terça-feira, outubro 28, 2003 |
Orgulho Luso - I
Hoje, ao almoço, tive uma revelação. Vou propôr à Unesco que seja concedido o estatuto de Património da Humanidade à muito lusa “Sopa de Feijão com Hortaliça”. Neste caldo, de côr indefinível e consistência quase repugnante, pode estar a salvação da sociedade portuguesa, quiçá até da espécie humana!
Desde já, é um triunfo da reciclagem. Numa SdFcH cabe tudo, desde que se não omita o feijão e a couve, obviamente. A poderosa combinação de odor e travo destes ingredientes disfarça qualquer coisa que se oculte por baixo da película escura e opaca dum prato cheio e fumegante. Seja entrecosto, caroços de maçã, patas de frango ou espinhas de bacalhau, numa SdFcH tudo passa.
Depois, sempre foi uma refeição saudável e completa, muito antes de ter sido inventado e sistematicamente reformulado o conceito de refeição saudável e completa. Tem fartura de proteínas sem origem em carne vermelha, hidratos de carbono, fibras, vitaminas, sais minerais, etc., em proporções quase tóxicas, seguramente muito acima da DDR que tantas mixórdias empacotadas fazem questão de ostentar nas coloridas lombadas. É, por isso, um prato que sempre esteve, e estará, muito à frente do seu tempo, um farol de bons hábitos alimentares nas revoltas vagas das correntes científicas, estéticas ou esotéricas que tentam normar a alimentação. Os franceses inventaram a nouvelle cuisine? E então?, nós a temos a cuisine eternelle.
Há ainda um valor tradicionalista agregador associado a esta maravilha culinária; num tempo em que se sacrifica a saúde, o bem-estar, o lazer, os amigos, enfim, a vida, em nome do emprego, da carreira ou da oportunidade, comer uma SdFcH num prato fundo de loiça branca e espessa, sobre uma toalha aos quadrados e sentado num banco de madeira, daqueles com um furo a meio do assento, dá-nos uma sensação de pertença só igualada, e a custo, pelo beliscão na bochecha que o tio Amaral insiste em dar-nos pelo Natal enquanto nos chama “Tózinho” ou “Nelito”, apesar de já termos 45 anos e andarmos a tentar arranjar maneira de explicar à família, lá na terra, porque é que a nossa filha mais velha tatuou um dragão a côres nas costas sem que nós o percebessemos.
Há depois o sentimento religioso associado à ingestão de uma porção significativa de SdFcH. Fica-se prostrado em extasiada beatitude durante longos minutos, até percebermos que alguma coisa tomou conta do nosso organismo. É nesses momentos que o homem percebe quão pequeno é à face de Deus e de como há coisas na vida maiores que nós, que nos pegam pelo estômago e nos viram do avesso, devolvendo o mais composto e articulado executivo de fato-e-gravata a um estado de incivilidade primevo e impoluto. Bem, impoluto talvez não, mas isso é outra história…
No fundo, a SdFcH é um ícone da portugalidade, de prestígio equiparável à bandeira ou ao hino. Arranquem as flores dos jardins e substituam-nas por ordeiras filas de feijoeiros, ladeadas pelos esguios talos das couves galegas. Pendurem panelões fumegantes às janelas nos feriados nacionais, sirva-se diariamente às crianças e perfilemo-nos todos, em silenciosa continência, na presença de um prato de Sopa de Feijão com Hortaliça.
Arrotos do Porco: