sexta-feira, novembro 14, 2003 |
Maus tempos
Quando regressava do almoço, debaixo de chuva miúda e irritante, vi uma cena curiosa. Um homem despiu o seu casaco e pousou-o sobre a cabeça da mulher que o acompanhava, para a proteger da chuva. Ambos aparentavam andar na casa dos 30-40 anos (mais chegados aos 30...) e não pareciam ter qualquer intimidade acrescida entre eles, a avaliar pela forma delicada e respeitosa pela qual ele lhe ofereceu o casaco.
Perante isto, assaltaram-me dois pensamentos contraditórios. Se, por um lado, a evocação do "cavalheirismo masculino" era muito forte, suspeitei por outro haver uma estratégia de sedução em desenvolvimento. A um gesto que o nosso imaginário imediatamente identifica com nobreza de actos e pureza de intenções, apôs a minha consiência um sentido perverso de ilusão e cerco.
Se pensarmos seriamente nisto, o que nos diz a nós que os cavalheiros de há 100 ou 200 anos não protagonizavam os seus gestos de cavalheirismo com a mesmíssima intenção engatatória que reveste a maior parte das acções dos homens de hoje face a mulheres atraentes? Apenas e só a fama de tais tempos. São tempos que entraram na nossa memória como tempos de homens nobres, rectos e dignos. E tal fama não veio, decerto, posteriormente: foi cultivada na época e passou incólume face às indubitáveis fraquezas humanas que, nessa altura como agora, preenchiam a sociedade.
Daqui por 100 ou 200 anos, este tempo, o nosso tempo, será lembrado como? Como uma época de cinismo, interesse, desonestidade, vileza, traição? Não é que me rale nada a maneira como vamos ser vistos nessa altura, mas preocupa-me a fraquíssima impressão que agora temos de nós próprios.
Que, provavelmente, é aquela que vamos passar às gerações que aí venham.
Arrotos do Porco: