segunda-feira, fevereiro 28, 2005 |
ACTUALIDADES V
«Hamlet
Speak; I am bound to hear.
Ghost
So art thou to revenge, when thou shalt hear.
Hamlet
What?
Ghost
I am thy father’s spirit;
Doom’d for a certain term to walk the night,
And for the day confin’d to wastein fires,
Till the foul crimes done in my days of nature
Are burnt and purg’d away. But that I am forbid
To tell the secrets of my prison-house,
I could a tale unfold whose lightest word
Would harrow up thy soul; freeze thy young blood;
Make thy two eyes, like stars, start from their spheres;
Thy knotted and combined locks to part,
And each particular hair to stand on end
Like quills upon the fretful porcupine:
But this eternal blazon must not be
To ears of esh and blo od.–List, list, O, list!–
If thou didst ever thy dear father love–
Hamlet
O God!
Ghost
Revenge his foul and most unnatural murder.
Hamlet
Murder!
Ghost
Murder most foul, as in the best it is;
But this most foul, strange, and unnatural(...).
Speak; I am bound to hear.
Ghost
So art thou to revenge, when thou shalt hear.
Hamlet
What?
Ghost
I am thy father’s spirit;
Doom’d for a certain term to walk the night,
And for the day confin’d to wastein fires,
Till the foul crimes done in my days of nature
Are burnt and purg’d away. But that I am forbid
To tell the secrets of my prison-house,
I could a tale unfold whose lightest word
Would harrow up thy soul; freeze thy young blood;
Make thy two eyes, like stars, start from their spheres;
Thy knotted and combined locks to part,
And each particular hair to stand on end
Like quills upon the fretful porcupine:
But this eternal blazon must not be
To ears of esh and blo od.–List, list, O, list!–
If thou didst ever thy dear father love–
Hamlet
O God!
Ghost
Revenge his foul and most unnatural murder.
Hamlet
Murder!
Ghost
Murder most foul, as in the best it is;
But this most foul, strange, and unnatural(...).
Ghost
I find thee apt;
And duller shouldst thou be than the fat weed
That rots itself in ease on Lethe wharf,
Wouldst thou not stir in this. Now, Hamlet, hear.
’Tis given out that, sleeping in my orchard,
A serpent stung me; so the whole ear of Denmark
Is by a forged process of my death
Rankly abus’d; but know, thou noble youth,
The serpent that did sting thy father’s life
Now wears his crown.
Hamlet
O my prophetic soul!
Mine uncle!
Ghost
Ay, that incestuous, that adulterate beast,
With witchcraft of his wit, with traitorous gifts,–
O wicked wit and gifts, that have the power
So to seduce!–won to his shameful lust
The will of my most seeming-virtuous queen:
O Hamlet, what a falling-o was there!».
I find thee apt;
And duller shouldst thou be than the fat weed
That rots itself in ease on Lethe wharf,
Wouldst thou not stir in this. Now, Hamlet, hear.
’Tis given out that, sleeping in my orchard,
A serpent stung me; so the whole ear of Denmark
Is by a forged process of my death
Rankly abus’d; but know, thou noble youth,
The serpent that did sting thy father’s life
Now wears his crown.
Hamlet
O my prophetic soul!
Mine uncle!
Ghost
Ay, that incestuous, that adulterate beast,
With witchcraft of his wit, with traitorous gifts,–
O wicked wit and gifts, that have the power
So to seduce!–won to his shameful lust
The will of my most seeming-virtuous queen:
O Hamlet, what a falling-o was there!».
Hamlet, Prince of Denmark, William Shakespeare
Já todos conhecem o clássico, onde surge um «Something is rotten in the state of Denmark» que tem marcado gerações.
Quanto a mim, o Guilherme andava a fumar umas coisas quando escreveu isto. Ora reparem: temos um aspirante a Rei que se dá com o Tio - que é o novo Rei, depois da morte do anterior, pai do primeiro - e vê fantasmas. O tio, por sua vez. anda a comer a mãe do Hamlet - o tal que é aspirante a Rei - ou seja, anda para aqui uma grande confusão nas identidades sexuais.
Como se não bastasse, o tal Hamlet anda a ser informado por um «bufo» que aparece na forma de espírito e que anda sempre a queixar-se: «Ai, que me mataram! Ai, ai, que o teu Tio anda a comer a minha viúva! Ai, ai, que me envenenaram!», e coisas do género.
Não satisfeito, Hamlet, o Princípe da Dinamarca, pega na caveira e fala com ela, indeciso. A indecisão não é um sinal de fraqueza? Como é que este tipo poderia, alguma vez, levar a cabo a missão que aceitou do espírito de seu Pai?
Certo e sabido é o final: morrem todos, ou envenenados ou trespassados pelo ferro gelado de uma espada ou de um punhal. A Traição, ainda assim, prevalece.
Ainda bem que foi lá para o Reino da Dinamarca...
Mas, pergunto eu, não haverá semelhanças com as «tragédias» e jogos políticos do Portugal do século XXI? E não só...
sexta-feira, fevereiro 25, 2005 |
Microfábulas – IX
Havia, certa vez, uma zelosa funcionária pública, assistente administrativa em meio de carreira, sobre a qual pesava o fardo de ter sido apanhada, há já largos anos, em poses menos próprias com o seu Director de Serviços de então. Poucas coisas tanto perdurarão na função pública como a memória das falhas alheias e esta era uma falha que se passava de concurso de acesso em concurso de acesso, verdadeiro “facho olímpico” dos avisos sobre maus costumes e falta de vergonha – ou de cautela, dependendo do prisma. “Lá vai a Rainha do Sexo Anal!”, diriam uns; “Lá vai a Maria Eduarda!”, diriam os mais educados.
De nada valera a Maria Eduarda ter-se tentado defender, na altura, com os argumentos de que não era casada nem comprometida: ainda que o “Senhor Director” fosse divorciado, a imagem que ficava era a da jovenzinha lorpa que se deixara levar ao engano. “E logo por trás!”. De nada lhe valera ser diligente e dedicada no trabalho, com uma eficiência que aumentava rancores alheios e acusações de falta de solidariedade. De nada lhe valera pensar que, anos depois, aquando de uma licença de parto, a sua reputação ressurgiria impoluta – mal regressou, logo começaram os ditos de espírito e os remoques… “Não sabia que agora também se engravidava por detrás! Eh eh eh!”… De nada lhe valera coisa alguma: Maria Eduarda trazia na testa o ferrete do comportamento ignominioso, ferrete que a seguira nas mudanças de serviço e mesmo de instituição. “A Maria Eduarda não se havia de espantar. Estas coisas sabem-se, sabe como é…”, diriam as colegas de ocasião, antes e depois de se rirem nas suas costas – e bastava a expressão “rir nas suas costas” para que todas se lembrassem do ocorrido e rissem mais um bocadinho.
Já se não recordava Maria Eduarda de como ganhara imunidade aos dichotes, aos reparos, às insinuações. Fazia o seu trabalho porque dele precisava para o sustento, passando ali as horas estritamente necessárias, sem procurar um relacionamento amistoso, um espírito de equipa ou qualquer simpatia. Sentia-se uma peça num monólito que por vezes se assemelhava a uma engrenagem – imagem mental que nunca poderia partilhar com alguém sem temor de ouvir como resposta qualquer comentário sobre “peças bem oleadas” ou um outro surgido da vasta temática da lubrificação. Tentava dedicar-se a uma vida pessoal e familiar que pouco mais lhe dava que umas migalhas de alento e expiava o seu momento de fraqueza nas obras sociais da Igreja.
Num dado dia, estava Maria Eduarda a almoçar na cantina do organismo público em que trabalhava quando a seu lado se sentam duas colegas carregando tabuleiros com o mesmo peixe cozido com legumes que ela comia. “Isto nem de propósito, hein? À Maria Eduarda calhou-lhe uma posta do rabo, eh eh eh!”.
Nisto, vzzzzzzzzzt!
Moral 1: a qualidade de serviço nas cantinas públicas deixa muito a desejar, não sendo tão raros como isso os casos de intoxicações alimentares mais ou menos severas.
Moral 2: os locais de trabalho concebidos sob a óptica do “open space” poderão contribuir para que a convivialidade no exercício de funções não ultrapasse os limites tidos por socialmente aceitáveis.
Havia, certa vez, uma zelosa funcionária pública, assistente administrativa em meio de carreira, sobre a qual pesava o fardo de ter sido apanhada, há já largos anos, em poses menos próprias com o seu Director de Serviços de então. Poucas coisas tanto perdurarão na função pública como a memória das falhas alheias e esta era uma falha que se passava de concurso de acesso em concurso de acesso, verdadeiro “facho olímpico” dos avisos sobre maus costumes e falta de vergonha – ou de cautela, dependendo do prisma. “Lá vai a Rainha do Sexo Anal!”, diriam uns; “Lá vai a Maria Eduarda!”, diriam os mais educados.
De nada valera a Maria Eduarda ter-se tentado defender, na altura, com os argumentos de que não era casada nem comprometida: ainda que o “Senhor Director” fosse divorciado, a imagem que ficava era a da jovenzinha lorpa que se deixara levar ao engano. “E logo por trás!”. De nada lhe valera ser diligente e dedicada no trabalho, com uma eficiência que aumentava rancores alheios e acusações de falta de solidariedade. De nada lhe valera pensar que, anos depois, aquando de uma licença de parto, a sua reputação ressurgiria impoluta – mal regressou, logo começaram os ditos de espírito e os remoques… “Não sabia que agora também se engravidava por detrás! Eh eh eh!”… De nada lhe valera coisa alguma: Maria Eduarda trazia na testa o ferrete do comportamento ignominioso, ferrete que a seguira nas mudanças de serviço e mesmo de instituição. “A Maria Eduarda não se havia de espantar. Estas coisas sabem-se, sabe como é…”, diriam as colegas de ocasião, antes e depois de se rirem nas suas costas – e bastava a expressão “rir nas suas costas” para que todas se lembrassem do ocorrido e rissem mais um bocadinho.
Já se não recordava Maria Eduarda de como ganhara imunidade aos dichotes, aos reparos, às insinuações. Fazia o seu trabalho porque dele precisava para o sustento, passando ali as horas estritamente necessárias, sem procurar um relacionamento amistoso, um espírito de equipa ou qualquer simpatia. Sentia-se uma peça num monólito que por vezes se assemelhava a uma engrenagem – imagem mental que nunca poderia partilhar com alguém sem temor de ouvir como resposta qualquer comentário sobre “peças bem oleadas” ou um outro surgido da vasta temática da lubrificação. Tentava dedicar-se a uma vida pessoal e familiar que pouco mais lhe dava que umas migalhas de alento e expiava o seu momento de fraqueza nas obras sociais da Igreja.
Num dado dia, estava Maria Eduarda a almoçar na cantina do organismo público em que trabalhava quando a seu lado se sentam duas colegas carregando tabuleiros com o mesmo peixe cozido com legumes que ela comia. “Isto nem de propósito, hein? À Maria Eduarda calhou-lhe uma posta do rabo, eh eh eh!”.
Nisto, vzzzzzzzzzt!
Moral 1: a qualidade de serviço nas cantinas públicas deixa muito a desejar, não sendo tão raros como isso os casos de intoxicações alimentares mais ou menos severas.
Moral 2: os locais de trabalho concebidos sob a óptica do “open space” poderão contribuir para que a convivialidade no exercício de funções não ultrapasse os limites tidos por socialmente aceitáveis.
ACTUALIDADES IV
Edmond Dantès era um jovem e esforçado marinheiro. Os seus amigos acusaram-no injustamente de um crime que não tinha cometido, tendo ele sido condenado a prisão perpétua. Foi atirado para o Castelo de If, onde padeceu durante 15 anos. Conviveu com um Abade místico – o Abade Faria – que acaba por lhe conceder dois dons: ser livre e ser rico.
Depois de uma fuga digna das melhores descrições literárias, dirige-se à ilha de Monte-Cristo, onde o espera um tesouro fabuloso.
Artificioso, consegue levar a sua ideia avante e livrar-se dos próprios homens que mentiram e que o levaram a ser condenado, tornando-se um socialmente reconhecido Conde.
Depois, vai viver a sua vida.
«Le Comte de Monte-Cristo» foi escrito em 1844, por Alexandre Dumas (pai). Refere-se ao triunfo da Verdade libertadora sobre o jugo imposto pela Injustiça. Mas com muito estilo.
A fogueira da injustiça ainda arde universalmente. Busquemos a verdade.
Edmond Dantès era um jovem e esforçado marinheiro. Os seus amigos acusaram-no injustamente de um crime que não tinha cometido, tendo ele sido condenado a prisão perpétua. Foi atirado para o Castelo de If, onde padeceu durante 15 anos. Conviveu com um Abade místico – o Abade Faria – que acaba por lhe conceder dois dons: ser livre e ser rico.
Depois de uma fuga digna das melhores descrições literárias, dirige-se à ilha de Monte-Cristo, onde o espera um tesouro fabuloso.
Artificioso, consegue levar a sua ideia avante e livrar-se dos próprios homens que mentiram e que o levaram a ser condenado, tornando-se um socialmente reconhecido Conde.
Depois, vai viver a sua vida.
«Le Comte de Monte-Cristo» foi escrito em 1844, por Alexandre Dumas (pai). Refere-se ao triunfo da Verdade libertadora sobre o jugo imposto pela Injustiça. Mas com muito estilo.
A fogueira da injustiça ainda arde universalmente. Busquemos a verdade.
A HISTÓRIA EM DOCUMENTOS E OUTRAS TRALHAS
A blogosfera está prenhe de gente generosa. Gente que, a troco de nada, partilha o que tem com quem nem conhece, dando-se ao trabalho de colocar à nossa disposição informação que de outro modo não obteríamos, pelo menos não com a facilidade de um clique. Desta vez descobri um blogue que publica Coisas de Outros Tempos - cópias de documentos muito interessantes, que vão desde uma Licença Anual para Acendedores e Isqueiros de 1970, até um Cartão de Identidade da Mocidade Portuguesa ou O Guia Oficial da Exposição do Mundo Português em 1940, todos os documentos são enquadrados por textos rigorosos e links relacionados.
A blogosfera está prenhe de gente generosa. Gente que, a troco de nada, partilha o que tem com quem nem conhece, dando-se ao trabalho de colocar à nossa disposição informação que de outro modo não obteríamos, pelo menos não com a facilidade de um clique. Desta vez descobri um blogue que publica Coisas de Outros Tempos - cópias de documentos muito interessantes, que vão desde uma Licença Anual para Acendedores e Isqueiros de 1970, até um Cartão de Identidade da Mocidade Portuguesa ou O Guia Oficial da Exposição do Mundo Português em 1940, todos os documentos são enquadrados por textos rigorosos e links relacionados.
Ora espreitem lá, e já agora, o mesmo autor tem outro blog igualmente interessante para quem tem a Mania dos Quadradinhos.
quinta-feira, fevereiro 24, 2005 |
ACTUALIDADES III
«Suppõem ter amigos occultos, mas de um grande poder, que os protegem. Esta ordem de idéas imprime desde então o seu cunho ao conjunto das concepções e allucinações: os doentes fallam de grandes personagens que vêem por toda a parte, desconhecem a identidade real dos individuos, que os cercam e crêem que imperadores, imperatrizes e principes os visitam ou lhes enviam mensagens. No meio do delírio melancolico as idéas de grandeza adquirem realmente uma importância preponderante (…).
A monomania ou loucura parcial é caracterisada por uma illusão particular ou erronea convicção do intendimento, determinando uma aberração do juizo; o monomaniaco é incapaz de pensar correctamente sobre objectos relacionados com a sua illusão especial, embora sobre outros assumptos não manifeste apreciaveis desordens do espírito (…).
Por nossa parte, cremos dever apontar um caso clinico de observação pessoal que póde juntar-se aos de Séglas.
Trata-se de um antigo empregado commercial, celibatario, tendo actualmente 45 annos de idade, e a quem já em outra publicação nos referimos. O periodo de incubação delirante, a que accidentalmeme assistimos, mercê das relações que então mantinhamos com um irmão, remonta a 1878; no anno immediato o delirio de perseguições achava-se installado, fazendo-se acompanhar de allucinações auditivas e provocando da parte do doente reacções violentas: chamavam-lhe, na rua e nos cafés, _pederasta, onanista, devasso_, ao que elle respondia aggredindo os suppostos insultadores. Refugiando-se successivamente em casas de amigos, em pequenos hoteis e em hospitaes particulares, o doente veiu, por fim, a dar entrada no manicomio do Conde de Ferreira, em abril de 1883, apresentando então, de mistura com o delirio de perseguições, idéas ambiciosas que apenas exhibia em cartas e só um anno depois começou a exteriorisar oralmente: tinha descoberto um novo systema do mundo, pretendia reformar toda a sciencia astronomica e todo o systema social; as perseguições soffridas e a sequestração, _o mais infame de todos os crimes até hoje praticados_, vinham-lhe do Papa, que assim defendia os dogmas christãos, e do Rei, que defendia a ordem social existente. Lentamente, as idéas ambiciosas foram dominando o delirio de perseguições, que hoje se alimenta exclusivamente no prolongamento da sequestração; livre, este doente seria o typo perfeito do megalómano».
A Paranóia, Julio de Mattos
Este estudo veio a público no ano de 1898 e versava algo que, já nessa altura, preocupava a sociedade: as manias de perseguição e toda a paranóia daí decorrente.
Desta, até pode dizer-se que afectou Povos por inteiro. Em momentos determinados da História.
Há sempre alguém que sofre disto ou daquilo. Tal como o adágio popular nos ensina: «de menino e de louco, todos temos um pouco».
A loucura impera.
«Suppõem ter amigos occultos, mas de um grande poder, que os protegem. Esta ordem de idéas imprime desde então o seu cunho ao conjunto das concepções e allucinações: os doentes fallam de grandes personagens que vêem por toda a parte, desconhecem a identidade real dos individuos, que os cercam e crêem que imperadores, imperatrizes e principes os visitam ou lhes enviam mensagens. No meio do delírio melancolico as idéas de grandeza adquirem realmente uma importância preponderante (…).
A monomania ou loucura parcial é caracterisada por uma illusão particular ou erronea convicção do intendimento, determinando uma aberração do juizo; o monomaniaco é incapaz de pensar correctamente sobre objectos relacionados com a sua illusão especial, embora sobre outros assumptos não manifeste apreciaveis desordens do espírito (…).
Por nossa parte, cremos dever apontar um caso clinico de observação pessoal que póde juntar-se aos de Séglas.
Trata-se de um antigo empregado commercial, celibatario, tendo actualmente 45 annos de idade, e a quem já em outra publicação nos referimos. O periodo de incubação delirante, a que accidentalmeme assistimos, mercê das relações que então mantinhamos com um irmão, remonta a 1878; no anno immediato o delirio de perseguições achava-se installado, fazendo-se acompanhar de allucinações auditivas e provocando da parte do doente reacções violentas: chamavam-lhe, na rua e nos cafés, _pederasta, onanista, devasso_, ao que elle respondia aggredindo os suppostos insultadores. Refugiando-se successivamente em casas de amigos, em pequenos hoteis e em hospitaes particulares, o doente veiu, por fim, a dar entrada no manicomio do Conde de Ferreira, em abril de 1883, apresentando então, de mistura com o delirio de perseguições, idéas ambiciosas que apenas exhibia em cartas e só um anno depois começou a exteriorisar oralmente: tinha descoberto um novo systema do mundo, pretendia reformar toda a sciencia astronomica e todo o systema social; as perseguições soffridas e a sequestração, _o mais infame de todos os crimes até hoje praticados_, vinham-lhe do Papa, que assim defendia os dogmas christãos, e do Rei, que defendia a ordem social existente. Lentamente, as idéas ambiciosas foram dominando o delirio de perseguições, que hoje se alimenta exclusivamente no prolongamento da sequestração; livre, este doente seria o typo perfeito do megalómano».
A Paranóia, Julio de Mattos
Este estudo veio a público no ano de 1898 e versava algo que, já nessa altura, preocupava a sociedade: as manias de perseguição e toda a paranóia daí decorrente.
Desta, até pode dizer-se que afectou Povos por inteiro. Em momentos determinados da História.
Há sempre alguém que sofre disto ou daquilo. Tal como o adágio popular nos ensina: «de menino e de louco, todos temos um pouco».
A loucura impera.
quarta-feira, fevereiro 23, 2005 |
Microfábulas – VIII
Havia, certa vez, um jovem profundamente marcado pelo Processo Revolucionário em Curso mas que chegava ao dealbar dos anos 80 dividido entre as esquerdas moderadas da UEDS e da ASDI. “Lá vai esse porco rendido à reacção!”, diriam uns; “Lá vai o Álvaro!”, diriam os mais educados. Tudo em Álvaro era de esquerda: para começar, era canhoto. Fora extremo esquerdo nos iniciados da Quimigal (ainda era CUF, na altura, mas nunca mais da sua boca sairia a sigla do grande capital), caminhava pela esquerda como qualquer peão civilizado, e eram de esquerda as suas suíças, a sua camisa de xadrez com colarinhos compridos, as suas calças coçadas à boca-de-sino, as suas sandálias, a sua crença no amor livre, o seu desrespeito pela religião, a sua convicção no artificialismo das estratificações sociais, o seu apego à condição de professor primário. Era moderado porque sim, porque também tudo em Álvaro era moderado: tinha suíças mas eram bem aparadas, a camisa de xadrez estava impecavelmente engomada, as calças estavam coçadas mas nunca muito puídas ou rotas, nunca fora titular na Quimigal, era canhoto mas tinha uma caligrafia indecifrável, desprezava qualquer religião mas era crismado, era socialista mas orgulhoso do seu estatuto de classe média e acreditava no amor livre ainda que pouco o pusesse em prática. E se as outras inerências da sua condição de radical moderado pouco o amofinavam, já esta última trazia-o algo catastrofado. Que diabo!, era o despertar da liberdade!, era um tempo novo!! E as gajas?! Álvaro bem se esforçava para ter uma conversa interessante nos cafés e nas boîtes onde se cruzava com o mulherio, mas a fórmula parecia escapar-se-lhe e regressava a casa sozinho e incrédulo ante a falta de efeito de frases cuidadas como “Estás a beber absinto? Tem graça, sempre me fascinou a coloração esverdeada que o absinto provoca na minha urina.”
Enquanto enchia de alpista os comedouros dos periquitos, a altas horas da noite, Álvaro garantia-se que para a próxima é que era – “ou não seja o Barão um dos melhores defesas que já passou pelo Sporting!”. E no dia seguinte lá saía Álvaro, encharcado em Blue Stratos, com mais umas frases em carteira – “Olá! Olhei para ti e pensei que, com esses cabelos vermelhos, podias ser tu a explicar-me porque é que dizem que as ruivas cheiram a morte!” – e com o pente no bolso de trás não fosse a poupa ficar desfeita. Certo dia, as coisas não lhe correram mal. Chamava-se Lubélia, ela, pouco formosa mas de gargalhada fácil, mãos estragadas e cabelos queimados de permanentes feitas pelo barato. A conversa fluíra por acidente – começara, aliás, com um sonoro “Foda-se!” de Lubélia, ao ser pisada por Álvaro. A bebida fluíra de forma menos acidentada, apenas um salpico aqui ou ali. E Álvaro lá conseguiu levar o troféu Lubélia até casa com a simples pergunta “E se fôssemos a minha casa ouvir o “Humanoid Flesh” dos Tantra?”. Foram, pois, até ao Bairro do Arco do Cego. Álvaro abriu duas garrafas de Green Sands e ligou a aparelhagem Waltham. “Vais ver… a voz do Frodo parece mesmo de uma máquina!”. Colocou o vinil, carregou na patilha do “start” e o braço ergueu-se, avançou até às 12 polegadas e desceu.
Nisto, vzzzzzzzzt!
Moral 1: a substituição regular das agulhas de leitura de vinil é uma prática recomendável para a obtenção do melhor som daquele suporte fonográfico.
Moral 2: o “acaso” enquanto factor despoletador está sobrevalorizado em termos emocionais mas dá origem a literatura simpática, com o Paul Auster à cabeça.
Havia, certa vez, um jovem profundamente marcado pelo Processo Revolucionário em Curso mas que chegava ao dealbar dos anos 80 dividido entre as esquerdas moderadas da UEDS e da ASDI. “Lá vai esse porco rendido à reacção!”, diriam uns; “Lá vai o Álvaro!”, diriam os mais educados. Tudo em Álvaro era de esquerda: para começar, era canhoto. Fora extremo esquerdo nos iniciados da Quimigal (ainda era CUF, na altura, mas nunca mais da sua boca sairia a sigla do grande capital), caminhava pela esquerda como qualquer peão civilizado, e eram de esquerda as suas suíças, a sua camisa de xadrez com colarinhos compridos, as suas calças coçadas à boca-de-sino, as suas sandálias, a sua crença no amor livre, o seu desrespeito pela religião, a sua convicção no artificialismo das estratificações sociais, o seu apego à condição de professor primário. Era moderado porque sim, porque também tudo em Álvaro era moderado: tinha suíças mas eram bem aparadas, a camisa de xadrez estava impecavelmente engomada, as calças estavam coçadas mas nunca muito puídas ou rotas, nunca fora titular na Quimigal, era canhoto mas tinha uma caligrafia indecifrável, desprezava qualquer religião mas era crismado, era socialista mas orgulhoso do seu estatuto de classe média e acreditava no amor livre ainda que pouco o pusesse em prática. E se as outras inerências da sua condição de radical moderado pouco o amofinavam, já esta última trazia-o algo catastrofado. Que diabo!, era o despertar da liberdade!, era um tempo novo!! E as gajas?! Álvaro bem se esforçava para ter uma conversa interessante nos cafés e nas boîtes onde se cruzava com o mulherio, mas a fórmula parecia escapar-se-lhe e regressava a casa sozinho e incrédulo ante a falta de efeito de frases cuidadas como “Estás a beber absinto? Tem graça, sempre me fascinou a coloração esverdeada que o absinto provoca na minha urina.”
Enquanto enchia de alpista os comedouros dos periquitos, a altas horas da noite, Álvaro garantia-se que para a próxima é que era – “ou não seja o Barão um dos melhores defesas que já passou pelo Sporting!”. E no dia seguinte lá saía Álvaro, encharcado em Blue Stratos, com mais umas frases em carteira – “Olá! Olhei para ti e pensei que, com esses cabelos vermelhos, podias ser tu a explicar-me porque é que dizem que as ruivas cheiram a morte!” – e com o pente no bolso de trás não fosse a poupa ficar desfeita. Certo dia, as coisas não lhe correram mal. Chamava-se Lubélia, ela, pouco formosa mas de gargalhada fácil, mãos estragadas e cabelos queimados de permanentes feitas pelo barato. A conversa fluíra por acidente – começara, aliás, com um sonoro “Foda-se!” de Lubélia, ao ser pisada por Álvaro. A bebida fluíra de forma menos acidentada, apenas um salpico aqui ou ali. E Álvaro lá conseguiu levar o troféu Lubélia até casa com a simples pergunta “E se fôssemos a minha casa ouvir o “Humanoid Flesh” dos Tantra?”. Foram, pois, até ao Bairro do Arco do Cego. Álvaro abriu duas garrafas de Green Sands e ligou a aparelhagem Waltham. “Vais ver… a voz do Frodo parece mesmo de uma máquina!”. Colocou o vinil, carregou na patilha do “start” e o braço ergueu-se, avançou até às 12 polegadas e desceu.
Nisto, vzzzzzzzzt!
Moral 1: a substituição regular das agulhas de leitura de vinil é uma prática recomendável para a obtenção do melhor som daquele suporte fonográfico.
Moral 2: o “acaso” enquanto factor despoletador está sobrevalorizado em termos emocionais mas dá origem a literatura simpática, com o Paul Auster à cabeça.
A Minha Sânita.;
(Dedicado à estounua)
Hontê fui há casa de Banho e sanita, estava entupida até cá em cima com, as fezes da família inteira de ontem. Não estive medo porque tinha um disentupidor grande que me tinha dado a minha avó mais una pà, do licho no Natal de á 2 anos na casa da minha avó com os meus país, a minha mãe e os primos todos juntos. Derivado, de a nível de limpezas eu não ter jeito nenhum borrei-me todo semquer sujar, tudo. :A disse a minha mãi és um idiota chapado e burro sem cabeça para as letras que ela devia mandar para a Casa pia para os senhores amigos do Carlos Crux me fazerem aquilo que eles fazem lá hás crianças da Casa Pia. OS, cacalhões maiores resvalarão pela bordas da retrete e deixaram um rasto assim comás lesmas castanho e com pevides de melão e com bagos da arroz. O meu namorado estava todo, cahatiado e esteve a cossar os tomates por causa das catotas todas que tem pegadas porque não se lava bem e as cuecas ficam castanhas e amarelas de ele não çacodir bem o tarolo que fica a pinguar de maneira que tem que sse lavar muito bem por causa do patrão que é um grande cigano diz ele. A minna mãi diz qu têm nojo do meu namorado a modos que é porco e os elásticos das cuecas estão laços e anda pela casa fora com os tomates a sairem de lado das cuecas e as crinaças a verem aquilo tudo de fora com pelos e a Noça, Senhora de Fátima não gosta daquela poca vergonha e como não chegás-ce têreo metido lá em casa. Mas eu não concordo com Fátima e se calhar por causa disso é que sou mafioso e maricas.
FIM
(Dedicado à estounua)
Hontê fui há casa de Banho e sanita, estava entupida até cá em cima com, as fezes da família inteira de ontem. Não estive medo porque tinha um disentupidor grande que me tinha dado a minha avó mais una pà, do licho no Natal de á 2 anos na casa da minha avó com os meus país, a minha mãe e os primos todos juntos. Derivado, de a nível de limpezas eu não ter jeito nenhum borrei-me todo semquer sujar, tudo. :A disse a minha mãi és um idiota chapado e burro sem cabeça para as letras que ela devia mandar para a Casa pia para os senhores amigos do Carlos Crux me fazerem aquilo que eles fazem lá hás crianças da Casa Pia. OS, cacalhões maiores resvalarão pela bordas da retrete e deixaram um rasto assim comás lesmas castanho e com pevides de melão e com bagos da arroz. O meu namorado estava todo, cahatiado e esteve a cossar os tomates por causa das catotas todas que tem pegadas porque não se lava bem e as cuecas ficam castanhas e amarelas de ele não çacodir bem o tarolo que fica a pinguar de maneira que tem que sse lavar muito bem por causa do patrão que é um grande cigano diz ele. A minna mãi diz qu têm nojo do meu namorado a modos que é porco e os elásticos das cuecas estão laços e anda pela casa fora com os tomates a sairem de lado das cuecas e as crinaças a verem aquilo tudo de fora com pelos e a Noça, Senhora de Fátima não gosta daquela poca vergonha e como não chegás-ce têreo metido lá em casa. Mas eu não concordo com Fátima e se calhar por causa disso é que sou mafioso e maricas.
FIM
ACTUALIDADES II
«E aí ele aplicou o golpe de gravata à debócheca. Ela continuava horroroicamente a gri gri grich grichar a quatro tempos e segurou-lhe as rucas atrás das costas enquanto eu a despia disto, disso e daquilo e os outros sempre ah ah ah ah e surgiram então uns belos grudes magníficos e horroróicos exibindo os seus glezezinhos cor-de-rosa, irmãos, enquanto me despia e me preparava para mergulhar. E ao mergulhar esluchi gritos de angústia e o tal sangrento escritorveco que o Pete e Georgie estavam a segurar, quase se soltou aos berros, todo bezúmino, com os eslovos mais porcos que eu conhecia e outros que ele inventava. Ora, depois de mim, era de toda a justiça ser a vez do pobre do Tapado, o que ele fez com berros e grunhidos, de uma maneira bestial, de mascareta de Pê Bê Chile e tudo, sem dar atenção nenhuma enquanto eu segurava a moça. Depois houve render da guarda: o Georgie e o Pete tiveram a sua vez, enquanto o Tapado e eu segurávamos o babado escritorveco que se estava a ir abaixo rapidamente, só dizia uns murmúrios, uns eslovos meio mastigados, parecia que estava em órbita num desses bares de leite-e-etc. Fez-se então profundo silêncio. E nós sentimo-nos assim a modos que cheios de ódio e escavacámos tudo o que faltava escavacar - máquina de escrever, candeeiros, cadeiras - e o Tapado, isto era mesmo próprio só do Tapado, mijou na lareira e ia arrear o calhau na carpete, já que havia tanto papel, mas eu disse que não.
- Rua, rua, rua! - gritei.
O veco escritor e a sua zina já não ouviam nada, todos amachucados, a sangrar e a gemer. Mas, se viessem a morrer, era de velhice.
E assim voltámos para o carro. Passei o volante ao Georgie, sentia-me um malenquezito chateado; e voltámos para a cidade atropelando, pelo caminho, coisas esquisitas que davam gritos».
A Clockwork Orange, Anthony Burgess
Esta obra de Anthony Burgess espelha a violência pela violência, o «animal social» de Rousseau, a reflexão que conclui que o Homem é o produto da sociedade. A vontade própria não conta: sou assim porque a sociedade onde estou inserido me obriga a ser assim.
Nesta história, o vilão é submetido a uma terapia ressocializadora e acaba por ser castigado pelas próprias vítimas da sua actuação. O regresso à Pena de Talião.
Não é suficiente. A terapia ressocializadora falha.
«E aí ele aplicou o golpe de gravata à debócheca. Ela continuava horroroicamente a gri gri grich grichar a quatro tempos e segurou-lhe as rucas atrás das costas enquanto eu a despia disto, disso e daquilo e os outros sempre ah ah ah ah e surgiram então uns belos grudes magníficos e horroróicos exibindo os seus glezezinhos cor-de-rosa, irmãos, enquanto me despia e me preparava para mergulhar. E ao mergulhar esluchi gritos de angústia e o tal sangrento escritorveco que o Pete e Georgie estavam a segurar, quase se soltou aos berros, todo bezúmino, com os eslovos mais porcos que eu conhecia e outros que ele inventava. Ora, depois de mim, era de toda a justiça ser a vez do pobre do Tapado, o que ele fez com berros e grunhidos, de uma maneira bestial, de mascareta de Pê Bê Chile e tudo, sem dar atenção nenhuma enquanto eu segurava a moça. Depois houve render da guarda: o Georgie e o Pete tiveram a sua vez, enquanto o Tapado e eu segurávamos o babado escritorveco que se estava a ir abaixo rapidamente, só dizia uns murmúrios, uns eslovos meio mastigados, parecia que estava em órbita num desses bares de leite-e-etc. Fez-se então profundo silêncio. E nós sentimo-nos assim a modos que cheios de ódio e escavacámos tudo o que faltava escavacar - máquina de escrever, candeeiros, cadeiras - e o Tapado, isto era mesmo próprio só do Tapado, mijou na lareira e ia arrear o calhau na carpete, já que havia tanto papel, mas eu disse que não.
- Rua, rua, rua! - gritei.
O veco escritor e a sua zina já não ouviam nada, todos amachucados, a sangrar e a gemer. Mas, se viessem a morrer, era de velhice.
E assim voltámos para o carro. Passei o volante ao Georgie, sentia-me um malenquezito chateado; e voltámos para a cidade atropelando, pelo caminho, coisas esquisitas que davam gritos».
A Clockwork Orange, Anthony Burgess
Esta obra de Anthony Burgess espelha a violência pela violência, o «animal social» de Rousseau, a reflexão que conclui que o Homem é o produto da sociedade. A vontade própria não conta: sou assim porque a sociedade onde estou inserido me obriga a ser assim.
Nesta história, o vilão é submetido a uma terapia ressocializadora e acaba por ser castigado pelas próprias vítimas da sua actuação. O regresso à Pena de Talião.
Não é suficiente. A terapia ressocializadora falha.
terça-feira, fevereiro 22, 2005 |
Epístola dedicada ao mui gracioso e Nobre Senhor D. António Selles de Castro, no Ano de MDCCXIII, onde são narradas as desventuras de Dona Desidéria Santos por ter caído de amores impuros por Soror Imaculada de Jesus, madre superiora de Stª Clara-a-Nova, na mui Leal Cidade de Coimbra
A António Vieira, que tivera sido nosso contemporâneo, intrgraria certamente as listas de deputados do Bloco de Esquerda.
"Eu Gaspar Simões da Hora, Intendente de Sua Majestade no Paço Episcopal de Goa presenciei acontecimentos terriveis. Mesmo longe de Lisboa, um par de meses chegou para que tão nefastas noticias chegassem aos ouvidos do vulgo e agora corressem as ruas e os botequins acrescidas em pormenores tão fantásticos, que mesmo quem de tudo já viu e ouviu, se espanta de olhos arregalados e ouvidos bem abertos. Rumores chegados dos navios da Companhia, saidos à escassos três meses de Lisboa, falam das canções dos cegos e dos pasquins dos almocreves, que repisam vezes sem conta esta história hedionda. Não me arrependo deste exílio a que fui forçado malgrado todas as peripécias por que passei e algumas boas graças a que tive de apelar para tão longe poder ainda fruir de alguns confortos veneais e da publica função a dignidade. Os bem conhecidos amores contra-natura da irmã do Bispo de Coimbra com a madre superiora dre Stª Clara importa ora lembrar, malgrado o brado profuso que deram deles toda a sorte de néscios, que não se contentaram em guardar para si a repulsa que tais inclinações deveriam causar em criaturas tementes a Deus. Deu Deus Nosso Senhor conta de tais abominações, pois não demorou a que moléstias de toda a sorte acorressem a Dona Desidéria Lemos, assim se chamava a desventurada dama, e lhe atormentassem a carne a a alma na forma de furores ventrais e ânsias de luxúria desmedidas. Temo ter julgado mal o poder do maligno em acirrar más inclinações e vícios nas criaturas mais desatentas das virtudes do amor divino, desviando-as para caminhos inmsidiosos de perdição. Á alma complacente e humilde, surgem-lhe naturalmente certas verdades que por força da sua natureza divina dispensam prova. A malícia, fruto da soberba e dúvida acirra o intelecto contra a ordem natural do Mundo. Multi son vocati pauci vero electi. As boas leituras resvalam em olhos empedernidos e avessos à luz de Nosso senhor Jesus Cristo. Mesmo as as palavras do Doutor Angélico parecerão sandices a quem está fascinado pela volupia dos sentidos.
Quisera o destino, que D.Desidéria fosse o anho que por desatenção, se vê extraviado do rebanho. Naquele dia, mesmo antes de tocar para as vésperas, Soror Imaculada de Jesus veio procurá-la numa agitação pouco habitual. Seu irmão, o Bispo de Coimbra estava ausente, pois fora designado Emissário do Santo Padre, junto das missões da Santa Sé na Baia de Todos os Santos. Tratava das muitas almas que se ajuntavam nas terras do Brasil, pois não bastassem as arremetidas dos Ingleses, e os desmandes dos Holandeses em Stª Catarina, havia ainda a cobiça pelo ouro, que diziam, brotava generoso das águas do rio Capivari. Um demoníaco furor uterino assolava-a e vinha partilhar o leito de D. Desidéria. Auxiliava-a um grosso círio roubado na Sé Nova, para que D. Desidéria a zurzisse bestialmente e lhe acalmasse o demoníaco incúbo que dela se apoderara. A ingénua senhora, na sua paixão desordenada, correspondeu ao frémito desvairado da pia religiosa e uniu-se a ela num amplexo de volúpia carnal. O marido prometido, avançado em anos, D. Antão Gomes de Benavente, de nada desconfiava até que um dia em que dúvida lançada pela velha ama de Desidéria o instou à suspeita. Grossos pepónios – cucurbitae – desapareciam ás matinas, da horta do Convento e iam aparecer na alcova de D. Deisdéria besuntados de banha corada e fragrantes de maresia. Interpelado por D. Antão, o irmão mais novo de D. Desidéria, que também era avesso ao seu próprio género viril, retorquiu com interesse, que gostaria de ver essas abóboras fabulosas pois ele, nos desenfados que tinha com os amigos amaneirados, gostaria também de lhes dar usos ímpios, vestido de mulher, ao que pedia também o favor e o sigílo de D. Antão acerca da sua inclinação contra natura. D. Antão sugeriu-lhe que abandonasse essas abominações horrendas e que também deixasse de apreciar a companhia de burros na sua alcova, pois seu irmão mais velho não tardaria a estar ao corrente de tal infâmia. Continuaram os desmandes destes irmãos sandeus, que se estenderam a todo o Carmelo de Coimbra. Por muitos e muitos anos viu o sacrossanto altar, desfiar no seu seio a ignomínia pérfida do furor tríbade das freiras. Dizem os mais descrentes, e em especial um sapateiro de Trancoso, que almeja por artes obscuras, lograr o futuro – que a Deus, tão só, pertence – mas que nele surge, por vezes, como um dom natural, límpido aos olhos da alma e - diz - que dias hão-de vir, em que uma freira do Carmelo, Lúcia de seu nome, tríbade maior e versada nos prazeres sáficos, grande gastadora de círios grossos com veias salientes, vai ver a Santa Mãe de Jesus no cimo de uma árvore sovereira macha. Instada por tais delírios, vai morrer e obrigar um homem chamado Pedro e outro Paulo, que háo-de nascer e um ser primeiro-ministro do Reino, a interromper a campanha eleitoral e a perder, com grande vergonha, as Eleições. Chorará o povo bruto e rangerão os dentes, mas nada o vai impedir de ser tragado nos fogos sulfúreos do Inferno, durante um Congresso."
É por isso a vós, peixes cujos ouvidos, eu sei saberem guardar os segredos mais torpes - e que me auxilie o engenho e dom da linguagem – que me dirijo, desiludido e confuso, para vos inteirar deste funesta história que li em em pérfida epístola anónima que ora transcrevo contrangido –Quod scribit talia sordida verba? – pergunto eu, sondando os recõnditos da alma.
Assentum sanitae A.D.MMV
A António Vieira, que tivera sido nosso contemporâneo, intrgraria certamente as listas de deputados do Bloco de Esquerda.
"Eu Gaspar Simões da Hora, Intendente de Sua Majestade no Paço Episcopal de Goa presenciei acontecimentos terriveis. Mesmo longe de Lisboa, um par de meses chegou para que tão nefastas noticias chegassem aos ouvidos do vulgo e agora corressem as ruas e os botequins acrescidas em pormenores tão fantásticos, que mesmo quem de tudo já viu e ouviu, se espanta de olhos arregalados e ouvidos bem abertos. Rumores chegados dos navios da Companhia, saidos à escassos três meses de Lisboa, falam das canções dos cegos e dos pasquins dos almocreves, que repisam vezes sem conta esta história hedionda. Não me arrependo deste exílio a que fui forçado malgrado todas as peripécias por que passei e algumas boas graças a que tive de apelar para tão longe poder ainda fruir de alguns confortos veneais e da publica função a dignidade. Os bem conhecidos amores contra-natura da irmã do Bispo de Coimbra com a madre superiora dre Stª Clara importa ora lembrar, malgrado o brado profuso que deram deles toda a sorte de néscios, que não se contentaram em guardar para si a repulsa que tais inclinações deveriam causar em criaturas tementes a Deus. Deu Deus Nosso Senhor conta de tais abominações, pois não demorou a que moléstias de toda a sorte acorressem a Dona Desidéria Lemos, assim se chamava a desventurada dama, e lhe atormentassem a carne a a alma na forma de furores ventrais e ânsias de luxúria desmedidas. Temo ter julgado mal o poder do maligno em acirrar más inclinações e vícios nas criaturas mais desatentas das virtudes do amor divino, desviando-as para caminhos inmsidiosos de perdição. Á alma complacente e humilde, surgem-lhe naturalmente certas verdades que por força da sua natureza divina dispensam prova. A malícia, fruto da soberba e dúvida acirra o intelecto contra a ordem natural do Mundo. Multi son vocati pauci vero electi. As boas leituras resvalam em olhos empedernidos e avessos à luz de Nosso senhor Jesus Cristo. Mesmo as as palavras do Doutor Angélico parecerão sandices a quem está fascinado pela volupia dos sentidos.
Quisera o destino, que D.Desidéria fosse o anho que por desatenção, se vê extraviado do rebanho. Naquele dia, mesmo antes de tocar para as vésperas, Soror Imaculada de Jesus veio procurá-la numa agitação pouco habitual. Seu irmão, o Bispo de Coimbra estava ausente, pois fora designado Emissário do Santo Padre, junto das missões da Santa Sé na Baia de Todos os Santos. Tratava das muitas almas que se ajuntavam nas terras do Brasil, pois não bastassem as arremetidas dos Ingleses, e os desmandes dos Holandeses em Stª Catarina, havia ainda a cobiça pelo ouro, que diziam, brotava generoso das águas do rio Capivari. Um demoníaco furor uterino assolava-a e vinha partilhar o leito de D. Desidéria. Auxiliava-a um grosso círio roubado na Sé Nova, para que D. Desidéria a zurzisse bestialmente e lhe acalmasse o demoníaco incúbo que dela se apoderara. A ingénua senhora, na sua paixão desordenada, correspondeu ao frémito desvairado da pia religiosa e uniu-se a ela num amplexo de volúpia carnal. O marido prometido, avançado em anos, D. Antão Gomes de Benavente, de nada desconfiava até que um dia em que dúvida lançada pela velha ama de Desidéria o instou à suspeita. Grossos pepónios – cucurbitae – desapareciam ás matinas, da horta do Convento e iam aparecer na alcova de D. Deisdéria besuntados de banha corada e fragrantes de maresia. Interpelado por D. Antão, o irmão mais novo de D. Desidéria, que também era avesso ao seu próprio género viril, retorquiu com interesse, que gostaria de ver essas abóboras fabulosas pois ele, nos desenfados que tinha com os amigos amaneirados, gostaria também de lhes dar usos ímpios, vestido de mulher, ao que pedia também o favor e o sigílo de D. Antão acerca da sua inclinação contra natura. D. Antão sugeriu-lhe que abandonasse essas abominações horrendas e que também deixasse de apreciar a companhia de burros na sua alcova, pois seu irmão mais velho não tardaria a estar ao corrente de tal infâmia. Continuaram os desmandes destes irmãos sandeus, que se estenderam a todo o Carmelo de Coimbra. Por muitos e muitos anos viu o sacrossanto altar, desfiar no seu seio a ignomínia pérfida do furor tríbade das freiras. Dizem os mais descrentes, e em especial um sapateiro de Trancoso, que almeja por artes obscuras, lograr o futuro – que a Deus, tão só, pertence – mas que nele surge, por vezes, como um dom natural, límpido aos olhos da alma e - diz - que dias hão-de vir, em que uma freira do Carmelo, Lúcia de seu nome, tríbade maior e versada nos prazeres sáficos, grande gastadora de círios grossos com veias salientes, vai ver a Santa Mãe de Jesus no cimo de uma árvore sovereira macha. Instada por tais delírios, vai morrer e obrigar um homem chamado Pedro e outro Paulo, que háo-de nascer e um ser primeiro-ministro do Reino, a interromper a campanha eleitoral e a perder, com grande vergonha, as Eleições. Chorará o povo bruto e rangerão os dentes, mas nada o vai impedir de ser tragado nos fogos sulfúreos do Inferno, durante um Congresso."
É por isso a vós, peixes cujos ouvidos, eu sei saberem guardar os segredos mais torpes - e que me auxilie o engenho e dom da linguagem – que me dirijo, desiludido e confuso, para vos inteirar deste funesta história que li em em pérfida epístola anónima que ora transcrevo contrangido –Quod scribit talia sordida verba? – pergunto eu, sondando os recõnditos da alma.
Assentum sanitae A.D.MMV
ACTUALIDADES
«Alguém devia ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa mal. A cozinheira da senhora Grubach, a dona da pensão, que lhe levava o pequeno-almoço todos os dias por volta das oito horas, não apareceu desta vez. Isto nunca tinha acontecido (…).
Mas na garganta de K., pousaram-se as mãos de um dos cavalheiros, enquanto o outro lhe enterrava a faca no coração e a revolvia duas vezes. Com olhos desfalecidos, K. viu ainda, muito perto do rosto, os cavalheiros encostados um ao outro, face com face, a observarem o cumprimento da sentença.
