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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


quarta-feira, outubro 08, 2003

Crónica de um ateu religioso



1990, noite quente. No velho estádio do Sporting, uma turba de jovens irresponsáveis insiste em pular junto ao palco onde canta o David Bowie, ao som de coisas tão inverosímeis como o Life on Mars ou o Sound and Vision. No extremo oposto do estádio, na bancada, um monte de gente ouve, calmamente, o concerto. São casais ou pessoas sozinhas, em comum o ar beatificado e os muitos charros que passam sonolentos, sem dono. Afinal, foram muitos anos à espera de ver o Camaleão ao vivo...

3 de Julho de 1973. Último concerto da tournée do mesmo Bowie e último da era Spiders from Mars. As imagens mostram, na assistência, adolescentes em êxtase, vivendo uma experiência mística mais tangível do que qualquer outra coisa que alguma vez tenham experimentado. (recomendo vivamente o DVD).

Hoje podemos saber com razoável precisão a consistência das fezes do Bowie, e a regularidade com que as liberta. Se ele vier a Portugal tocar, saberemos com toda a antecedência o décor, a constituição da banda de suporte, o alinhamento dos temas, etc. Se quisermos saber toda a história da gravação do último álbum, está à distãncia de um clique. Vê-lo será quase apenas uma formalidade, uma consequência de uma certa cultura de "validação pela presença". Não se vai a sítios para "ver" as coisas, vai-se para dizer que se esteve, para carimbar a certidão de vivência.

Em 1990 não havia Internet, e-mail ou TV Cabo. Em 1973 não havia Press Centers com dezenas de revistas em várias línguas. As notícias eram escassas e muito filtradas, os ídolos pop endeusados. Ver um concerto era uma coisa religiosa, elevada. Uma maneira de chegar perto de Deus. A profusão de informação que hoje se nos oferece matou muito da espiritualidade na fruição destes fenómenos. É tudo fácil e rápido. Mastiga e deita fora, venha o próximo.

Não há mal nenhum em aumentar a expectativa. Um ser humano "espiritualmente orientado" procuraria ir mais longe na sua busca da comunhão com o artista/criador, perseguindo a iluminação por via da arte dele. O mal está em convencerem-nos que, ao mesmo tempo que nos servem os ídolos numa bandeja, não há mais para buscar. Está tudo feito por nós, não é preciso dedicação, profissão de fé, perseverança, reflexão, etc. Não há espaço para a nossa relação com eles, há um "culto" oficial. Há um novo dogma.

Mataram (outra vez) Deus. E nós deixámos.

Arrotos do Porco:


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