quarta-feira, novembro 05, 2003 |
ESCREVER MESMO
Durante anos, fui incapaz de escrever qualquer coisa vagamente criativa ou literária num computador. Concordo com muitos dos que estão a pensar que, face às amostras disponíveis, essa incapacidade permanece; mas eu quero é falar do meio e não do autor. Retomando: durante anos, escrever era, para mim, sinónimo de papel e caneta.
Poucos gestos me davam mais prazer e nenhum (ou quase) tinha o mesmo efeito tranquilizante e balsâmico. Quando escrevia à mão, era o corpo inteiro que escrevia por detrás daquele gesto improvável do desenho de palavras - e conseguia sentir-me plenamente "eu".
Nunca acreditei muito naquelas teorias do "descubra a sua personalidade através da análise da caligrafia" - a minha personalidade, prefiro ir conhecendo aos poucos; a dos outros, convenhamos, existem formas bem mais interessantes de a descobrir. Mas havia sempre um pedaço de nós nas palavras que nos saíam das mãos. Deixem-me pensar assim: é um consolo, à falta de descendência, inventariar o número de destinatários que vai guardando (espero!) essas pequenas partículas epidérmicas...
Enchi cadernos, blocos, folhas soltas, papel de carta; espalhei-me em inúmeros suportes feitos com pastas de melhor ou pior qualidade; e hoje, que me lembrei disso nem sei porquê, fiquei contente por ver que não preciso daquilo que de mim fui entregando.
Se calhar, todos somos mais do que precisamos. Escrever à mão eliminava, quase sempre em proveito de outros (eu sei que o "proveito" é muito discutível...), esse excesso de mim. Ainda que tenha saudades do gesto, escrever aqui, neste nosso porquinho, tem exactamente o mesmo efeito - e tem esse atributo vital da improbabilidade de me reler. Se algum dia souber escrever qualquer coisa que valha a pena guardar para os vindouros, escolho o mais bonito dos corpos, o mais fino pigmento e um bom taxidermista.
Durante anos, fui incapaz de escrever qualquer coisa vagamente criativa ou literária num computador. Concordo com muitos dos que estão a pensar que, face às amostras disponíveis, essa incapacidade permanece; mas eu quero é falar do meio e não do autor. Retomando: durante anos, escrever era, para mim, sinónimo de papel e caneta.
Poucos gestos me davam mais prazer e nenhum (ou quase) tinha o mesmo efeito tranquilizante e balsâmico. Quando escrevia à mão, era o corpo inteiro que escrevia por detrás daquele gesto improvável do desenho de palavras - e conseguia sentir-me plenamente "eu".
Nunca acreditei muito naquelas teorias do "descubra a sua personalidade através da análise da caligrafia" - a minha personalidade, prefiro ir conhecendo aos poucos; a dos outros, convenhamos, existem formas bem mais interessantes de a descobrir. Mas havia sempre um pedaço de nós nas palavras que nos saíam das mãos. Deixem-me pensar assim: é um consolo, à falta de descendência, inventariar o número de destinatários que vai guardando (espero!) essas pequenas partículas epidérmicas...
Enchi cadernos, blocos, folhas soltas, papel de carta; espalhei-me em inúmeros suportes feitos com pastas de melhor ou pior qualidade; e hoje, que me lembrei disso nem sei porquê, fiquei contente por ver que não preciso daquilo que de mim fui entregando.
Se calhar, todos somos mais do que precisamos. Escrever à mão eliminava, quase sempre em proveito de outros (eu sei que o "proveito" é muito discutível...), esse excesso de mim. Ainda que tenha saudades do gesto, escrever aqui, neste nosso porquinho, tem exactamente o mesmo efeito - e tem esse atributo vital da improbabilidade de me reler. Se algum dia souber escrever qualquer coisa que valha a pena guardar para os vindouros, escolho o mais bonito dos corpos, o mais fino pigmento e um bom taxidermista.
Arrotos do Porco: