sexta-feira, novembro 28, 2003 |
ALERTA DE FIM-DE-SEMANA: CUIDADO COM AS MÁS COMPANHIAS...
The Frog Princess, de Neil Hannon Tradução livre de Vareta Funda
I met a girl, she was a frog princess
Conheci uma gaja boazuda, armada em tia
I guess I ought to make it clear
Mas antes que se ponham p'raí com merdas eu explico
That I saw nothing through her see-through dress
'Tava tão bêbedo que só reparei que se viam as mamas pelas transparências que vestia
Until she whispered in my ear
Quando a serigaita me disse
"You don't really love me and I don't really mind
Você nem é bem o meu género, mas isso também não interessa nada
'Cause I don't love anybody,
Qu'isto a gente que é com'à gente nem liga muito ó amor e essas coisas
That stuff is just a waste of time
Isso é uma possidonice, uma sopeirada
Your place or mine?"
Ouça, quer ir lá a casa que a mãe hoje não 'tá?
I met a girl, she was a complete mess
Mesmo bêbedo deu para ver na alhada em que me estava a enfiar
I should've left her well alone—but oh no, not me!
Mas o sangue já estava a descer e, naquelas horas, um buraco é um buraco
I had to see if underneath that dress
E sempre queria ver se ela mantinha a terceira pessoa do singular
Her heart was really made of stone
Quando estivesse de gatas a levar com ele...
I met a girl, she was a frog princess
Foi ela a meter conversa: "Eu vi o seu blog quando andava à procura de onde é que se compra Burberry's em Portugal!
And yes I do regret it now
E eu pensei: "estou fodido com esta tioca de merda..."
But how was I to know that just one kiss
Mas depois de uns beijos e de uns apalpanços, vi que tinha fio dental
Could turn my frog into a cow?
E percebi que ela era como a Chiquita e queria "Festa na cama"
And now I'm rid of her I must confess
Agora que já vazei os colhões tenho que vos dizer
To thinking 'bout what might have been
Que a gaja era uma seca de todo o tamanho
And I can visualise my frog princess
Daquelas que dá vontade, depois de a foder
Beneath a shining guillotine
De a enviar como repórter de guerra para o Iraque
You don't really love me and I don't really mind
Deixei-lhe um bilhete: Tu, minha putéfiazita,
'Cause I don't love anybody,
És uma peneirenta merdosa que não interessa a niguém
I come and go through people's love lives
Mas como eu sou um gajo porreiro e tu nem te mexes mal
Your place or mine?
Deixo-te aqui o meu número de telemóvel...
in "Casanova", The Divine Comedy
The Frog Princess, de Neil Hannon Tradução livre de Vareta Funda
I met a girl, she was a frog princess
Conheci uma gaja boazuda, armada em tia
I guess I ought to make it clear
Mas antes que se ponham p'raí com merdas eu explico
That I saw nothing through her see-through dress
'Tava tão bêbedo que só reparei que se viam as mamas pelas transparências que vestia
Until she whispered in my ear
Quando a serigaita me disse
"You don't really love me and I don't really mind
Você nem é bem o meu género, mas isso também não interessa nada
'Cause I don't love anybody,
Qu'isto a gente que é com'à gente nem liga muito ó amor e essas coisas
That stuff is just a waste of time
Isso é uma possidonice, uma sopeirada
Your place or mine?"
Ouça, quer ir lá a casa que a mãe hoje não 'tá?
I met a girl, she was a complete mess
Mesmo bêbedo deu para ver na alhada em que me estava a enfiar
I should've left her well alone—but oh no, not me!
Mas o sangue já estava a descer e, naquelas horas, um buraco é um buraco
I had to see if underneath that dress
E sempre queria ver se ela mantinha a terceira pessoa do singular
Her heart was really made of stone
Quando estivesse de gatas a levar com ele...
I met a girl, she was a frog princess
Foi ela a meter conversa: "Eu vi o seu blog quando andava à procura de onde é que se compra Burberry's em Portugal!
And yes I do regret it now
E eu pensei: "estou fodido com esta tioca de merda..."
But how was I to know that just one kiss
Mas depois de uns beijos e de uns apalpanços, vi que tinha fio dental
Could turn my frog into a cow?
E percebi que ela era como a Chiquita e queria "Festa na cama"
And now I'm rid of her I must confess
Agora que já vazei os colhões tenho que vos dizer
To thinking 'bout what might have been
Que a gaja era uma seca de todo o tamanho
And I can visualise my frog princess
Daquelas que dá vontade, depois de a foder
Beneath a shining guillotine
De a enviar como repórter de guerra para o Iraque
You don't really love me and I don't really mind
Deixei-lhe um bilhete: Tu, minha putéfiazita,
'Cause I don't love anybody,
És uma peneirenta merdosa que não interessa a niguém
I come and go through people's love lives
Mas como eu sou um gajo porreiro e tu nem te mexes mal
Your place or mine?
Deixo-te aqui o meu número de telemóvel...
in "Casanova", The Divine Comedy
De orelhas em pé - VII
Ouço hoje, na tê-é-séfe, palavras dos nossos Primeiros. A propósito de não-sei-o-quê vem a Revisão Constitucional. Diz o Sampaio que é pernicioso estar permanentemente a rever a Lei Fundamental do país, sob pena de se desvirtuar o texto, e que não hesitará em enviar o texto revisto ao Tribunal Constitucional, para aquilatar de eventuais irregularidades face à novel Constituição Europeia que se agiganta no horizonte. Contrapõe o Durão que as revisões são necessárias para melhorar a Constituição, dado que esta nasceu "demasiado ideológica" (as aspas são minhas mas reproduzem a idéia) e só a partir de 1982 se terá tornado verdadeiramente democrática. E remata, num exercício excelente de gincana política, dizendo que o próprio PR reconhece a necessidade de uma revisão, para adequar a nossa Constituição à Europeia.
Argumentos mais ou menos falaciosos à parte, o que aqui se ensaia é o confronto de duas posições fundamentais. Por um lado temos a política "realista" do Governo, que pretende ter um texto constitucional que provoque o mínimo dos engulhos quando nos enfiarem a Carta Europeia pela goela abaixo, assumindo que pouco ou nada tem a dizer quanto à futura Constituição da Europa. Por outro temos o Presidente a defender a nossa lei fundamental e procurando apenas garantir que uma futura revisão não borre a pintura. Na sua forma mais simples, pode-se enunciar a questão como a diferença entre os que acham que nos devemos conformar à União Europeia e os que pensam que a UE deve acomodar todos, reconhecendo a sua diversidade.
Sabendo quão dependente Portugal é/está dos fundos estruturais e como está espartilhado pelo malfadado PEC, para só citar os dois exemplos mais flagrantes, o resultado final pode não ser muito difícil de prever. O que falta determinar é até que ponto a deslocação do discurso político para o campo da realidade e do pragmatismo causou esta mesma situação. Faz falta a este país discutir política em vez de políticas. E o Governo anunciar que vai a jogo sem convicção não ajuda.
quinta-feira, novembro 27, 2003 |
Eia! Olh'ó Stôr!
E mais uma cantiguinha para os famosos... Desta vez, recordando Paulo de Carvalho:
"Dez anos é muito tempo
Muitas horas muitos dias a cantar..."
E mais uma cantiguinha para os famosos... Desta vez, recordando Paulo de Carvalho:
"Dez anos é muito tempo
Muitas horas muitos dias a cantar..."
quarta-feira, novembro 26, 2003 |
Eu até lhe podia dar um título a puxar ao engraçado... assim "tipo": Crónica de uma morte anunciada... Era divertido, não era? Tinha piada, pois tinha? Mas não vale a pena.
Cito de memória um clássico da canção ligeira portuguesa, imortalizado, se não estou em erro, por essa matrafona-empresária-do-ramo-das-casas-de-fado, de seu nome artístico Lenita Gentil.
"Eles foram tão longe, eles foram tão longe
E ficaram tão perto de ir mais além
Eles foram tão longe, eles foram tão longe
E ficámos tão perto de sermos alguém".
Proponho a reedição deste tema sob um novo título
"Canção do combate ao défice"
Cito de memória um clássico da canção ligeira portuguesa, imortalizado, se não estou em erro, por essa matrafona-empresária-do-ramo-das-casas-de-fado, de seu nome artístico Lenita Gentil.
"Eles foram tão longe, eles foram tão longe
E ficaram tão perto de ir mais além
Eles foram tão longe, eles foram tão longe
E ficámos tão perto de sermos alguém".
Proponho a reedição deste tema sob um novo título
"Canção do combate ao défice"
terça-feira, novembro 25, 2003 |
E X C L U S I V O ! ! !
Honrando a recente mas fulminante tradição nacional da "trash literature", orgulhamo-nos de apresentar, em pré-publicação, o primeiro capítulo do mais recente lançamento do género no nosso país. A autora, por razões óbvias, pretende manter o anonimato mas dispõe-se a dar a cara. Assim, só avisa as amigas do café e as vizinhas invejosas nem se chegam a dar conta de que é ela a mulher por detrás do esperado sucesso de...
SOU TÃO CABRA COMO AS OUTRAS
CAPÍTULO I - Aquele filho da puta...
"Estou-me bem a foder!", pensou Carmo enquanto limpava as axilas e os seios com uma pequena toalha de turco humedecida. Gostava daquela toalha. Comprara-a nos Armazéns Paris em Lisboa, nuns saldos, há dois ou três anos. Não tinha sido barata, mas o turco era bom, fofo, não largava pêlo, e os seus tons de laranja e verde casavam na perfeição com o mosaico de pastilha da Roca que, por capricho, mandara instalar na casa de banho contígua ao seu quarto de dormir. Achava-se malandra e moderna ao formular aquele pensamento cru mas genuíno. "Estou-me bem a foder!", repetiu para consigo e não conseguiu reprimir uma pequena risada. "Ai, Carmo, Carmo!", pensou ela e agora excuso de escrever mais isto porque a leitora já se deve ter apercebido de que quando eu ponho uma frase entre aspas isso quer dizer que é a protagonista a pensar. Portanto: "Ai, Carmo, Carmo!", pensou ela, mas isto já nem era preciso eu escrever. "Tens 37 anos, mulher, e ainda coras um bocadinho quando a palavra foder te vem ao espírito..." As reticências, claro, ela não pensou, mas permitem à leitora imaginar que a palavra espírito ficara a ecoar na mente da protagonista. Assim: espírito, espírit, espír, pír, pír, pí. E pí-pí-pí fez nesse preciso momento o seu relógio despertador, uma peça bem patusca em plexiglás que comprara por tuta e meia num daqueles desvarios consumistas que a levara à Habitat do Colombo numa tarde de chuva. Agora, a minha editora disse-me para fazer aqui um parágrafo.
(parágrafo)
"Ainda bem que ponho o despertador para me lembrar de tomar a melatonina. Como sou uma mulher muito viajada e sofro constantemente com o jet-lag por causa das viagens que faço à América do Sul e à Ásia para escolher produtos assim típicos e giros e não muito caros para depois vender na minha loja que é ali na Alta de Lisboa, vocês sabem, ao Lumiar?, uns prédios novos?, pois, e depois vendo-os aí mas antes viajo para os ir comprar e aquilo cansa-me muito e antes que me dê para aqui uma fibromialgia tomo mas é uns comprimidinhos que me indicou a Caetana e que diz que são de melatonina e que o marido que passa o tempo entre Lisboa e NY toma e que diz que fazem um mar de bem e que uma pessoa nem sente as horas de sono que perde." No fim deste longo pensamento, e jogando a toalha no cesto da roupa - uma coisa amorosa, em palhinha, que se tinha vendido muito bem na loja, neste Verão - avançou até ao quarto de dormir, abriu o seu closet e fez a sua escolha da roupa que iria levar para o jantar dessa noite. Sim, porque era de noite. Quer dizer, se ía jantar, devia ser de noite. A menos que fosse no pino do Verão, daqueles dias que nunca mais acabam, chega-se às dez horas da noite e vai-se a ver e ainda é de dia e é uma grande maçada porque uma pessoa vai de férias carregada com vestidos de noite e passa dias e dias sem usar mais nada senão uma saída de praia. Mas o que interessa é que a Carminho, a personagem que criei para protagonista e que, vão ver quando chegarem ao fim do livro, é parecedíssima com uma amiga minha que concerteza não conhecem, a Carminho, dizia, ía jantar. "Não acredito que aceitei este jantar com o Salvador Lorvão d'Albuquerque. Ele é um amor, é civilizadíssimo, as nossas famílias conhecem-se desde sempre, as nossas mães passavam férias juntas em São Martinho do Porto, e a irmã dele, a Lenicha, foi minha colega no Sagrado Coração de Maria, e isso tudo. Mas é um traste. Só não penso mais nisso agora para não antecipar o diálogo que vai acontecer a seguir." É para fazer parágrafo outra vez, não é?
(outro parágrafo)
Bom. A Carmo saiu de casa, desceu à garage, entrou no seu carro - e isso, minha rica leitora que me desculpe, mas para marcas de carro é que eu não tenho cabeça - e lá foi ao restaurante. E no caminho pensou: "Aquele Salvador... Combinar num restaurante da Linha com vista para o mar só para dar uma de romântico...". O restaurante, posso-vos adiantar, era o Porto de Santa Maria. À entrada, cumprimentou o Francisco Pinto Balsemão e a Mercedes.
- Tita!, mas você 'tá óptima! E o Chico também está com um ar estupendo!
O casal Balsemão não lhe respondeu porque não a conheciam e a Carmo lá viu o Salvador, já sentado à mesa, e caminhou até à mesa onde estava sentado o Salvador que esperava por ela.
- Olé, Salvador!
- Carmo! Viva!
Um beijinho.
- E então, Salvador? Que desculpa é que arranjou para que a Inez, a sua mulher, não desconfiasse deste jantar fora de casa?
- Ouça, Carmo. Você nem acredita. Não sabia muito bem o que havia de dizer e lembrei-me duma coisa que nunca falha: disse-lhe que tinha uma reunião no escritório e que depois íamos todos jantar.
- Mas desde quando é que você trabalha num escritório?!
- Carmo, ouça. Isso também não tem importância. A Inez não é pessoa de reparar e se perguntar alguma coisa digo-lhe que foi p'aí num escritório qualquer.
- E o que é que você tem p'a me dizer, Salvador?
- Carmo, ouça. Não sei. Apeteceu-me estar consigo.
- Você é um charme, Salvador! As coisas que você diz!...
- Não, ouça, Carmo. É que foi mesmo assim. Lembrei-me de si e tive que lhe tufonar no momento. Assim uma coisa género saudade, percebe?
- Desde a última vez que foi lá a casa nunca mais disse nada...
- Carmo, ouça. Isto é complicado. A Inez, a quinta dos pais, os cães...
- Eu percebo, Salvador. Mas fiquei à espera duma palavra, sei lá. Que me tivesse tufonado a dizer que foi bom, que me queria voltar a ver.
- Mas ouça, Carmo. Isto nunca pode ser nada de sério, não é?
- P'amor de Deus, Salvador! Até me faz rir! Ah ah ah! E acha, você acha, que eu queria algo de sério? Consigo? P'amor de Deus...
Nesse momento, deram-se as mãos por cima da mesa e com as postas de cherne ainda mal debicadas, saíram os dois e entraram cada um em seu carro rumo à casa de Carmo. E, no caminho, Carmo pensava: "Estou-me bem a foder! Vou para mais uma noite de cama com este querido que encorna uma das minhas melhores amigas... Se não fosse comigo, eu era a primeira a ir-lhe contar... Onde é que já se viu! Aquele filho da puta... (pausa) Carmo! Tu hoje estás uma ordinareca nos teus pensamentos!" E soltou mais uma risadinha...
Este é o livro que pode mudar a sua vida. E lembre-se: foi aqui que você leu primeiro!
Honrando a recente mas fulminante tradição nacional da "trash literature", orgulhamo-nos de apresentar, em pré-publicação, o primeiro capítulo do mais recente lançamento do género no nosso país. A autora, por razões óbvias, pretende manter o anonimato mas dispõe-se a dar a cara. Assim, só avisa as amigas do café e as vizinhas invejosas nem se chegam a dar conta de que é ela a mulher por detrás do esperado sucesso de...
SOU TÃO CABRA COMO AS OUTRAS
CAPÍTULO I - Aquele filho da puta...
"Estou-me bem a foder!", pensou Carmo enquanto limpava as axilas e os seios com uma pequena toalha de turco humedecida. Gostava daquela toalha. Comprara-a nos Armazéns Paris em Lisboa, nuns saldos, há dois ou três anos. Não tinha sido barata, mas o turco era bom, fofo, não largava pêlo, e os seus tons de laranja e verde casavam na perfeição com o mosaico de pastilha da Roca que, por capricho, mandara instalar na casa de banho contígua ao seu quarto de dormir. Achava-se malandra e moderna ao formular aquele pensamento cru mas genuíno. "Estou-me bem a foder!", repetiu para consigo e não conseguiu reprimir uma pequena risada. "Ai, Carmo, Carmo!", pensou ela e agora excuso de escrever mais isto porque a leitora já se deve ter apercebido de que quando eu ponho uma frase entre aspas isso quer dizer que é a protagonista a pensar. Portanto: "Ai, Carmo, Carmo!", pensou ela, mas isto já nem era preciso eu escrever. "Tens 37 anos, mulher, e ainda coras um bocadinho quando a palavra foder te vem ao espírito..." As reticências, claro, ela não pensou, mas permitem à leitora imaginar que a palavra espírito ficara a ecoar na mente da protagonista. Assim: espírito, espírit, espír, pír, pír, pí. E pí-pí-pí fez nesse preciso momento o seu relógio despertador, uma peça bem patusca em plexiglás que comprara por tuta e meia num daqueles desvarios consumistas que a levara à Habitat do Colombo numa tarde de chuva. Agora, a minha editora disse-me para fazer aqui um parágrafo.
(parágrafo)
"Ainda bem que ponho o despertador para me lembrar de tomar a melatonina. Como sou uma mulher muito viajada e sofro constantemente com o jet-lag por causa das viagens que faço à América do Sul e à Ásia para escolher produtos assim típicos e giros e não muito caros para depois vender na minha loja que é ali na Alta de Lisboa, vocês sabem, ao Lumiar?, uns prédios novos?, pois, e depois vendo-os aí mas antes viajo para os ir comprar e aquilo cansa-me muito e antes que me dê para aqui uma fibromialgia tomo mas é uns comprimidinhos que me indicou a Caetana e que diz que são de melatonina e que o marido que passa o tempo entre Lisboa e NY toma e que diz que fazem um mar de bem e que uma pessoa nem sente as horas de sono que perde." No fim deste longo pensamento, e jogando a toalha no cesto da roupa - uma coisa amorosa, em palhinha, que se tinha vendido muito bem na loja, neste Verão - avançou até ao quarto de dormir, abriu o seu closet e fez a sua escolha da roupa que iria levar para o jantar dessa noite. Sim, porque era de noite. Quer dizer, se ía jantar, devia ser de noite. A menos que fosse no pino do Verão, daqueles dias que nunca mais acabam, chega-se às dez horas da noite e vai-se a ver e ainda é de dia e é uma grande maçada porque uma pessoa vai de férias carregada com vestidos de noite e passa dias e dias sem usar mais nada senão uma saída de praia. Mas o que interessa é que a Carminho, a personagem que criei para protagonista e que, vão ver quando chegarem ao fim do livro, é parecedíssima com uma amiga minha que concerteza não conhecem, a Carminho, dizia, ía jantar. "Não acredito que aceitei este jantar com o Salvador Lorvão d'Albuquerque. Ele é um amor, é civilizadíssimo, as nossas famílias conhecem-se desde sempre, as nossas mães passavam férias juntas em São Martinho do Porto, e a irmã dele, a Lenicha, foi minha colega no Sagrado Coração de Maria, e isso tudo. Mas é um traste. Só não penso mais nisso agora para não antecipar o diálogo que vai acontecer a seguir." É para fazer parágrafo outra vez, não é?
(outro parágrafo)
Bom. A Carmo saiu de casa, desceu à garage, entrou no seu carro - e isso, minha rica leitora que me desculpe, mas para marcas de carro é que eu não tenho cabeça - e lá foi ao restaurante. E no caminho pensou: "Aquele Salvador... Combinar num restaurante da Linha com vista para o mar só para dar uma de romântico...". O restaurante, posso-vos adiantar, era o Porto de Santa Maria. À entrada, cumprimentou o Francisco Pinto Balsemão e a Mercedes.
- Tita!, mas você 'tá óptima! E o Chico também está com um ar estupendo!
O casal Balsemão não lhe respondeu porque não a conheciam e a Carmo lá viu o Salvador, já sentado à mesa, e caminhou até à mesa onde estava sentado o Salvador que esperava por ela.
- Olé, Salvador!
- Carmo! Viva!
Um beijinho.
- E então, Salvador? Que desculpa é que arranjou para que a Inez, a sua mulher, não desconfiasse deste jantar fora de casa?
- Ouça, Carmo. Você nem acredita. Não sabia muito bem o que havia de dizer e lembrei-me duma coisa que nunca falha: disse-lhe que tinha uma reunião no escritório e que depois íamos todos jantar.
- Mas desde quando é que você trabalha num escritório?!
- Carmo, ouça. Isso também não tem importância. A Inez não é pessoa de reparar e se perguntar alguma coisa digo-lhe que foi p'aí num escritório qualquer.
- E o que é que você tem p'a me dizer, Salvador?
- Carmo, ouça. Não sei. Apeteceu-me estar consigo.
- Você é um charme, Salvador! As coisas que você diz!...
- Não, ouça, Carmo. É que foi mesmo assim. Lembrei-me de si e tive que lhe tufonar no momento. Assim uma coisa género saudade, percebe?
- Desde a última vez que foi lá a casa nunca mais disse nada...
- Carmo, ouça. Isto é complicado. A Inez, a quinta dos pais, os cães...
- Eu percebo, Salvador. Mas fiquei à espera duma palavra, sei lá. Que me tivesse tufonado a dizer que foi bom, que me queria voltar a ver.
- Mas ouça, Carmo. Isto nunca pode ser nada de sério, não é?
- P'amor de Deus, Salvador! Até me faz rir! Ah ah ah! E acha, você acha, que eu queria algo de sério? Consigo? P'amor de Deus...
Nesse momento, deram-se as mãos por cima da mesa e com as postas de cherne ainda mal debicadas, saíram os dois e entraram cada um em seu carro rumo à casa de Carmo. E, no caminho, Carmo pensava: "Estou-me bem a foder! Vou para mais uma noite de cama com este querido que encorna uma das minhas melhores amigas... Se não fosse comigo, eu era a primeira a ir-lhe contar... Onde é que já se viu! Aquele filho da puta... (pausa) Carmo! Tu hoje estás uma ordinareca nos teus pensamentos!" E soltou mais uma risadinha...
Este é o livro que pode mudar a sua vida. E lembre-se: foi aqui que você leu primeiro!
Diálogos de Amizade, 2
-Porque é que está a fazer essa cara?
-Ó sôr guarda... toda a gente estaciona mal aqui. Há anos que é assim, nunca vi ninguém ser multado.
-Está a dizer que eu estou a ser prepotente? Que estou a usar de um exercício injustificado da autoridade de que fui investido?
-Calma, calma... na realidade, você tem razão. Não se pode estacionar em cima do passeio, eu sei. Mas, que diabo, é o uso. Anos e anos...
-Não estou a perceber. Você está-me a dizer para deixar passar esta infracção porque ela é cometida, diariamente, de há anos para cá?
-Bem... é mais ou menos isso, sim.
-Você acha-me hostil?
-(pausa...) Não, claro que não...
-Eu fui incorrecto consigo?
-Claro que não, foi até muito cordial.
-Você duvida que um agente da autoridade é um seu amigo?
-Porra, um amigo meu não me multava...
-Não? Coitado de si. Os seus amigos não o criticam? Não lhe apontam os seus erros, na tentativa de fazer de si uma pessoa melhor? Não estou a ser seu amigo ao corrigir esta infracção que você cometeu?
-Tem alguma razão, um amigo não deve ter pejo de se chatear connosco e apontar-nos coisas que ache que estamos a fazer mal. Mas um amigo não nos castiga pelos nossos erros. Aconselha-nos, fala connosco, às vezes em tom brusco, mas sempre sem intenção de nos prejudicar. Você não está a ser meu amigo ao passar-me essa multa de estacionamento.
-De estacionamento e não só. Os seus pneus estão carecas.
-O quê? Ó sôr guarda, não me lixe!
-Porquê? Você não quis que eu fosse seu amigo...
segunda-feira, novembro 24, 2003 |
Começa uma nova semana.
Errado. Nada começa, apenas continua. E a semana, sendo única, é apenas uma de imensas, igual a tantas outras que se finaram e a outras tantas que ainda estão para "começar". Imaginar algo mais é como tentar ver na maré enchente um novo mar.
Recomeço: 24 de Novembro de 2003, segunda-feira.
E então?
sexta-feira, novembro 21, 2003 |
SUGESTÃO DE FIM-DE-SEMANA
Let's Pretend We're Bunny Rabbits
- Stephen Merrit, com tradução livre de Vareta Funda
if you knew how i long se tu soubesses a tusa
for you now that you're gone que tenho por ti desde que foste
you'd grow wings and fly lavavas-te por baixo e vinhas
home to me, home tonight ter cá a casa hoje à noite
and in the morning sun e mal o sol nascesse
let's pretend we're bunny rabbits havia de ser com'ós coelhos
let's do it all day long era de noite e de dia, tumba, tumba
let's nibble on lettuce and carrots comíamos muita canela
say mother nature wrong e que se fodesse a digestão
and when we've had a couple of beers mamávamos umas mines
we'll put on bunny suits vestias-te de coelhinha à Hugh Hefner
i love to nibble your ears eu mordiscava-te as orelhinhas
and do as bunnies do e montava-te outra vez
let's pretend we're bunny rabbits é que havia de ser com'ós coelhos
let's do it all day long até cheirar a borracha queimada
i can keep it up all night e se o motor fraquejasse
i can keep it up all day metia-se um quartinho de Viagra
let's pretend we're bunny rabbits e havíamos de estar naquilo
until we pass away até chegar a mulher da limpeza
The Magnetic Fields, 69 Love Songs
Let's Pretend We're Bunny Rabbits
- Stephen Merrit, com tradução livre de Vareta Funda
if you knew how i long se tu soubesses a tusa
for you now that you're gone que tenho por ti desde que foste
you'd grow wings and fly lavavas-te por baixo e vinhas
home to me, home tonight ter cá a casa hoje à noite
and in the morning sun e mal o sol nascesse
let's pretend we're bunny rabbits havia de ser com'ós coelhos
let's do it all day long era de noite e de dia, tumba, tumba
let's nibble on lettuce and carrots comíamos muita canela
say mother nature wrong e que se fodesse a digestão
and when we've had a couple of beers mamávamos umas mines
we'll put on bunny suits vestias-te de coelhinha à Hugh Hefner
i love to nibble your ears eu mordiscava-te as orelhinhas
and do as bunnies do e montava-te outra vez
let's pretend we're bunny rabbits é que havia de ser com'ós coelhos
let's do it all day long até cheirar a borracha queimada
i can keep it up all night e se o motor fraquejasse
i can keep it up all day metia-se um quartinho de Viagra
let's pretend we're bunny rabbits e havíamos de estar naquilo
until we pass away até chegar a mulher da limpeza
The Magnetic Fields, 69 Love Songs
Diálogos de Amizade, 1
-Podíamos ser amigos...
-Claro que sim.
-Amigos, mesmo, a sério? Amigos à Saint-Exupéry, daqueles de lendas e contos de fada?
-Suponho que sim, porque não?
-E saíamos, jantávamos, íamos ao cinema, perdíamos horas numa esplanada a falar de coisas mesquinhas e divertidas?
-Os amigos fazem isso...
-E dormíamos juntos?
-Quê?
-Dormir juntos. Na mesma cama.
-errrr... isso é um bocado estranho...
-Porquê?
-Sei lá, pá. Não digo que não, pode acontecer, já me aconteceu algumas vezes. Um gajo vai pra fora, uma farra, não há onde ficar toda a malta, estás estoirado, ya, olha, chega aí um coche que eu deito deste lado. Podia acontecer, porque não?
-Todos nus?
-Tu 'tás parvo?
-Porquê? Somos amigos, é normal, não tem problema...
-Desculpa lá, mas eu tenho muitos amigos e nunca dormi nu com nenhum deles...
-Vês? No fundo, és um preconceituoso. És um tipo conservador, cínico e interesseiro. Não és capaz de enfrentar uma amizade, uma nova amizade, com abertura de espírito. Resguardas-te, proteges-te, guardas distância, "sim, amigos, mas chega pra lá, sei lá o que vem daí..."
-Não é nada disso, pá!... é... é uma cena estranha. Dormir com outro gajo, todo nu, ao lado... O.K., se calhar tens razão, é paranóia minha. Amigos, na boa, dormir todo nu é fixe, é como eu durmo...
-E sexo?
-OLHA, E SE METESSES A PUTA DA CONVERSA NA PEIDA?
-Foda-se... hás-de ter muitos amigos assim...
terça-feira, novembro 18, 2003 |
VOZES
Tive um colega, nos primeiros anos do ensino secundário, que revelava algumas dificuldades de aprendizagem. Lembro-me nitidamente das razões que ele aventava à orientadora vocacional: "É que eu gosto muito de música. E depois estudo com os auscultadores, a ouvir música, e distraio-me e não consigo decorar as coisas." Nos tempos que correm, aí o teríamos na Operação Triunfo ou nos Ídolos; mas aqueles não eram os tempos que correm e o moço lá reprovou no 8º ano.
Esta pequena reminiscência introdutória serve, para além de um conselho aos leitores em idade escolar para não insistirem em estudar com auscultadores se forem somando maus resultados, serve, dizia, para explicar a foto que ilustra o que estou a escrever. A dita foto é da Senhora Claudine Longet e a senhora cantava. Como também eu "gosto muito de música", cruzei-me com ela - a foto - e decidi, mais uma vez, falar-vos de certos valores morais em decadência.
Não vou entrar em pormenores sobre a vida pessoal da sujeita - e se havia pormenores para entrar... ó lá se havia... casou novíssima com um homem 14 anos mais velho, deixou-o, casou com um esquiador famoso o qual morreu num "estranho acidente" em que o seu revólver Lüger se disparou "acidentalmente" nas mãos da Claudine, que foi julgada, condenada a 30 dias de cadeia por negligência, e acabou por casar com o advogado de defesa... ele há vidas... - e não entro nesses pormenores porque, por um lado, sou modesto e evito o quanto posso exibir de forma fácil os meus largos conhecimentos e, por outro, porque não gosto de comentar as vidas alheias.
O que me interessa da dita senhora é a sua voz. Os que a conhecem concordarão comigo que não é grande espingarda. É uma voz pouco encorpada, doce, frágil, dada às melodias ligeiras e airosas em que ela se foi distinguindo. Mas era uma voz quente e envolvente e que deve ter proporcionado a milhares de casais muitos momentos interessantes - momentos esses que, quiçá, poderão estar na própria origem de quem me lê.
Atentem bem no ar angelical (quando, afinal, vai-se a ver e a senhora tinha muito que contar... cala-te boca!) de Claudine Longet, sentada num rochedo, muito composta, pensando na vida. Não é propriamente uma Shakira. Não beija nenhuma colega de ofício. Não usava saias-cinto. E era sexy.
Mas a figura não é o que me importa. O que eu vos quero transmitir é só uma opinião pessoal: as vozes de então, fosse a de Claudine Longet, Karen Carpenter, Isabelle Aubret; e algumas vozes de hoje como a de Nina Persson, Sarah Cracknell ou Elinor Blake, soam tão ou mais sexy que as cantoras-bomba que hoje nos massacram. Entre os suaves e bucólicos passeios das primeiras, cheios de campos em flor, passarinhos, fontes de água, recatados romances, e a clara atitude pré-fabricada de "Bora foder?" das segundas, qual será mais excitante?
Para mim, a escolha é óbvia. Prefiro um promissor passeio campestre a uma fast-foda.
Tive um colega, nos primeiros anos do ensino secundário, que revelava algumas dificuldades de aprendizagem. Lembro-me nitidamente das razões que ele aventava à orientadora vocacional: "É que eu gosto muito de música. E depois estudo com os auscultadores, a ouvir música, e distraio-me e não consigo decorar as coisas." Nos tempos que correm, aí o teríamos na Operação Triunfo ou nos Ídolos; mas aqueles não eram os tempos que correm e o moço lá reprovou no 8º ano.
Esta pequena reminiscência introdutória serve, para além de um conselho aos leitores em idade escolar para não insistirem em estudar com auscultadores se forem somando maus resultados, serve, dizia, para explicar a foto que ilustra o que estou a escrever. A dita foto é da Senhora Claudine Longet e a senhora cantava. Como também eu "gosto muito de música", cruzei-me com ela - a foto - e decidi, mais uma vez, falar-vos de certos valores morais em decadência.
Não vou entrar em pormenores sobre a vida pessoal da sujeita - e se havia pormenores para entrar... ó lá se havia... casou novíssima com um homem 14 anos mais velho, deixou-o, casou com um esquiador famoso o qual morreu num "estranho acidente" em que o seu revólver Lüger se disparou "acidentalmente" nas mãos da Claudine, que foi julgada, condenada a 30 dias de cadeia por negligência, e acabou por casar com o advogado de defesa... ele há vidas... - e não entro nesses pormenores porque, por um lado, sou modesto e evito o quanto posso exibir de forma fácil os meus largos conhecimentos e, por outro, porque não gosto de comentar as vidas alheias.
O que me interessa da dita senhora é a sua voz. Os que a conhecem concordarão comigo que não é grande espingarda. É uma voz pouco encorpada, doce, frágil, dada às melodias ligeiras e airosas em que ela se foi distinguindo. Mas era uma voz quente e envolvente e que deve ter proporcionado a milhares de casais muitos momentos interessantes - momentos esses que, quiçá, poderão estar na própria origem de quem me lê.
Atentem bem no ar angelical (quando, afinal, vai-se a ver e a senhora tinha muito que contar... cala-te boca!) de Claudine Longet, sentada num rochedo, muito composta, pensando na vida. Não é propriamente uma Shakira. Não beija nenhuma colega de ofício. Não usava saias-cinto. E era sexy.
Mas a figura não é o que me importa. O que eu vos quero transmitir é só uma opinião pessoal: as vozes de então, fosse a de Claudine Longet, Karen Carpenter, Isabelle Aubret; e algumas vozes de hoje como a de Nina Persson, Sarah Cracknell ou Elinor Blake, soam tão ou mais sexy que as cantoras-bomba que hoje nos massacram. Entre os suaves e bucólicos passeios das primeiras, cheios de campos em flor, passarinhos, fontes de água, recatados romances, e a clara atitude pré-fabricada de "Bora foder?" das segundas, qual será mais excitante?
Para mim, a escolha é óbvia. Prefiro um promissor passeio campestre a uma fast-foda.
segunda-feira, novembro 17, 2003 |
Agência INEM
Eu andava há que tempos a remoer se havia, ou não, de escrever aquilo que todos sabemos: esta missão da GNR no Iraque vai ter custos humanos. Militares portugueses vão ficar feridos, e esperemos que seja apenas em acidentes (embora eu, que gosto de me preparar psicologicamente para o pior, tenho uma visão bem mais pessimista do que isto...)
Quando se fala nos custos associados a esta missão é normal pensar-se em vencimentos, equipamento, suprimentos, etc. É claro que o transporte também conta, mas o que nunca nos disseram foi que cada soldado ferido teria direito a repatriamento personalizado em Falcon do INEM. Se uma jornalista (que tem todo o meu respeito, simpatia e solidariedade, note-se) funcionária de uma emissora privada, que vende o seu tempo de publicidade, que tem receitas próprias, accionistas, lucros (ou não), etc., tem direito a ser repatriada a expensas do erário público da forma que se viu, é mais que óbvio que os militares da GNR, que corporizam o empenhamento português no esforço de democratização do Iraque, terão no mínimo direito a tratamento semelhante. Caso não seja assim será absolutamente legítimo dizer que o Governo faz tudo para mendigar mais uns minutos de tempo de antena em telejornais, menos uns minutos dedicados às iniciativas da oposição, quiçá até mais umas "investigações" que descubram "escândalos" envolvendos figuras de côr menos apreciada.
Razão tem o meu compadre, que me tenta confortar. "Porque é que te indignas? São jornalistas portugueses. É o Governo português. É tudo farinha do mesmo saco..."
sexta-feira, novembro 14, 2003 |
Maus tempos
Quando regressava do almoço, debaixo de chuva miúda e irritante, vi uma cena curiosa. Um homem despiu o seu casaco e pousou-o sobre a cabeça da mulher que o acompanhava, para a proteger da chuva. Ambos aparentavam andar na casa dos 30-40 anos (mais chegados aos 30...) e não pareciam ter qualquer intimidade acrescida entre eles, a avaliar pela forma delicada e respeitosa pela qual ele lhe ofereceu o casaco.
Perante isto, assaltaram-me dois pensamentos contraditórios. Se, por um lado, a evocação do "cavalheirismo masculino" era muito forte, suspeitei por outro haver uma estratégia de sedução em desenvolvimento. A um gesto que o nosso imaginário imediatamente identifica com nobreza de actos e pureza de intenções, apôs a minha consiência um sentido perverso de ilusão e cerco.
Se pensarmos seriamente nisto, o que nos diz a nós que os cavalheiros de há 100 ou 200 anos não protagonizavam os seus gestos de cavalheirismo com a mesmíssima intenção engatatória que reveste a maior parte das acções dos homens de hoje face a mulheres atraentes? Apenas e só a fama de tais tempos. São tempos que entraram na nossa memória como tempos de homens nobres, rectos e dignos. E tal fama não veio, decerto, posteriormente: foi cultivada na época e passou incólume face às indubitáveis fraquezas humanas que, nessa altura como agora, preenchiam a sociedade.
Daqui por 100 ou 200 anos, este tempo, o nosso tempo, será lembrado como? Como uma época de cinismo, interesse, desonestidade, vileza, traição? Não é que me rale nada a maneira como vamos ser vistos nessa altura, mas preocupa-me a fraquíssima impressão que agora temos de nós próprios.
Que, provavelmente, é aquela que vamos passar às gerações que aí venham.
quinta-feira, novembro 13, 2003 |
UMA VAGA FOTONOVELA
Colecções Harlequin - histórias sem nexo, moral duvidosa, frases feitas e imagens bonitas, de Daniel Blaufuks, que mereciam melhor companhia
ELA
"Eu lembro-me... Eu sei que o escrevi aqui porque tinha medo de não me lembrar. E ele vai chegar e eu não lhe vou saber dizer. Nunca sei dizer nada. E vou ficar a olhar para ele, como uma parva, como sempre. E não lhe vou dizer nada. Eu sabia que me ia esquecer. É sempre o mesmo. Basta saber que ele vem e esqueço-me. E se calhar... Se calhar o melhor é não me lembrar de nada. Se calhar o melhor é ter a memória completamente preta. "O preto é a ausência da cor"... E eu não quero ter cor até ele chegar."
ELE
"Aposto que já nem se lembra de mim. E se se lembrar... Sei lá quem é o "eu" de que ela se lembra. E vai querer falar e vai ser penoso porque não se consegue "contar" dois anos. Dois anos... Porque é que eu ainda acredito nisto? Vai estar mesmo à minha espera? Em dois anos ainda será "ela"? E vai estar sozinha? Vai estar só à espera ou vai estar mesmo à espera de mim? Não lhe comprei nada... Devia ter comprado alguma coisa. Mas se comprar agora não faz sentido. E porque é que eu estou a correr, pá? Tenho tempo... De que é eu quero que ela se lembre? E de que é que costumávamos falar? E lá estou eu a correr outra vez, merda."
ELES
(beijo-a?) (avanço para ele?) (está na mesma...) (é mesmo ele, não é... é ele) (e não me beija?) (estava às escuras?) (ela levantou-se... vou entrar... e...)
E AFINAL
Não há como a distância para testar o prazo de validade de um sentimento.
(suspiro)
Fim
Colecções Harlequin - histórias sem nexo, moral duvidosa, frases feitas e imagens bonitas, de Daniel Blaufuks, que mereciam melhor companhia
ELA
"Eu lembro-me... Eu sei que o escrevi aqui porque tinha medo de não me lembrar. E ele vai chegar e eu não lhe vou saber dizer. Nunca sei dizer nada. E vou ficar a olhar para ele, como uma parva, como sempre. E não lhe vou dizer nada. Eu sabia que me ia esquecer. É sempre o mesmo. Basta saber que ele vem e esqueço-me. E se calhar... Se calhar o melhor é não me lembrar de nada. Se calhar o melhor é ter a memória completamente preta. "O preto é a ausência da cor"... E eu não quero ter cor até ele chegar."
ELE
"Aposto que já nem se lembra de mim. E se se lembrar... Sei lá quem é o "eu" de que ela se lembra. E vai querer falar e vai ser penoso porque não se consegue "contar" dois anos. Dois anos... Porque é que eu ainda acredito nisto? Vai estar mesmo à minha espera? Em dois anos ainda será "ela"? E vai estar sozinha? Vai estar só à espera ou vai estar mesmo à espera de mim? Não lhe comprei nada... Devia ter comprado alguma coisa. Mas se comprar agora não faz sentido. E porque é que eu estou a correr, pá? Tenho tempo... De que é eu quero que ela se lembre? E de que é que costumávamos falar? E lá estou eu a correr outra vez, merda."
ELES
(beijo-a?) (avanço para ele?) (está na mesma...) (é mesmo ele, não é... é ele) (e não me beija?) (estava às escuras?) (ela levantou-se... vou entrar... e...)
E AFINAL
Não há como a distância para testar o prazo de validade de um sentimento.
(suspiro)
Fim
De orelhas em pé - VI
Na TSF ouço notícias surpreendentes. É sempre bom acordarmos com a sensação que a vida pode ser muito mais bizarra do que realmente é.
O CILPAN, Centro Internacional de Luta contra a Poluição no Atlãntico Norte, opera em Portugal com uma única técnica superior. Para além disso, pasme-se, enferma de "falta de coordenação". Ora bolas, pá! Ser o único técnico superior de um organismo e mesmo assim não ser coordenador é um azar dos antigos. É como entrar numa corrida sozinho e ficar em segundo lugar...
O Japão decidiu suspender o envio de tropas para o Iraque depois do atentado de ontem, argumentando não estarem reuinidas as condições de segurança. Fazem bem. Era o que faltava, sujeitarem os coitados a ferirem-se. Depois disto, se calhar ainda iam querer que os soldados japoneses fossem à guerra, não?
segunda-feira, novembro 10, 2003 |
A LENDA DE SÃO MARTINHO explicada às crianças por Vareta Funda
Martinho, antes de ser Santo, era um soldado romano. Romano é uma maneira de dizer - era um soldado do Império Romano, já que niguém sabe ao certo onde ele nasceu. Este facto, do local de nascimento desconhecido, não só é uma prova de que o dito Império não investia o necessário na administração pública, como lança alguma luz sobre a natureza da actividade profissional da mãe de Martinho... Eu não quero chamar nada à senhora, mas não deixa de ser estranho que nunca tenha aparecido ninguém a dizer com orgulho: "Sou eu o pai daquele santinho!".
Como soldado que era, usava saias. Como Santo que foi, deve ter levado uma vida casta e pelo menos não há registo de matrimónio. Tudo somado, podemos concluir com segurança que o moço pegava de empurrão.
Martinho era legionário mas nunca apareceu nos livros do Asterix. Daí, e da fama que lhe ficou apensa, sou levado a concluir, após intensa pesquisa, que o mariola preferia a costura às actividades bélicas. Aliás, no Livro de Curso da Legião a que pertencia, os colegas de Martinho não lhe regatearam elogios: "Faz milagres com lantejoulas!", "Ninguém tem tão bom gosto nas penas que escolhe para o elmo!", "Fez-me uma saia cintada que punha os Centuriões a salivar.", "Memorável a sua imitação de Messalina!", "Um verdadeiro mago da depilação com cera fria." - enfim, grandes fanchonos, estes Romanos.
A dada altura, o paneleirote Martinho foi até à Roménia, numa viagem destinada a recolher tendências para a estação Primavera-Verão que se avizinhava. Enquanto passeava com o seu livro de esboços, o jovem futuro Santo cruzou-se com um nativo da Roménia, já idoso, o qual, em pleno Outono, apenas usava um pano branco cobrindo as vergonhas. O diálogo que se seguiu, e que esteve na base da canonização, ficou célebre e é um tributo aos valores mais altos da Humanidade transcrevê-lo aqui:
Martinho: - Olá, velhinho!
Velhinho: - Se o cavalo me pisa, estás fodido!
M: - Olá, velhinho
V: - Já te disse, se o cavalo me pisa, estás fodido a valer!
M: - Caralho do velho que não me responde!
Foi nesta altura que Deus ligou a tradução simultânea.
Martinho: - Olá, velhinho!
Velhinho: - Vai chamar velhinho ao caralho que t'a foda!
M: - Não é preciso responderes assim, venerando ancião!
V: - Se me veneras bem te podes ajoelhar e abrir a boquinha...
M: - Estamos chocarreiros apesar da idade, hein?
V: - Caralhos m'a fodam! Eu aqui em introspecção e logo me aparece este rabeta de saias...
M: - Adoro a maneira como usas o pano! É minimalista! É puro! É de um respeito pelos materiais...
V: - Ai a puta da minha vida...
M: - Velhinho, proponho-te o seguin...
V: - FODA-SE! Vai chamar velho ao cabrão do teu pai!
M: - Qual é a tua graça, então?
V: - Segue o teu caminho, cavaleiro... Não te esqueças que estás na Roménia e isto é terra de ciganos e eu posso estar a esconder muita coisa debaixo desta fralda de pano branco...
M: - Na tua idade?! Promessas!...
V: - Mas o que é que tu queres, ó fanchono?
M: - O meu nome é Martinho, sou designer de moda e ando a recolher tendências...
V: - E o meu nome é Magusto e tenho um caralho forte e robusto!
M: - Senhor Magusto, como eu ía...
V: - És mesmo tanso, tu, não és? Acreditas em tudo...
M: - Deixe-me falar, apre! Eu sou um legionário do Império Romano!
V: - Fala, fala para aí, florzinha.
M: - Bom. Como lhe disse, ando a recolher tendências e acho essa "fralda" super-fashion. Posso desenhá-la?
V: - Bem diz o outro que estes romanos são loucos...
M: - Então, Senhor Magusto? Em que é que ficamos?
V: - Mas tu estás a falar a sério?! Foda-se...
M: - Até lhe digo mais... Está a levantar-se uma aragem fresquinha e este vento da Transilvânia ainda lhe faz mal ao reumático...
V: - A Transilvânia é a Oeste e o vento está de Norte. Vê lá se te orientas, mariconço.
M: - Isso a mim não me interessa! Ofereço-te a minha capa de lã se me ofereceres a tua fralda.
V: - Deves pensar que isto é o final de um jogo de futebol em que toda a gente troca camisolas transpiradas... Eu sei lá por onde é que tu andaste com essa capa... Posso já não ser novo mas tenho saúde e tu tens um ar enfermiço.
M: - Velhinho, não me faças perder mais tempo! Ainda tenho muita tendência para recolher...
V: - Troco a fralda pela capa e pelo cavalo, mas corta a capa em duas para eu depois coser as metades e fazer uma veste...
M: - Pelo cavalo? E depois como é que saio daqui?
V: - É pegar ou largar...
M: - Pronto, seja.
V: - E pelo resto da tua roupa...
M: - O Senhor Magusto já está a abusar...
V: - Bom, parece-me que não fazemos negócio.
M: - Espere! Espere! Eu dou-lhe o resto da roupa.
V: - E a espada e o elmo e o escudo...
M: - Bem dizia a minha mãe que eu era uma doidivanas quando via coisas bonitas... Pronto! Fique com tudo! Essa fralda vale a pena.
E enquanto Martinho se ía despojando dos seus bens, o Padre António Rêgo passeava pela zona, meditando e escrevendo o guião de mais um 70x7. Nisto, viu aquele belíssimo quadro do soldado romano rasgando a sua capa e entregando-a a um velhinho trémulo de mãos estendidas. Sabendo que estava a presenciar um momento único de caridade cristã, o Padre António Rêgo fechou os olhos em oração. Rezou um terço, o Credo e uma Salva-Raínha. Quando os abriu, já o cavaleiro partia e no carregado céu outonal despontava agora um sol radioso à luz do qual um velhinho remoçado se comprazia. Pegando nos seus apontamentos, o Padre fez-se ao caminho e a todos reportou este lindo milagre.
Martinho, antes de ser Santo, era um soldado romano. Romano é uma maneira de dizer - era um soldado do Império Romano, já que niguém sabe ao certo onde ele nasceu. Este facto, do local de nascimento desconhecido, não só é uma prova de que o dito Império não investia o necessário na administração pública, como lança alguma luz sobre a natureza da actividade profissional da mãe de Martinho... Eu não quero chamar nada à senhora, mas não deixa de ser estranho que nunca tenha aparecido ninguém a dizer com orgulho: "Sou eu o pai daquele santinho!".
Como soldado que era, usava saias. Como Santo que foi, deve ter levado uma vida casta e pelo menos não há registo de matrimónio. Tudo somado, podemos concluir com segurança que o moço pegava de empurrão.
Martinho era legionário mas nunca apareceu nos livros do Asterix. Daí, e da fama que lhe ficou apensa, sou levado a concluir, após intensa pesquisa, que o mariola preferia a costura às actividades bélicas. Aliás, no Livro de Curso da Legião a que pertencia, os colegas de Martinho não lhe regatearam elogios: "Faz milagres com lantejoulas!", "Ninguém tem tão bom gosto nas penas que escolhe para o elmo!", "Fez-me uma saia cintada que punha os Centuriões a salivar.", "Memorável a sua imitação de Messalina!", "Um verdadeiro mago da depilação com cera fria." - enfim, grandes fanchonos, estes Romanos.
A dada altura, o paneleirote Martinho foi até à Roménia, numa viagem destinada a recolher tendências para a estação Primavera-Verão que se avizinhava. Enquanto passeava com o seu livro de esboços, o jovem futuro Santo cruzou-se com um nativo da Roménia, já idoso, o qual, em pleno Outono, apenas usava um pano branco cobrindo as vergonhas. O diálogo que se seguiu, e que esteve na base da canonização, ficou célebre e é um tributo aos valores mais altos da Humanidade transcrevê-lo aqui:
Martinho: - Olá, velhinho!
Velhinho: - Se o cavalo me pisa, estás fodido!
M: - Olá, velhinho
V: - Já te disse, se o cavalo me pisa, estás fodido a valer!
M: - Caralho do velho que não me responde!
Foi nesta altura que Deus ligou a tradução simultânea.
Martinho: - Olá, velhinho!
Velhinho: - Vai chamar velhinho ao caralho que t'a foda!
M: - Não é preciso responderes assim, venerando ancião!
V: - Se me veneras bem te podes ajoelhar e abrir a boquinha...
M: - Estamos chocarreiros apesar da idade, hein?
V: - Caralhos m'a fodam! Eu aqui em introspecção e logo me aparece este rabeta de saias...
M: - Adoro a maneira como usas o pano! É minimalista! É puro! É de um respeito pelos materiais...
V: - Ai a puta da minha vida...
M: - Velhinho, proponho-te o seguin...
V: - FODA-SE! Vai chamar velho ao cabrão do teu pai!
M: - Qual é a tua graça, então?
V: - Segue o teu caminho, cavaleiro... Não te esqueças que estás na Roménia e isto é terra de ciganos e eu posso estar a esconder muita coisa debaixo desta fralda de pano branco...
M: - Na tua idade?! Promessas!...
V: - Mas o que é que tu queres, ó fanchono?
M: - O meu nome é Martinho, sou designer de moda e ando a recolher tendências...
V: - E o meu nome é Magusto e tenho um caralho forte e robusto!
M: - Senhor Magusto, como eu ía...
V: - És mesmo tanso, tu, não és? Acreditas em tudo...
M: - Deixe-me falar, apre! Eu sou um legionário do Império Romano!
V: - Fala, fala para aí, florzinha.
M: - Bom. Como lhe disse, ando a recolher tendências e acho essa "fralda" super-fashion. Posso desenhá-la?
V: - Bem diz o outro que estes romanos são loucos...
M: - Então, Senhor Magusto? Em que é que ficamos?
V: - Mas tu estás a falar a sério?! Foda-se...
M: - Até lhe digo mais... Está a levantar-se uma aragem fresquinha e este vento da Transilvânia ainda lhe faz mal ao reumático...
V: - A Transilvânia é a Oeste e o vento está de Norte. Vê lá se te orientas, mariconço.
M: - Isso a mim não me interessa! Ofereço-te a minha capa de lã se me ofereceres a tua fralda.
V: - Deves pensar que isto é o final de um jogo de futebol em que toda a gente troca camisolas transpiradas... Eu sei lá por onde é que tu andaste com essa capa... Posso já não ser novo mas tenho saúde e tu tens um ar enfermiço.
M: - Velhinho, não me faças perder mais tempo! Ainda tenho muita tendência para recolher...
V: - Troco a fralda pela capa e pelo cavalo, mas corta a capa em duas para eu depois coser as metades e fazer uma veste...
M: - Pelo cavalo? E depois como é que saio daqui?
V: - É pegar ou largar...
M: - Pronto, seja.
V: - E pelo resto da tua roupa...
M: - O Senhor Magusto já está a abusar...
V: - Bom, parece-me que não fazemos negócio.
M: - Espere! Espere! Eu dou-lhe o resto da roupa.
V: - E a espada e o elmo e o escudo...
M: - Bem dizia a minha mãe que eu era uma doidivanas quando via coisas bonitas... Pronto! Fique com tudo! Essa fralda vale a pena.
E enquanto Martinho se ía despojando dos seus bens, o Padre António Rêgo passeava pela zona, meditando e escrevendo o guião de mais um 70x7. Nisto, viu aquele belíssimo quadro do soldado romano rasgando a sua capa e entregando-a a um velhinho trémulo de mãos estendidas. Sabendo que estava a presenciar um momento único de caridade cristã, o Padre António Rêgo fechou os olhos em oração. Rezou um terço, o Credo e uma Salva-Raínha. Quando os abriu, já o cavaleiro partia e no carregado céu outonal despontava agora um sol radioso à luz do qual um velhinho remoçado se comprazia. Pegando nos seus apontamentos, o Padre fez-se ao caminho e a todos reportou este lindo milagre.
sexta-feira, novembro 07, 2003 |
Do discernimento
Antes de começar, é necessário (para quem não conheça) visitar o seguinte site e percorrê-lo demorada e exaustivamente:
Estou farto de, volta e meia, receber por mail petições inflamadas relativas a este site. “Fecha! Queima! Esfola! Prende! Mata!”. Só o tom pungente que escorre de alguns destes avisos dava para várias teses de doutoramento, sobre o curioso e arrepiante fenómeno de transferência que ocorre em largas fatias da população e que as leva as embaralhar todas as prioridades e colocar os direitos e o bem estar dos animais à frente dos valores mais básicos de solidariedade humana, por exemplo.
Este fenómeno é cíclico. A reprodução humana, na net, é muito mais rápida, e a distância entre duas gerações é minúscula; nunca me dei ao trabalho de precisar, mas a frequência com que somos atacados por estas (e outras) campanhas leva-me a crer que será da ordem dos dois anos, máximo. Alguém que me ajude aqui, por favor.
De qualquer maneira, o que me leva a escrever é outra coisa bem mais grave. As pessoas que se inflamam, indignam, enojam, horrorizam ou, simplesmente, desgostam com isto deviam pensar seriamente em fazer uma introspecção profunda. A “arte” do Bonsaikitten que é promovida no site é tanga! Trata-se, apenas, de uma piada, eventualmente de muito mau gosto, mas uma piada. Os autores estão fartos de ter processos às costas (e ganhá-los) para tirar aquilo do ar, quando é tudo efabulação de umas cabecitas muito tortuosas (brilhantes, digo eu, pelo vasto campo de análise que abriram). A verdadeira tragédia aqui é de outra monta…
As pessoas perderam o espírito crítico e o discernimento. Se está escrito, deve ser verdade. Se não fosse verdade, alguém apagava. E, mesmo se há alguém a desmentir, é porque há uma cabala, uma manobra de encobrimento, interesses, grupos, sistemas e bastidores. A verdade “nunca se saberá”, e a verdade é sempre a mais negra das possibilidades.
O mais delirante argumento que me deram para defender a probabilidade de isto ser verdade foi “…e quem é que te diz que não há gente capaz de fazer isto?”
É verdade, ninguém me diz. É apenas o discernimento que me conforta e me guia, nestas coisas. E essa é a mais poderosa arma que podemos usar para nos defendermos destes tempos de overdose de informação pouco fiável e conteúdos absolutamente livres de verificação e validação na net.
Caso a minha argumentação não vos convença, podem sempre ir à secção “News” do site e comprar um dispositivo de imortalidade (o quê, nesse não acreditam?!?) ou, em alternativa, consultar os seguintes links:
http://www.pet-abuse.com/faq/bonsai.php
http://www.snopes2.com/inboxer/outrage/bonsai.htm
quinta-feira, novembro 06, 2003 |
ESCOLHER
Cruzei-me há uns tempos com mais uma informação absolutamente inútil: um sociólogo inglês estaria a preparar uma tese de doutoramento com base em 500 - quinhentas - 500 cassetes que reuniam escolhas de 500 pessoas que as haviam oferecido a outras 500. Este dado é importante: as cassetes não foram gravadas para o estudo, foram "recolhidas". O que é que o senhor pretenderá provar com tal estudo, não sei. E nem isso interessa.
Ainda se lembram da dose de paciência que era necessária para gravar uma cassete com músicas de diferentes origens? Era um sumarento gesto de afecto! Pensar nas escolhas - a parte mais agradável - para 60 ou 90 minutos. Tomar a difícil decisão de deixar uns minutos de silêncio antes do fim de cada lado ou deixar músicas cortadas. Usar o botão "pause" até que este ficasse com mais folgas que um funcionário público luxemburguês. E tudo isto para que tanto trabalho e tanto carinho acabassem trilhados por um auto-rádio mais manhoso...
Gravar e oferecer uma cassete nestes moldes era como que fazer um menu dos discos que queríamos partilhar. Permito-me dizer que era uma modesta forma de arte, a qual, uma vez experimentada, fazia com que se torcesse o nariz à ideia simples e vil de gravar um álbum inteiro. Esta fórmula é, aliás, muito familiar a quem escreve artigos de opinião: para quê plagiar apenas um autor se podemos estruturar um discurso com as ideias de muitos?
Gravar um cd com os mesmos preceitos pode ter igual valor de partilha, mas não tem a carga visceral, o esforço físico, a entrega que a fita magnética exigia. Não é o mesmo "naperon" de retalhos sonoros ligados a renda de bilros... Uma cassete era uma declaração fugaz, com curto prazo de validade, pouco dada a novas releituras que modificassem uma primeira impressão. E era um verdadeiro milagre de comunhão quando quem as ouvia as "lia" da mesma maneira que quem as gravava.
Por vezes acontece-me ser confrontado com essa estranha situação: ouvir num leitor alheio uma gravação antiga. Sabem tão bem ou melhor do que eu quão doce ou desconfortável pode ser esse exercício de nos esfregarem na cara a prova de algo que já sentimos.
Cruzei-me há uns tempos com mais uma informação absolutamente inútil: um sociólogo inglês estaria a preparar uma tese de doutoramento com base em 500 - quinhentas - 500 cassetes que reuniam escolhas de 500 pessoas que as haviam oferecido a outras 500. Este dado é importante: as cassetes não foram gravadas para o estudo, foram "recolhidas". O que é que o senhor pretenderá provar com tal estudo, não sei. E nem isso interessa.
Ainda se lembram da dose de paciência que era necessária para gravar uma cassete com músicas de diferentes origens? Era um sumarento gesto de afecto! Pensar nas escolhas - a parte mais agradável - para 60 ou 90 minutos. Tomar a difícil decisão de deixar uns minutos de silêncio antes do fim de cada lado ou deixar músicas cortadas. Usar o botão "pause" até que este ficasse com mais folgas que um funcionário público luxemburguês. E tudo isto para que tanto trabalho e tanto carinho acabassem trilhados por um auto-rádio mais manhoso...
Gravar e oferecer uma cassete nestes moldes era como que fazer um menu dos discos que queríamos partilhar. Permito-me dizer que era uma modesta forma de arte, a qual, uma vez experimentada, fazia com que se torcesse o nariz à ideia simples e vil de gravar um álbum inteiro. Esta fórmula é, aliás, muito familiar a quem escreve artigos de opinião: para quê plagiar apenas um autor se podemos estruturar um discurso com as ideias de muitos?
Gravar um cd com os mesmos preceitos pode ter igual valor de partilha, mas não tem a carga visceral, o esforço físico, a entrega que a fita magnética exigia. Não é o mesmo "naperon" de retalhos sonoros ligados a renda de bilros... Uma cassete era uma declaração fugaz, com curto prazo de validade, pouco dada a novas releituras que modificassem uma primeira impressão. E era um verdadeiro milagre de comunhão quando quem as ouvia as "lia" da mesma maneira que quem as gravava.
Por vezes acontece-me ser confrontado com essa estranha situação: ouvir num leitor alheio uma gravação antiga. Sabem tão bem ou melhor do que eu quão doce ou desconfortável pode ser esse exercício de nos esfregarem na cara a prova de algo que já sentimos.
Solidão
É uma palavra demasiado impregnada de conotações negativas.
Eu gostava da minha.
Dou-me bem comigo. Gosto de falar sozinha e de me rir de mim.
Gosto de chegar a casa e ter a solidão à minha espera, receber um abraço do silêncio. Gosto de me fazer companhia. De me desleixar com a hora do jantar e entrar numa banheira de espuma para ouvir os Nocturnos tocados pela Maria João e perdermo-nos os três na minha imaginação.
Gosto de vadiar pela minha casa, mergulhar nos meus papéis e afogar-me nos meus livros.
Gosto de perder tempo comigo e dar-me atenção quando preciso. Gosto de ser minha amiga.
É bom amar e ser amada por outra pessoa mas, às vezes, eu tenho saudades minhas.
É uma palavra demasiado impregnada de conotações negativas.
Eu gostava da minha.
Dou-me bem comigo. Gosto de falar sozinha e de me rir de mim.
Gosto de chegar a casa e ter a solidão à minha espera, receber um abraço do silêncio. Gosto de me fazer companhia. De me desleixar com a hora do jantar e entrar numa banheira de espuma para ouvir os Nocturnos tocados pela Maria João e perdermo-nos os três na minha imaginação.
Gosto de vadiar pela minha casa, mergulhar nos meus papéis e afogar-me nos meus livros.
Gosto de perder tempo comigo e dar-me atenção quando preciso. Gosto de ser minha amiga.
É bom amar e ser amada por outra pessoa mas, às vezes, eu tenho saudades minhas.
quarta-feira, novembro 05, 2003 |
ESCREVER MESMO
Durante anos, fui incapaz de escrever qualquer coisa vagamente criativa ou literária num computador. Concordo com muitos dos que estão a pensar que, face às amostras disponíveis, essa incapacidade permanece; mas eu quero é falar do meio e não do autor. Retomando: durante anos, escrever era, para mim, sinónimo de papel e caneta.
Poucos gestos me davam mais prazer e nenhum (ou quase) tinha o mesmo efeito tranquilizante e balsâmico. Quando escrevia à mão, era o corpo inteiro que escrevia por detrás daquele gesto improvável do desenho de palavras - e conseguia sentir-me plenamente "eu".
Nunca acreditei muito naquelas teorias do "descubra a sua personalidade através da análise da caligrafia" - a minha personalidade, prefiro ir conhecendo aos poucos; a dos outros, convenhamos, existem formas bem mais interessantes de a descobrir. Mas havia sempre um pedaço de nós nas palavras que nos saíam das mãos. Deixem-me pensar assim: é um consolo, à falta de descendência, inventariar o número de destinatários que vai guardando (espero!) essas pequenas partículas epidérmicas...
Enchi cadernos, blocos, folhas soltas, papel de carta; espalhei-me em inúmeros suportes feitos com pastas de melhor ou pior qualidade; e hoje, que me lembrei disso nem sei porquê, fiquei contente por ver que não preciso daquilo que de mim fui entregando.
Se calhar, todos somos mais do que precisamos. Escrever à mão eliminava, quase sempre em proveito de outros (eu sei que o "proveito" é muito discutível...), esse excesso de mim. Ainda que tenha saudades do gesto, escrever aqui, neste nosso porquinho, tem exactamente o mesmo efeito - e tem esse atributo vital da improbabilidade de me reler. Se algum dia souber escrever qualquer coisa que valha a pena guardar para os vindouros, escolho o mais bonito dos corpos, o mais fino pigmento e um bom taxidermista.
Durante anos, fui incapaz de escrever qualquer coisa vagamente criativa ou literária num computador. Concordo com muitos dos que estão a pensar que, face às amostras disponíveis, essa incapacidade permanece; mas eu quero é falar do meio e não do autor. Retomando: durante anos, escrever era, para mim, sinónimo de papel e caneta.
Poucos gestos me davam mais prazer e nenhum (ou quase) tinha o mesmo efeito tranquilizante e balsâmico. Quando escrevia à mão, era o corpo inteiro que escrevia por detrás daquele gesto improvável do desenho de palavras - e conseguia sentir-me plenamente "eu".
Nunca acreditei muito naquelas teorias do "descubra a sua personalidade através da análise da caligrafia" - a minha personalidade, prefiro ir conhecendo aos poucos; a dos outros, convenhamos, existem formas bem mais interessantes de a descobrir. Mas havia sempre um pedaço de nós nas palavras que nos saíam das mãos. Deixem-me pensar assim: é um consolo, à falta de descendência, inventariar o número de destinatários que vai guardando (espero!) essas pequenas partículas epidérmicas...
Enchi cadernos, blocos, folhas soltas, papel de carta; espalhei-me em inúmeros suportes feitos com pastas de melhor ou pior qualidade; e hoje, que me lembrei disso nem sei porquê, fiquei contente por ver que não preciso daquilo que de mim fui entregando.
Se calhar, todos somos mais do que precisamos. Escrever à mão eliminava, quase sempre em proveito de outros (eu sei que o "proveito" é muito discutível...), esse excesso de mim. Ainda que tenha saudades do gesto, escrever aqui, neste nosso porquinho, tem exactamente o mesmo efeito - e tem esse atributo vital da improbabilidade de me reler. Se algum dia souber escrever qualquer coisa que valha a pena guardar para os vindouros, escolho o mais bonito dos corpos, o mais fino pigmento e um bom taxidermista.
Um Novo Mundo - III
Ontem, enquanto almoçava pacatamente com o meu coelhinho de estimação, conversámos sobre coisas corriqueiras e banais, como a crise no Médio Oriente e o estado da Nação. A propósito de um assunto bem mais delicado e sério- a bola nativa – concluímos estar este país perigosamente próximo do mais completo surrealismo e necessitado de um (ou mais) choques, políticos e sociais. Ele, como animal terno e fofo, defende choques terapêuticos. Eu, como catastrofista militante, lamento a falta de um Moisés que regue com pragas exóticas esta maltosa e arrase com boa parte dos indígenas, preferencialmente aqueles que me não caem no goto. Mas não sou esquisito.
Nem de propósito, à noite, passei por um belogue (lamento, não me recordo de qual), onde se falava dessa coisa obscura que é a causa monárquica, e fez-se luz no meu espírito. O que este país precisa é de um rei!
Uma monarquia constitucional, além de corresponder ao modelo tão do agrado do português de Lineu do “baralha e volta a dar”, traria à ribalta uma figura decorativa que, espera-se, seria aglutinadora e catalizadora dum verdadeiro espírito português, capaz de relançar um desígnio nacional que mobilizasse os cidadãos e nos colocasse, meteoricamente, na vanguarda económica e social da Europa, do Mundo e Planetas Adjacentes.
É claro que seria necessário designar um rei, e aqui o problema agudiza-se. Uma vez que seria respeitado o princípio da separação de poderes, não haveria qualquer exigência técnica, administrativa, legalista, etc., da parte do futuro monarca. Teria, outrossim, que ser uma figura de prestígio, consensual, respeitada, ponderada, com provas dadas na elevação do nome de Portugal e com grande sentido de Estado. Por este estreito crivo, no meu modesto entender, só passa um nome, e aqui deixo a minha preferência:
Viva el-Rei Eusébio I, o Moçambicano!
Mas, como o porco é uma democracia ponderada, estou aberto a sugestões. Proponha o seu candidato a rei para o meu mail e publicarei aqui os resultados. Garanto total isenção na manipulação dos votos recebidos.
Pedimos desculpa por esta interrupção...
...mas venho por esta forma manifestar a minha indisponibilidade para alimentar baixezas de natureza irrisória, substância deprimente e objectivo mesquinho. Quem quiser usar este belogue ou os seus postes para se pôr em bicos de pés ou promover alguma coisa, fá-lo-á por sua conta e risco. Confio na inteligência da maioria para ver de que lado está a lisura e transparência de intenções, já que é bastante óbvia a diferença de tom e nível. É tudo.
terça-feira, novembro 04, 2003 |
Mon ami the taxi driver
Para quem me conhece isto não constitui surpresa: ando de táxi com frequência. Ou de carro de praça, se preferirem. Já muita gente escreveu, e bem, sobre os táxis, os taxistas e o taxismo. Já foram louvados, zurzidos e escarnecidos. Como já estão habituados, mais fácil será para mim escrever o que penso sem ser maltratado por qualquer "chófér" das praças da capital.
Deixo-vos hoje duas histórias.
Uma história
- Era p'a Sant'Ápolónia, fachavor... - disse eu, bufando do esforço de entrar para dentro da viatura com um pesado saco de viagem.
O taxista, cinquentão, com um cheiro que porventura seria familiar a quem já passou por uma morgue, arranca, em segunda - mudança pela qual tinha especial carinho. Ali ao pé do Cais do Sodré começa o interrogatório:
- Então, vai para a terra, não é? - pergunta ele.
- Vou. - digo eu, na esperança de que a resposta lacónica lhe mostrasse que queria mais despacho e menos conversa (continuávamos em segunda e o conta-rotações estava animado de uma vida própria que nunca mais testemunhei em carro algum...)
- É de Tomar, não é? - pergunta ele, com um sorriso mefistofélico.
"Porra!", pensei para comigo. "Querem ver que este safardana me conhece?"
- Sou, sim senhor. Como é que adivinhou? - pergunto, com um tom de voz que esperei saísse frio e sibilino.
- Pelo sotaque. A minha mulher também é de lá.
"Foda-se!", pensei outra vez para comigo, porque me repugnava a ideia de pensar com o taxista e não havia por ali mais ninguém. "SOTAQUE? EU? Este tipo é doido"
- Muito bem. Casou com uma tomarense, teve bom gosto. - respondi-lhe, pensando que uma "colher de chá" de simpatia o tornasse mais expedito e o lembrasse de que havia outras mudanças para além daquela bendita segunda.
- É verdade. A minha mulher é de Tomar... - pausa. O senhor respira fundo. Olha por mim pelo retrovisor e dispara:
- PUTA QUE A PARIU! Logo não morresse de uma vez, o caralho da mulher! Não é que agora, no fim de velha, deu em Jeová?! Anda para aí com as amigas a distribuir papelinhos na esquina, como as putas? - nova pausa, para limpar a espuma que lhe corria da boca. - Eu já lhe disse: se eu volto a chegar a casa e não tenho o jantar pronto porque andas para aí com os Jeovás, dou-te uma carga de cachaporra que nem te levantas!
"Refoda-se!", pensei eu, "ainda tenho um acidente por causa da infeliz tomarense". Decidi inflectir na conversa:
- E o senhor de onde é?
- De Porto Côvo - responde, impante. - Conhece?
- Conheço, mais ou menos.
- Há-de lá ir um dia. Ali é que se come bem. Muita carne de porco, daqueles porquinhos criados no campo. NÃO É COMO A PUTA DA MINHA MULHER QUE SÓ ME SABE DAR COUVES, CARALHO! Muita couve vocês comem naquela merda daquela terra! Desculpe lá eu dizer isto, mas é que é a MERDA DAS COUVES TODOS OS DIAS!
Chegámos a Santa Apolónia, altura em que passamos da segunda para a primeira.
- Ora átão são seis érios. Bom fim-de-semana e não case com uma de lá.
A viagem foi tenebrosa, mas até hoje tenho seguido esse conselho do taxista.
Outra história
Largo da Misericórdia, vindos do Bairro Alto, eis-nos à espera de táxi para a Ajuda. Chega o táxi, entramos, "Rua...", e lá arrancamos que o condutor é de poucas falas. A Antena 1 vai-lhe fazendo companhia e passa qualquer música apropriada para o adiantado da hora - se não era o Peter Cetera era o Glenn Medeiros...
Chegados àquele ponto crítico em que a Rua do Alecrim se transforma no Cais do Sodré, a Antena 1 decide proporcionar aos seus ouvintes o prazer de escutarem o Luís Represas. É neste momento que tudo muda de figura. Os quatro passageiros incautos acordam abruptamente da nuvem etílica em que vinham planando com os violentos murros que o taxista dava no auto-rádio. Quando vê oito olhos aflitos postos nele, o senhor explica-se, numa voz tonitruante:
-Só passam comunas na rádio, pá! É só comunas! Isto está entregue à bicharada, é o que é! Até aquela gaja que não era comuna, que era a Madredeus, abalou para o estrangeiro!! - e mais um soco, para cimentar a posição.
Chegámos a casa sem precalços. A seguir ao Luís Represas passaram a Jennifer Rush, cujas convicções políticas - se as tiver - não causaram engulhos àquele sábio estudioso da música portuguesa e do seu papel enquanto arma de propaganda ideológica...
Para quem me conhece isto não constitui surpresa: ando de táxi com frequência. Ou de carro de praça, se preferirem. Já muita gente escreveu, e bem, sobre os táxis, os taxistas e o taxismo. Já foram louvados, zurzidos e escarnecidos. Como já estão habituados, mais fácil será para mim escrever o que penso sem ser maltratado por qualquer "chófér" das praças da capital.
Deixo-vos hoje duas histórias.
Uma história
- Era p'a Sant'Ápolónia, fachavor... - disse eu, bufando do esforço de entrar para dentro da viatura com um pesado saco de viagem.
O taxista, cinquentão, com um cheiro que porventura seria familiar a quem já passou por uma morgue, arranca, em segunda - mudança pela qual tinha especial carinho. Ali ao pé do Cais do Sodré começa o interrogatório:
- Então, vai para a terra, não é? - pergunta ele.
- Vou. - digo eu, na esperança de que a resposta lacónica lhe mostrasse que queria mais despacho e menos conversa (continuávamos em segunda e o conta-rotações estava animado de uma vida própria que nunca mais testemunhei em carro algum...)
- É de Tomar, não é? - pergunta ele, com um sorriso mefistofélico.
"Porra!", pensei para comigo. "Querem ver que este safardana me conhece?"
- Sou, sim senhor. Como é que adivinhou? - pergunto, com um tom de voz que esperei saísse frio e sibilino.
- Pelo sotaque. A minha mulher também é de lá.
"Foda-se!", pensei outra vez para comigo, porque me repugnava a ideia de pensar com o taxista e não havia por ali mais ninguém. "SOTAQUE? EU? Este tipo é doido"
- Muito bem. Casou com uma tomarense, teve bom gosto. - respondi-lhe, pensando que uma "colher de chá" de simpatia o tornasse mais expedito e o lembrasse de que havia outras mudanças para além daquela bendita segunda.
- É verdade. A minha mulher é de Tomar... - pausa. O senhor respira fundo. Olha por mim pelo retrovisor e dispara:
- PUTA QUE A PARIU! Logo não morresse de uma vez, o caralho da mulher! Não é que agora, no fim de velha, deu em Jeová?! Anda para aí com as amigas a distribuir papelinhos na esquina, como as putas? - nova pausa, para limpar a espuma que lhe corria da boca. - Eu já lhe disse: se eu volto a chegar a casa e não tenho o jantar pronto porque andas para aí com os Jeovás, dou-te uma carga de cachaporra que nem te levantas!
"Refoda-se!", pensei eu, "ainda tenho um acidente por causa da infeliz tomarense". Decidi inflectir na conversa:
- E o senhor de onde é?
- De Porto Côvo - responde, impante. - Conhece?
- Conheço, mais ou menos.
- Há-de lá ir um dia. Ali é que se come bem. Muita carne de porco, daqueles porquinhos criados no campo. NÃO É COMO A PUTA DA MINHA MULHER QUE SÓ ME SABE DAR COUVES, CARALHO! Muita couve vocês comem naquela merda daquela terra! Desculpe lá eu dizer isto, mas é que é a MERDA DAS COUVES TODOS OS DIAS!
Chegámos a Santa Apolónia, altura em que passamos da segunda para a primeira.
- Ora átão são seis érios. Bom fim-de-semana e não case com uma de lá.
A viagem foi tenebrosa, mas até hoje tenho seguido esse conselho do taxista.
Outra história
Largo da Misericórdia, vindos do Bairro Alto, eis-nos à espera de táxi para a Ajuda. Chega o táxi, entramos, "Rua...", e lá arrancamos que o condutor é de poucas falas. A Antena 1 vai-lhe fazendo companhia e passa qualquer música apropriada para o adiantado da hora - se não era o Peter Cetera era o Glenn Medeiros...
Chegados àquele ponto crítico em que a Rua do Alecrim se transforma no Cais do Sodré, a Antena 1 decide proporcionar aos seus ouvintes o prazer de escutarem o Luís Represas. É neste momento que tudo muda de figura. Os quatro passageiros incautos acordam abruptamente da nuvem etílica em que vinham planando com os violentos murros que o taxista dava no auto-rádio. Quando vê oito olhos aflitos postos nele, o senhor explica-se, numa voz tonitruante:
-Só passam comunas na rádio, pá! É só comunas! Isto está entregue à bicharada, é o que é! Até aquela gaja que não era comuna, que era a Madredeus, abalou para o estrangeiro!! - e mais um soco, para cimentar a posição.
Chegámos a casa sem precalços. A seguir ao Luís Represas passaram a Jennifer Rush, cujas convicções políticas - se as tiver - não causaram engulhos àquele sábio estudioso da música portuguesa e do seu papel enquanto arma de propaganda ideológica...
Repasto |
Era mesmo inevitável
Falar do grande jantar*
Foi um banquete estável
Toda a gente era amável
Pena, quem não pôde estar
Cheguei ao local combinado
Já lá estava o Vara Funda
Um rapaz empinocado
Sempre à procura de gado
Não lhe escapava uma bunda
Fui o segundo a chegar
Seguiu-se a amiga Quimera
Uma mesa fui marcar
Começámos a falar
Não se tornou longa a espera.
Puxámos d’uma cadeira
Sentámos na Portugália
Apareceu um sem carteira
Pôs em risco a bebedeira
Foi o velho e sua algália
Seguiu-se-lhe a Tóilina
Não trouxe seu Primo Tóilim
Já nem sei se é Catarina
Mas é uma linda menina
Não a castiguei, enfim…
Por fim, Galhão e Mimosa
Apareceram bem juntinhos
Zeca procurava Gulosa
A vaca não é escabrosa
São moços atinadinhos
Nabos, de carro ou de mota
Não se lembraram de ir
Só tivemos lá um cota
Que não era a “Charlotta”
Mas sim, o amigo Menir
Um repasto animado
Estava tudo bem contente
Tenho então este recado
Ficando já combinado
Um jantar com TODA A GENTE.
* Este texto refere-se ao jantar de Sábado. Costuma dizer-se que "Só faz falta quem está". Pois bem, neste caso, quem não pôde comparecer fez realmente falta, apesar de os presentes serem todos boa gente.
Cordiais cumprimentos a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, participam activamente no nosso Porco, não permitindo que ele pare de grunhir.
segunda-feira, novembro 03, 2003 |
Testemunho para memória futura
Ontem à noite, quando saí para passear a cadela, deparou-se-me uma imagem angustiante. Espalhadas pelo parque de estacionamento, imóveis por força da ausência de vento, umas dúzias de folhas. À medida que me aproximava constatei que se tratava de folhas arrancadas a um dossier. A caligrafia rechonchuda e cuidada, o respeito das linhas ou da quadrícula e o aspecto geral arrumadinho indiciavam o caderno de uma menina de escola.
Assaltou-me logo a mágoa que transporto por ter perdido os meus próprios cadernos escolares. É um pedaço importante da minha vida que o tempo tratou de nublar na minha memória e cujos traços podiam ser avivados pelo recurso a este diário forçado. As matérias assombrosas que nos faziam “empinar” nos tempos da Outra Senhora, a evolução da caligrafia, as anotações, o desleixo, as abreviaturas e tantas outras coisas que me podiam devolver parte de mim, quiçá até fazer luz sobre coisas que não consigo explicar.
Lamentei que os pais desta jovem não cuidassem por ela destas coisas. Imaginei que pouco se importassem com o que considerariam ser uma perda de tempo, tirocínio inútil para a vida a sério. Nunca mais a criança chegava à idade de deixar a escola e iniciar a sua vida adulta, ao balcão de uma loja num shopping ou, quem sabe, que a fé nos filhos é sempre grande, como administrativa numa empresa de representações, sediada num armazém empoeirado de uma zona industrial de um subúrbio anónimo. Universidade nunca, que quem assim desleixa a memória futura dos filhos não concebe estender a sua vida de estudante para além do legalmente necessário.
Enquanto me acabrunhava nestas reflexões, detive-me sobre uma folha quadriculada, uma qualquer aula de Matemática. No topo da folha a palavra “Sumário:” e, por baixo, a sua substância, que assim rezava:
“Esprecções Noméricas”
Chamei a cadela em tom alarmado e regressei a casa rapidamente. Nunca mais desconfio da intuição e cuidados paternais quando toca a acautelar o futuro dos filhos.