terça-feira, outubro 21, 2003 |
FEIRA
Quando era pequeno gostava muito da Feira de Santa Iria, em Tomar. Em adolescente, achava aquilo obscenamente foleiro. Agora, tomado pela razão, gosto muito outra vez.
Não sei porque é que a OCDE e outras organizações congéneres gastam rios de dinheiro em estatísticas sobre desenvolvimento económico. Basta ir à Feira de Santa Iria - ou a qualquer outra, suponho - e toma-se o pulso à realidade do país. Percebe-se, também, que a globalização é bem real: as canecas de barro a dizer "Recordação de Tomar" vão sendo substituídas pelas contrafacções de "Hilfiger", "Ralph Lauren", "Burberrys" e o mais que se possa imaginar; os guarda-chuvas têm todos o autocolante "made in china"; as bancas de artesanato andino prosperam e o orgulho pátrio só é salvo pelos maços de 6 pares de peúgas a 5 euros...
Deixem-me ver se vos consigo explicar o meu fascínio recente pela feira:
Há toda uma sorte de rituais de feira que têm uma poesia muito própria. Os engates nos carros-de-choque; as posições arriscadas nos "carrocéis" mais modernaços como ritual de acasalamento; o faltar às aulas para ir à feira; os beijos tímidos com gosto ao açúcar das farturas; as mãos coladas pelo suor e pelo algodão doce; os dentes negros das castanhas mais tisnadas; os cheiros; as cores; os gritos; a música ensurdecedora... e a improbabilidade desta criação de um cenário apocalíptico para nele se fazerem negócios.
É nesta altura do ano que a população das freguesias rurais do concelho mais contacta com a cidade. É nesta altura que se assombram com os ideais de progresso e que, como vingança, se embebedam e se lançam em desacatos catárticos. Saem-lhes as notas das carteiras (ou dos envelopes, ou dos sacos de plástico) e entra-lhes na alma a riqueza da civilização (e as botas de trabalho, e as mantas para a azeitona - é grande e espaçosa a alma de um homem do campo).
Aquilo que mais me encanta e enternece é a satisfação visível que as mulheres que habitam fora da cidade por destino e não por opção tiram desta semana de feira. Por sete dias (ou apenas um, dependendo da frequência com que a possam visitar), podem sentir-se mulheres, consentem-se a liberdade de serem vaidosas, de comprar alguma coisa para elas, para a casa, para os filhos... Destes gestos nasce uma alegria, uma re-humanização que me fascina.
Acho que vou gostar muito da feira até ao fim dos meus dias - pelo menos enquanto continuar a ser o palco destes minúsculos milagres do consumo.


Quando era pequeno gostava muito da Feira de Santa Iria, em Tomar. Em adolescente, achava aquilo obscenamente foleiro. Agora, tomado pela razão, gosto muito outra vez.
Não sei porque é que a OCDE e outras organizações congéneres gastam rios de dinheiro em estatísticas sobre desenvolvimento económico. Basta ir à Feira de Santa Iria - ou a qualquer outra, suponho - e toma-se o pulso à realidade do país. Percebe-se, também, que a globalização é bem real: as canecas de barro a dizer "Recordação de Tomar" vão sendo substituídas pelas contrafacções de "Hilfiger", "Ralph Lauren", "Burberrys" e o mais que se possa imaginar; os guarda-chuvas têm todos o autocolante "made in china"; as bancas de artesanato andino prosperam e o orgulho pátrio só é salvo pelos maços de 6 pares de peúgas a 5 euros...
Deixem-me ver se vos consigo explicar o meu fascínio recente pela feira:
Há toda uma sorte de rituais de feira que têm uma poesia muito própria. Os engates nos carros-de-choque; as posições arriscadas nos "carrocéis" mais modernaços como ritual de acasalamento; o faltar às aulas para ir à feira; os beijos tímidos com gosto ao açúcar das farturas; as mãos coladas pelo suor e pelo algodão doce; os dentes negros das castanhas mais tisnadas; os cheiros; as cores; os gritos; a música ensurdecedora... e a improbabilidade desta criação de um cenário apocalíptico para nele se fazerem negócios.
É nesta altura do ano que a população das freguesias rurais do concelho mais contacta com a cidade. É nesta altura que se assombram com os ideais de progresso e que, como vingança, se embebedam e se lançam em desacatos catárticos. Saem-lhes as notas das carteiras (ou dos envelopes, ou dos sacos de plástico) e entra-lhes na alma a riqueza da civilização (e as botas de trabalho, e as mantas para a azeitona - é grande e espaçosa a alma de um homem do campo).
Aquilo que mais me encanta e enternece é a satisfação visível que as mulheres que habitam fora da cidade por destino e não por opção tiram desta semana de feira. Por sete dias (ou apenas um, dependendo da frequência com que a possam visitar), podem sentir-se mulheres, consentem-se a liberdade de serem vaidosas, de comprar alguma coisa para elas, para a casa, para os filhos... Destes gestos nasce uma alegria, uma re-humanização que me fascina.
Acho que vou gostar muito da feira até ao fim dos meus dias - pelo menos enquanto continuar a ser o palco destes minúsculos milagres do consumo.
Arrotos do Porco: