sábado, outubro 25, 2003 |
Bom fim de semana
Sou presunçoso quanto baste para não necessitar de estímulos que me façam sentir melhor que a generalidade da massa humana. Deixem-me explicar melhor: sou um optimista nato e gosto de Gente, e por essa razão não sinto nenhuma premência especial em comparar-me favoravelmente face ao meus pares. Serve esta introdução-à-laia-de-confissão para vos explicar porque hoje estou bem disposto.
Acabei de ver as notícias, julgo que da SIC. Numa delas falava-se do sr. Carlos Mourato, do seu burro Quarenta Bocas e da cadela (cujo nome não fixei, perdoa-me, perra...), que se fizeram à estrada há uns largos dias, desde Campo Maior até ao Novo Estádio da Luz, por ocasião da inauguração deste, com o confesso desejo de circular no passeio pedonal que o circunda. Podia apelar à minha veia sportinguista para uma biliar destilação sobre os meus adversários de estimação, e até o sr. Carlos Mourato ajudou, dizendo (com alguma graça) que os acessos do estádio eram mais apropriados ao Quarenta Bocas e respectiva carroça do que a automóveis. Mas não farei nenhum comentário acintoso.
Noutra notícia falava-se da encenação que a Editorial Presença preparou no Panteão Nacional para o lançamento da edição portuguesa do 5º volume da saga Harry Potter. Cabe aqui abrir um parêntesis e explicar que tenho para com a J. K. Rowling uma eterna dívida de gratidão; foi graças ao seu Harry Potter que o meu filho aprendeu a ler em quantidade e ganhou o gosto à palavra escrita por oposição às adaptações tele ou cinematográficas das obras. Não tenho qualquer dúvida que a editora dos livros tenha organizado esta festa (que o foi, a fazer fé nas imagens e declarações recolhidas no local) com o fim de promover um pouco mais do seu produto, escudada nas exorbitantes vendas de um milhão de exemplares dos volumes anteriores (em conjunto) e acautelando mais uma taluda que se prevê gorda, mas não vou de forma alguma criticar esta iniciativa publicitária.
Aquilo que me agradou e me pôs em paz com a humanidade nestas duas notícias é de outra monta. Por um lado, temos uma genuína manifestação popular de devoção ao clube e, por tabela, à bola. É um tipo, que não me interessa nada saber se é trabalhador agrícola ou delegado do Ministério Público, que pega no burro e na carroça e, com eles, num bocadinho do seu rural e periférico Campo Maior e ruma à capital para ver o novo estádio do clube do seu coração. Acresce a isto a carga simbólica do tandem burro-carroça vindos da raia alentejana e das evocações de ciganos e contrabandistas que lhe estão indissoluvelmente associadas. É o povo (encenado ou não) e o ritual da bola, nada de milhões, sistemas, árbitros, SAD’s e afins. É povo. É bola. É bonito.
Por outro lado temos uma festa de crianças e adolescentes encenada num dos símbolos da nação, o Panteão Nacional, chão sagrado onde repousam os restos de tantos heróis nacionais. Ainda sou do tempo em que estes fantasmas veneráveis pairavam ominosos e sobre nós lançavam o seu olhar grave e triste, seguros que estávamos de nunca sermos capazes de viver a nossa própria história de forma a honrar minimamente a sua pesada herança. Ontem à noite, este lugar tão impregnado de poeira dourada e de sussurros atemorizados foi palco de uma festa de jovens, que se entretiveram descontraidamente a dar largas à sua devoção a um pequeno herói de papel. Não consta que por tal tenha sido reduzida a importância aos impressionantes feitos dos nossos egrégios avós, e se eu fosse de acreditar em vida além-túmulo estou em crer que teria adivinhado um largo sorriso de satisfação na sua face, aborrecidos que devem andar de morar em tão severa e opressora morada. São jovens. É festa. É bonito.
Arrotos do Porco: