terça-feira, novembro 04, 2003 |
Mon ami the taxi driver
Para quem me conhece isto não constitui surpresa: ando de táxi com frequência. Ou de carro de praça, se preferirem. Já muita gente escreveu, e bem, sobre os táxis, os taxistas e o taxismo. Já foram louvados, zurzidos e escarnecidos. Como já estão habituados, mais fácil será para mim escrever o que penso sem ser maltratado por qualquer "chófér" das praças da capital.
Deixo-vos hoje duas histórias.
Uma história
- Era p'a Sant'Ápolónia, fachavor... - disse eu, bufando do esforço de entrar para dentro da viatura com um pesado saco de viagem.
O taxista, cinquentão, com um cheiro que porventura seria familiar a quem já passou por uma morgue, arranca, em segunda - mudança pela qual tinha especial carinho. Ali ao pé do Cais do Sodré começa o interrogatório:
- Então, vai para a terra, não é? - pergunta ele.
- Vou. - digo eu, na esperança de que a resposta lacónica lhe mostrasse que queria mais despacho e menos conversa (continuávamos em segunda e o conta-rotações estava animado de uma vida própria que nunca mais testemunhei em carro algum...)
- É de Tomar, não é? - pergunta ele, com um sorriso mefistofélico.
"Porra!", pensei para comigo. "Querem ver que este safardana me conhece?"
- Sou, sim senhor. Como é que adivinhou? - pergunto, com um tom de voz que esperei saísse frio e sibilino.
- Pelo sotaque. A minha mulher também é de lá.
"Foda-se!", pensei outra vez para comigo, porque me repugnava a ideia de pensar com o taxista e não havia por ali mais ninguém. "SOTAQUE? EU? Este tipo é doido"
- Muito bem. Casou com uma tomarense, teve bom gosto. - respondi-lhe, pensando que uma "colher de chá" de simpatia o tornasse mais expedito e o lembrasse de que havia outras mudanças para além daquela bendita segunda.
- É verdade. A minha mulher é de Tomar... - pausa. O senhor respira fundo. Olha por mim pelo retrovisor e dispara:
- PUTA QUE A PARIU! Logo não morresse de uma vez, o caralho da mulher! Não é que agora, no fim de velha, deu em Jeová?! Anda para aí com as amigas a distribuir papelinhos na esquina, como as putas? - nova pausa, para limpar a espuma que lhe corria da boca. - Eu já lhe disse: se eu volto a chegar a casa e não tenho o jantar pronto porque andas para aí com os Jeovás, dou-te uma carga de cachaporra que nem te levantas!
"Refoda-se!", pensei eu, "ainda tenho um acidente por causa da infeliz tomarense". Decidi inflectir na conversa:
- E o senhor de onde é?
- De Porto Côvo - responde, impante. - Conhece?
- Conheço, mais ou menos.
- Há-de lá ir um dia. Ali é que se come bem. Muita carne de porco, daqueles porquinhos criados no campo. NÃO É COMO A PUTA DA MINHA MULHER QUE SÓ ME SABE DAR COUVES, CARALHO! Muita couve vocês comem naquela merda daquela terra! Desculpe lá eu dizer isto, mas é que é a MERDA DAS COUVES TODOS OS DIAS!
Chegámos a Santa Apolónia, altura em que passamos da segunda para a primeira.
- Ora átão são seis érios. Bom fim-de-semana e não case com uma de lá.
A viagem foi tenebrosa, mas até hoje tenho seguido esse conselho do taxista.
Outra história
Largo da Misericórdia, vindos do Bairro Alto, eis-nos à espera de táxi para a Ajuda. Chega o táxi, entramos, "Rua...", e lá arrancamos que o condutor é de poucas falas. A Antena 1 vai-lhe fazendo companhia e passa qualquer música apropriada para o adiantado da hora - se não era o Peter Cetera era o Glenn Medeiros...
Chegados àquele ponto crítico em que a Rua do Alecrim se transforma no Cais do Sodré, a Antena 1 decide proporcionar aos seus ouvintes o prazer de escutarem o Luís Represas. É neste momento que tudo muda de figura. Os quatro passageiros incautos acordam abruptamente da nuvem etílica em que vinham planando com os violentos murros que o taxista dava no auto-rádio. Quando vê oito olhos aflitos postos nele, o senhor explica-se, numa voz tonitruante:
-Só passam comunas na rádio, pá! É só comunas! Isto está entregue à bicharada, é o que é! Até aquela gaja que não era comuna, que era a Madredeus, abalou para o estrangeiro!! - e mais um soco, para cimentar a posição.
Chegámos a casa sem precalços. A seguir ao Luís Represas passaram a Jennifer Rush, cujas convicções políticas - se as tiver - não causaram engulhos àquele sábio estudioso da música portuguesa e do seu papel enquanto arma de propaganda ideológica...
Para quem me conhece isto não constitui surpresa: ando de táxi com frequência. Ou de carro de praça, se preferirem. Já muita gente escreveu, e bem, sobre os táxis, os taxistas e o taxismo. Já foram louvados, zurzidos e escarnecidos. Como já estão habituados, mais fácil será para mim escrever o que penso sem ser maltratado por qualquer "chófér" das praças da capital.
Deixo-vos hoje duas histórias.
Uma história
- Era p'a Sant'Ápolónia, fachavor... - disse eu, bufando do esforço de entrar para dentro da viatura com um pesado saco de viagem.
O taxista, cinquentão, com um cheiro que porventura seria familiar a quem já passou por uma morgue, arranca, em segunda - mudança pela qual tinha especial carinho. Ali ao pé do Cais do Sodré começa o interrogatório:
- Então, vai para a terra, não é? - pergunta ele.
- Vou. - digo eu, na esperança de que a resposta lacónica lhe mostrasse que queria mais despacho e menos conversa (continuávamos em segunda e o conta-rotações estava animado de uma vida própria que nunca mais testemunhei em carro algum...)
- É de Tomar, não é? - pergunta ele, com um sorriso mefistofélico.
"Porra!", pensei para comigo. "Querem ver que este safardana me conhece?"
- Sou, sim senhor. Como é que adivinhou? - pergunto, com um tom de voz que esperei saísse frio e sibilino.
- Pelo sotaque. A minha mulher também é de lá.
"Foda-se!", pensei outra vez para comigo, porque me repugnava a ideia de pensar com o taxista e não havia por ali mais ninguém. "SOTAQUE? EU? Este tipo é doido"
- Muito bem. Casou com uma tomarense, teve bom gosto. - respondi-lhe, pensando que uma "colher de chá" de simpatia o tornasse mais expedito e o lembrasse de que havia outras mudanças para além daquela bendita segunda.
- É verdade. A minha mulher é de Tomar... - pausa. O senhor respira fundo. Olha por mim pelo retrovisor e dispara:
- PUTA QUE A PARIU! Logo não morresse de uma vez, o caralho da mulher! Não é que agora, no fim de velha, deu em Jeová?! Anda para aí com as amigas a distribuir papelinhos na esquina, como as putas? - nova pausa, para limpar a espuma que lhe corria da boca. - Eu já lhe disse: se eu volto a chegar a casa e não tenho o jantar pronto porque andas para aí com os Jeovás, dou-te uma carga de cachaporra que nem te levantas!
"Refoda-se!", pensei eu, "ainda tenho um acidente por causa da infeliz tomarense". Decidi inflectir na conversa:
- E o senhor de onde é?
- De Porto Côvo - responde, impante. - Conhece?
- Conheço, mais ou menos.
- Há-de lá ir um dia. Ali é que se come bem. Muita carne de porco, daqueles porquinhos criados no campo. NÃO É COMO A PUTA DA MINHA MULHER QUE SÓ ME SABE DAR COUVES, CARALHO! Muita couve vocês comem naquela merda daquela terra! Desculpe lá eu dizer isto, mas é que é a MERDA DAS COUVES TODOS OS DIAS!
Chegámos a Santa Apolónia, altura em que passamos da segunda para a primeira.
- Ora átão são seis érios. Bom fim-de-semana e não case com uma de lá.
A viagem foi tenebrosa, mas até hoje tenho seguido esse conselho do taxista.
Outra história
Largo da Misericórdia, vindos do Bairro Alto, eis-nos à espera de táxi para a Ajuda. Chega o táxi, entramos, "Rua...", e lá arrancamos que o condutor é de poucas falas. A Antena 1 vai-lhe fazendo companhia e passa qualquer música apropriada para o adiantado da hora - se não era o Peter Cetera era o Glenn Medeiros...
Chegados àquele ponto crítico em que a Rua do Alecrim se transforma no Cais do Sodré, a Antena 1 decide proporcionar aos seus ouvintes o prazer de escutarem o Luís Represas. É neste momento que tudo muda de figura. Os quatro passageiros incautos acordam abruptamente da nuvem etílica em que vinham planando com os violentos murros que o taxista dava no auto-rádio. Quando vê oito olhos aflitos postos nele, o senhor explica-se, numa voz tonitruante:
-Só passam comunas na rádio, pá! É só comunas! Isto está entregue à bicharada, é o que é! Até aquela gaja que não era comuna, que era a Madredeus, abalou para o estrangeiro!! - e mais um soco, para cimentar a posição.
Chegámos a casa sem precalços. A seguir ao Luís Represas passaram a Jennifer Rush, cujas convicções políticas - se as tiver - não causaram engulhos àquele sábio estudioso da música portuguesa e do seu papel enquanto arma de propaganda ideológica...
Arrotos do Porco: