terça-feira, outubro 07, 2003 |
Crepúsculo
O homem não ri, mas baila um esboço de sorriso na sua cara. De mãos gravemente cruzadas sobre o farto abdómen, o severo perfil apenas contornado pelo feixe de luz que se escoa a custo por entre os pesados reposteiros, tem os olhos demasiado vivos para que a sua expressão possa parecer simpática. Sentado num pesado cadeirão de espaldar direito, desviado para um lado da sala, encerra em si o centro de gravidade da divisão austera.
Os seus interlocutores, três, desconfortáveis nas suas cadeiras, remexem-se inquietos.
- A saúde dele... começa um deles.
- Sim, que tem?, responde ele, impassível.
- Bem vê... aquilo está por um fio...
- Acha? E o Doutor - disse voltando-se para um outro que estava na sombra, por trás dele - acha que é coisa assim iminente?
O Doutor pôs um ar enfastiado e fez, com a mão, um gesto vago.
- Vê? - disse, voltando a encarar os três - É exagero seu.
O mais irrequieto dos três disparou nervosamente:
- Já se começa a falar de como é grotesco mantê-lo à frente disto. O homem parece um boneco, é penoso, sequer, olhar para ele!
- Penoso?!? - disse com inesperada dureza - Que sabe você disso? Só porque meia dúzia de estagiários em pasquins manhosos não têm mais sobre o que escrever?
Levantou-se bruscamente, mas logo se acalmou e dirigiu-se para a janela com estudada lentidão, enquanto pensava em voz alta. "O que conta é a figura que ele encarna. Ele pode desagradar a muitos, mas ainda é o chefe e a presença dele continua a impressionar. Não podemos dar sinais de fraqueza agora. Substituí-lo está fora de questão, até porque é uma decisão que não nos cabe". Virou-se para os interlocutores, as mãos cerradas sobre o peito, e declarou com ar dramático: "Vocês sabem que há acima de nós quem decida tudo..."
- Não é cristão sujeitá-lo a este sacrifício... - começou o terceiro.
Recortado contra a luz que entrava na sala pela janela, levantou a mão e interrompeu-o secamente:
- Não está nas nossas mãos. Ele sabia, quando aceitou, o sacrifício que se lhe pedia. Este assunto está encerrado.
Enquanto os três saíam, vergados, voltou-se para a janela e afastou ligeiramente os cortinados com a ponta do indicador. A Praça de São Pedro começava a encher-se de fiéis. "Além disso", pensou, "ele sabia que quem entra, já não sai..."
O homem não ri, mas baila um esboço de sorriso na sua cara. De mãos gravemente cruzadas sobre o farto abdómen, o severo perfil apenas contornado pelo feixe de luz que se escoa a custo por entre os pesados reposteiros, tem os olhos demasiado vivos para que a sua expressão possa parecer simpática. Sentado num pesado cadeirão de espaldar direito, desviado para um lado da sala, encerra em si o centro de gravidade da divisão austera.
Os seus interlocutores, três, desconfortáveis nas suas cadeiras, remexem-se inquietos.
- A saúde dele... começa um deles.
- Sim, que tem?, responde ele, impassível.
- Bem vê... aquilo está por um fio...
- Acha? E o Doutor - disse voltando-se para um outro que estava na sombra, por trás dele - acha que é coisa assim iminente?
O Doutor pôs um ar enfastiado e fez, com a mão, um gesto vago.
- Vê? - disse, voltando a encarar os três - É exagero seu.
O mais irrequieto dos três disparou nervosamente:
- Já se começa a falar de como é grotesco mantê-lo à frente disto. O homem parece um boneco, é penoso, sequer, olhar para ele!
- Penoso?!? - disse com inesperada dureza - Que sabe você disso? Só porque meia dúzia de estagiários em pasquins manhosos não têm mais sobre o que escrever?
Levantou-se bruscamente, mas logo se acalmou e dirigiu-se para a janela com estudada lentidão, enquanto pensava em voz alta. "O que conta é a figura que ele encarna. Ele pode desagradar a muitos, mas ainda é o chefe e a presença dele continua a impressionar. Não podemos dar sinais de fraqueza agora. Substituí-lo está fora de questão, até porque é uma decisão que não nos cabe". Virou-se para os interlocutores, as mãos cerradas sobre o peito, e declarou com ar dramático: "Vocês sabem que há acima de nós quem decida tudo..."
- Não é cristão sujeitá-lo a este sacrifício... - começou o terceiro.
Recortado contra a luz que entrava na sala pela janela, levantou a mão e interrompeu-o secamente:
- Não está nas nossas mãos. Ele sabia, quando aceitou, o sacrifício que se lhe pedia. Este assunto está encerrado.
Enquanto os três saíam, vergados, voltou-se para a janela e afastou ligeiramente os cortinados com a ponta do indicador. A Praça de São Pedro começava a encher-se de fiéis. "Além disso", pensou, "ele sabia que quem entra, já não sai..."
Arrotos do Porco: