quarta-feira, outubro 29, 2003 |
Requiem pelo MEU Pipi
Já tanto se escreveu sobre o Pipi que corro o risco de apenas ressoar o que já foi dito por quem mais e melhor sabe dizer do assunto. Há, porém, uma razão funda que me conduz irresistivelmente para este lamento público; para quem não saiba, este belogue tem a sua raiz n’O Meu Pipi. Foi de pessoas que se conheceram nos comentários dess’outro belogue e que decidiram continuar em contacto através de uma mailing list que nasceu o porco. É por isso muito o que devemos colectivamente ao Pipi, e eu pretendo saldar a minha dívida hoje.
O Pipi é, basicamente, um tipo com uma ideia. E a ideia dele é escrever, muito e bem, fodas. Não escrever sobre fodas, nem reflectir sobre elas, o amor, as pulsões, as dúvidas, as traições, as obsessões ou tantas outras formas como é, literariamente, embrulhado o sexo. As fodas do Pipi não ilustram, não representam nem acrescentam, não são assunto nem objecto, são a própria matéria da sua escrita. Sendo as fodas a sua escrita, os assuntos são diversos e abordados com mais ou menos subtileza, sempre impregnados de um humor agudíssimo, sempre envolvidos em prosa rendilhada, bastas vezes salpicados de referências discretas que denunciam a sua imensa cultura e literacia. O veículo choca quem não queira ver para lá dele, mas além está um mundo...
O anonimato do Pipi, sem dúvida motivado pelo embaraço que seria assumir estes textos antes da obra ter corpo suficiente para que se tornasse perceptível, acaba por ser uma componente fundamental de toda a trama. É o Zé anónimo que fala como os zés falam, que coça os tomates, que não põe a roupa suja no cesto, que olha para o cu e para as mamas antes de pensar na gaja, mas que não perde a sua dimensão humana complexa no processo.
Recusa frontalmente o politicamente correcto, afronta as figuras públicas da cultura, das artes, da política, dos media, etc., chamando-os pelos nomes. Reduz, cuidadosa e sistematicamente, as mulheres à condição de pitos ou cricas e os homens à de abichanados. O Pipi é um manifesto. Num país em que é raro estar frio ou calor e a maioria dos dias são quentinhos ou frescotes, o Pipi despreza as meias tintas. Assume uma revolta e encena-a tornando-se algo que, estou seguro, odeia: um estilo de gajo que todos nós (re)conhecemos, machista, arrogante, vão e irritante. O Pipi é, nestes tempos em que tanto se fala de Qualidade, uma não-conformidade militante.
Como alguém, um dia, escreveu nos comentários do belogue, os textos do Pipi deviam ser impressos, copiados, escritos nas paredes ou entregues à porta das escolas e das igrejas. Mas o Pipi cedeu à tentação. Uma senhora viu nos textos do Pipi uma oportunidade editorial e seduziu-o. Ele aceitou, dócil. O rebelde penteou-se e vestiu um fatinho, James Cagney não subiu ao Céu em chamas - Top of the world, Ma!... - mas desceu por uma escada com corrimão e agora dedica-se a disparar fulminantes para gáudio da populaça. A sua escrita, em vez de subverter, passou a reverter. A inconformidade enquadrou-se, a revolta parece postiça e, temo-o, acabou-se a frontalidade e o despudor que fizeram d’O Meu Pipi uma das mais entusiasmantes aventuras literárias a que tive o privilégio de assistir (não foram muitas, confesso-o...).
Não foi pela publicação, que mais público não podia ser o Pipi. Estava disponível, 24 horas por dia, para todos. Não foi pela exposição suplementar, porque um blog chega muito mais longe do que um livro. Terá sido apenas pelo prestígio de ter um livro editado? Pelo dinheiro? Será O Meu Pipi, afinal, um meio de curto-circuitar o calvário que conduz à oportunidade de publicar uma obra?
Goza a tua fama e os teus proventos, Pipi, que bem os mereces. Deste-me horas de gozo imenso e será sempre um prazer ler-te neste registo (tenho o livro para me recordar). Mas, lamento dizer-to, tu e a Charlotte mataram o Meu Pipi.
Arrotos do Porco: