afinal ainda em Maio as tinha cortado, quando o tempo começou a aquecer. Julgam que ela disse alguma coisa? Nada!
- Anteontem pus as peúgas para lavar. Lembro-me perfeitamente, tinha acabado de ver o jogo e estava parado, com ar bovino, a fixar o infinito e a contemplar os mistérios da vida e do Universo, quando reparei que o infinito era cinzento, tinha uns losangos esverdeados e cheirava. Maquinalmente (reparem, não me esforcei!), peguei nas peúgas entre as pontas do polegar e do indicador e levei-as para o cesto. Agradeceram vocês? Assim fez ela.
- Ainda ontem pus o lixo na rua. Estava a despejar cascas de amendois no saco e aquela merda estava sempre a cair. Percebi que a pilha de talões do totoloto que eu cuidadosamente equilibrara sobre as latas de cerveja não estava a deixar entrar mais nada para o saco. Agarrei no saco e levei-o para o latão, na rua. Quando voltei, esperava-me algum agradecimento? Ah ah ah! Nem pensar! Um berreiro a propósito de não sei que cascas e papéis espalhados desde a cozinha até à porta, foi o que foi.
E depois queixam-se. Ele há coisas muito injustas...
quarta-feira, outubro 01, 2003 |
AJUDA
Houve uma vez que ía a descer a Calçada da Ajuda e passou por mim uma menina a correr. Entrou ainda a correr pela porta de uma casa, onde a avó se dedicava às limpezas, e chocou com um balde de água com detergente que se derramou pelo chão. A avó repreendeu-a, cheia de carinho: "Cabra! Puta! Metes nojo até aos cães!"
Houve uma vez que fui a um café na Calçada da Memória em que o dono entrou, suspirando, com uma caixa de injecções na mão. Um dos clientes perguntou-lhe: "Então, estás doente?" e ele respondeu-lhe, com amizade, brandindo a dita caixa: "Havias de levar tantas na boca como eu já levei destas no cu!"
Houve uma vez, na paragem do 27 da Calçada do Galvão, em que, quando um cego subia para o dito autocarro, uma senhora gritava cá atrás, conscienciosa: "Dêem prioridade ao senhor que ele é audiovisual!"
Houve um vez, num prédio da Rua Dr. António Ribeiro dos Santos, pelas 8 e meia da manhã, em que uma vizinha abriu a porta enquanto eu estava de pijama, no vão da escada, insultando, respeitosamente, uma amiga que descia, chamando-lhe "Porca! Vais de mini-saia e óculos escuros para te fazeres aos homens! És porca!". O que era um ritual diário foi, então, tomado por discussão passional.
Houve muitas mais vezes, na Ajuda. Nem todas as histórias são minhas, mas todas são dela. Quem vive num bairro assim, dispensa bem a TVI.
Houve uma vez que ía a descer a Calçada da Ajuda e passou por mim uma menina a correr. Entrou ainda a correr pela porta de uma casa, onde a avó se dedicava às limpezas, e chocou com um balde de água com detergente que se derramou pelo chão. A avó repreendeu-a, cheia de carinho: "Cabra! Puta! Metes nojo até aos cães!"
Houve uma vez que fui a um café na Calçada da Memória em que o dono entrou, suspirando, com uma caixa de injecções na mão. Um dos clientes perguntou-lhe: "Então, estás doente?" e ele respondeu-lhe, com amizade, brandindo a dita caixa: "Havias de levar tantas na boca como eu já levei destas no cu!"
Houve uma vez, na paragem do 27 da Calçada do Galvão, em que, quando um cego subia para o dito autocarro, uma senhora gritava cá atrás, conscienciosa: "Dêem prioridade ao senhor que ele é audiovisual!"
Houve um vez, num prédio da Rua Dr. António Ribeiro dos Santos, pelas 8 e meia da manhã, em que uma vizinha abriu a porta enquanto eu estava de pijama, no vão da escada, insultando, respeitosamente, uma amiga que descia, chamando-lhe "Porca! Vais de mini-saia e óculos escuros para te fazeres aos homens! És porca!". O que era um ritual diário foi, então, tomado por discussão passional.
Houve muitas mais vezes, na Ajuda. Nem todas as histórias são minhas, mas todas são dela. Quem vive num bairro assim, dispensa bem a TVI.
A propósito de rankings
A escrita pública/publicável/publicada é um exercício de vaidade, pra começo de conversa. As formas tradicionais de expressão escrita pública, livros, revistas, jornais, etc., foram rapidamente substituídas pelos vários fóruns que se disseminaram pelo éter aquando do advento das BBS's e, mais tarde, da Internet. Neles dão largas ao seu ego milhões de pessoas que julgam ter algo a dizer. E têm. E dizem. Se o exercício do direito à liberdade de expressão é assim satisfeito pela mais democrática das ferramentas recentemente criadas - a Internet - tal não significa que quem escreva colhe reconhecimento ou aprovação de quem lê.
Os belogues são apenas mais uma das formas de expôr a produção intelectual escrita de todo o gato pingado, e alguém cunhou o neologismo umbigoesfera para caracterizar a essência da maior parte deles. Sendo que concordo em absoluto com essa natureza essencial dos belogues, falha por completo numa particularidade importantíssima.
Grande parte dos belogues mais famosos e visitados escritos em língua portuguesa-de-portugal é propriedade de gente habituada a produzir pensamento - políticos, escritores, críticos, jornalistas, professores, etc. E de uma atitude umbilical-contemplativa inicial, que não presenciei mas adivinho, passaram rapidamente a uma outra de procura e oferta de reconhecimento junto dos seus pares, arregimentamento de camaradas, confronto com os "adversários" e proscrição dos indignos. No fundo, estabeleceram-se cliques que, a seu tempo, estabilizaram em substância e delimitaram fronteiras, onde decorrem regularmente escaramuças, mais folclóricas do que propriamente sanguíneas.
O irónico disto tudo é que, independentemente de se considerarem "ateus" ou "cristãos", "de esquerda" ou "de direita", "sérios" ou "jocosos", "alinhados" ou "independentes", acabaram por formar um anel razoavelmente hermético, uma espécie de "perímetro de idoneidade" em que todos se conhecem, citam e consultam. Se tal coisa foi natural ou premeditada, escapa-me e não me interessa. O que interessa é que existe, e basta dar uma volta pelos belogues e começar a seguir links para perceber isto.
Qualquer ranking baseado em links, nestas condições, está irremediavelmente viciado em favor da situação. Não reconhecer isto e basear aqui análises ou congratulações é um bocadinho desonesto, para não dizer onanista. Mas, uma vez que a condição de base do reconhecimento mútuo está satisfeita, suponho que esteja tudo bem.
Eu, por mim, prefiro continuar o meu exercício de vaidade aqui, sossegadinho, lido e criticado por pessoas que me são próximas por convergência caótica de interesses, sem preocupações de saber se sou apreciado ou reconhecido por fulano ou sicrano que escrevem para o jornal "A" ou "B". Imagino que isso, para eles, seja de importância real e decisiva. Não é para mim. Por alguma razão, a maioria assina e assume quem é e o que faz, e outros há que se estão borrifando para isso. Como eu ou, a galáxias de distância, o Pipi, cujo lamento (que estranhei, reconheço) me suscitou estas linhas.
Acho que falei sobre "metabloguismo". Desculpem-me, eu vou já lavar a boca e as mãos.
A escrita pública/publicável/publicada é um exercício de vaidade, pra começo de conversa. As formas tradicionais de expressão escrita pública, livros, revistas, jornais, etc., foram rapidamente substituídas pelos vários fóruns que se disseminaram pelo éter aquando do advento das BBS's e, mais tarde, da Internet. Neles dão largas ao seu ego milhões de pessoas que julgam ter algo a dizer. E têm. E dizem. Se o exercício do direito à liberdade de expressão é assim satisfeito pela mais democrática das ferramentas recentemente criadas - a Internet - tal não significa que quem escreva colhe reconhecimento ou aprovação de quem lê.
Os belogues são apenas mais uma das formas de expôr a produção intelectual escrita de todo o gato pingado, e alguém cunhou o neologismo umbigoesfera para caracterizar a essência da maior parte deles. Sendo que concordo em absoluto com essa natureza essencial dos belogues, falha por completo numa particularidade importantíssima.
Grande parte dos belogues mais famosos e visitados escritos em língua portuguesa-de-portugal é propriedade de gente habituada a produzir pensamento - políticos, escritores, críticos, jornalistas, professores, etc. E de uma atitude umbilical-contemplativa inicial, que não presenciei mas adivinho, passaram rapidamente a uma outra de procura e oferta de reconhecimento junto dos seus pares, arregimentamento de camaradas, confronto com os "adversários" e proscrição dos indignos. No fundo, estabeleceram-se cliques que, a seu tempo, estabilizaram em substância e delimitaram fronteiras, onde decorrem regularmente escaramuças, mais folclóricas do que propriamente sanguíneas.
O irónico disto tudo é que, independentemente de se considerarem "ateus" ou "cristãos", "de esquerda" ou "de direita", "sérios" ou "jocosos", "alinhados" ou "independentes", acabaram por formar um anel razoavelmente hermético, uma espécie de "perímetro de idoneidade" em que todos se conhecem, citam e consultam. Se tal coisa foi natural ou premeditada, escapa-me e não me interessa. O que interessa é que existe, e basta dar uma volta pelos belogues e começar a seguir links para perceber isto.
Qualquer ranking baseado em links, nestas condições, está irremediavelmente viciado em favor da situação. Não reconhecer isto e basear aqui análises ou congratulações é um bocadinho desonesto, para não dizer onanista. Mas, uma vez que a condição de base do reconhecimento mútuo está satisfeita, suponho que esteja tudo bem.
Eu, por mim, prefiro continuar o meu exercício de vaidade aqui, sossegadinho, lido e criticado por pessoas que me são próximas por convergência caótica de interesses, sem preocupações de saber se sou apreciado ou reconhecido por fulano ou sicrano que escrevem para o jornal "A" ou "B". Imagino que isso, para eles, seja de importância real e decisiva. Não é para mim. Por alguma razão, a maioria assina e assume quem é e o que faz, e outros há que se estão borrifando para isso. Como eu ou, a galáxias de distância, o Pipi, cujo lamento (que estranhei, reconheço) me suscitou estas linhas.
Acho que falei sobre "metabloguismo". Desculpem-me, eu vou já lavar a boca e as mãos.