- Como um cão! - disse ele; era como se a vergonha devesse sobreviver-lhe».
Der Prozess, Franz Kafka
A história conta-se em três penadas: um homem é arguido num processo cuja acusação desconhece, é julgado por um tribunal que não chega a ver e é condenado e executado por juízes e carrascos que não se identificam perante ele. No entanto, submete-se.
Franz Kafka morreu prematuramente em 1924. Esta obra é considerada premonitória das duas décadas que se seguiram. Sendo ele próprio judeu – embora tenha estudado na Alemanha e escrito sempre em alemão – seria de esperar a vivência real deste seu trabalho específico, caso tivesse durado mais anos e se submetesse ao regime Nacional-Socialista alemão na sua Praga natal.
Quis o destino que não acontecesse. Mas a sua obra marcante e perturbante tem toda a actualidade.
Mas na garganta de K., pousaram-se as mãos de um dos cavalheiros, enquanto o outro lhe enterrava a faca no coração e a revolvia duas vezes. Com olhos desfalecidos, K. viu ainda, muito perto do rosto, os cavalheiros encostados um ao outro, face com face, a observarem o cumprimento da sentença.
- Como um cão! - disse ele; era como se a vergonha devesse sobreviver-lhe».
Der Prozess, Franz Kafka
A história conta-se em três penadas: um homem é arguido num processo cuja acusação desconhece, é julgado por um tribunal que não chega a ver e é condenado e executado por juízes e carrascos que não se identificam perante ele. No entanto, submete-se.
Franz Kafka morreu prematuramente em 1924. Esta obra é considerada premonitória das duas décadas que se seguiram. Sendo ele próprio judeu – embora tenha estudado na Alemanha e escrito sempre em alemão – seria de esperar a vivência real deste seu trabalho específico, caso tivesse durado mais anos e se submetesse ao regime Nacional-Socialista alemão na sua Praga natal.
Quis o destino que não acontecesse. Mas a sua obra marcante e perturbante tem toda a actualidade.
segunda-feira, fevereiro 21, 2005 |
A MARIA
A minha gata melguinha. Linda. Deixou-me sem ela. Morreu. Deixou-me assim, de repente, sem aviso, enquanto dormia.
A minha gata melguinha. Linda. Deixou-me sem ela. Morreu. Deixou-me assim, de repente, sem aviso, enquanto dormia.
domingo, fevereiro 20, 2005 |
E PIMBA! MAI'NADA!!!
sexta-feira, fevereiro 18, 2005 |
Microfábulas – VII
Havia, certa vez, uma família despudorada e amante da liberdade e da natureza que rumava, todos os Verões, até à Zambujeira do Mar na sua garbosa roulotte Vimara com a qual se instalavam nas falésias junto a qualquer praia menos frequentada e não vigiada, onde pudessem ir a banhos sem as prisões criadas pela indústria têxtil. “Lá vão aqueles porcos desavergonhados!”, diriam uns; “Lá vai o casal Brás e os pequenos!”, diriam os mais educados. Indiferentes a qualquer comentário, os Brás lá carregavam o Renault 9 acabadinho de comprar com tudo o que não coubesse na roulotte e, arranjando espaço entre cobertores, malas térmicas carregadas de refeições macrobióticas, lanternas, bolas de praia, atoalhados diversos e a gaiola do porquinho da Índia, lá se encaixavam o pai e a mãe, à frente, e os dois petizes, um com 12 e outro com 8 anos, algo agastados com a perspectiva de mais umas férias demasiado longe dos amigos (ou de qualquer outro ser vivo extra-família-e-porquinho) e demasiado perto das partes de seus pais que não faziam questão de ver.
- Cuidai em atentar, meus filhos – dizia o pai Brás no seu modo doutrinário, ao passar por Santiago do Cacém – na validade do que hoje vos digo. Estai cientes de que, num porvir não tão distante, vos recordareis de minhas palavras e ajuizareis então: era presciente, o nosso velho pai, quando nos fazia ver a importância de uma relação harmoniosa com a Natureza e de uma visão da “vida” enquanto milagre sem distinções valorativas baseadas numa racionalidade duvidosa atribuída ao Homo Sapiens-Sapiens.
- Eu quero um bolo! – guinchava o mais novo.
- Come pão integral. Está aí num saco ao lado dos teus pés. – respondia a mãe, atirando pela janela a beata do Português Suave sem filtro.
A indiferença dos restantes ocupantes do automóvel não fazia esmorecer o discurso do pai Brás:
- Atentai na roupa de que só nos podemos libertar nestes quinze dias paradisíacos em que reforçamos a nossa consciência de seres vivos ligados pelo sangue e pelo afecto próprio de cada mamífero a quem lhe dá continuidade. Recordareis um dia o que o vosso velho pai vos ensinou: é já de há muito que o fito da roupagem que nos impõem não tem por base a adversidade do clima, não. Vós mesmos adquirireis esse conhecimento quando crescerdes. Não. Os humanos tapam-se pela desarmonia em que caíram face à sua natureza animal, desarmonia essa que é um pesado jugo lançado pelas igrejas monoteístas ao cachaço das massas ruminantes que não se arrogam o direito – o dever!! – de questionar. Tu, Ramiro, meu primogénito, estarás porventura já familiarizado com o mecanismo da erecção em que o afluxo de sangue faz intumescer o teu ainda pouco notável órgão sexual…
- Não te preocupes, filho. Já viste como é o do teu pai e eu casei com ele na mesma… - interrompe a mãe Brás.
- Bom! – retoma o pai – Ramiro, tu és o teu corpo! O teu corpo que caminha, que se arrepia, que corre, que se molda às tuas necessidades e que se intumesce como lembrete à determinação animal da reprodução, da continuidade do milagre da vida! A erecção é harmonia! E que faz o suposto ser vivo inteligente?! Tapa-se!! Lembrais-vos, nas férias do ano passado, daquele momento intrinsecamente terno e maravilhoso em que a vossa mãe foi acometida pelo milagre mensal da fertilidade?...
Após as tradicionais duas paragens para o filho mais novo vomitar, lá chegavam os Brás ao litoral alentejano, martirizando a suspensão do Renault 9 em caminhos de terra e cascalho, procurando uma praia isolada. Num certo ano, encontraram uma praia pequena e rochosa, no fundo de uma falésia escarpada mas manejável para subir e descer. O pai Brás lá fez a costumeira manobra de aproximar a roulotte o mais possível da beira da falésia e a mãe Brás preparou uma saborosa refeição com brócolos, feijão manteiga e puré de maçã (e a acidental cinza de cigarro que a mãe tinha esperança ficasse bem diluída no puré) que toda a família se preparava para deglutir – uns com mais entusiasmo que outros – no avançado que os petizes tinham ajudado a montar.
Nisto, vzzzzzzzzt!
Moral 1: é perfeitamente evitável fumar enquanto se cozinha. Por mais que Hollywood tenha promovido a imagem cool do cigarro permanente ao canto da boca, não há indicações de que o Mickey Rourke seja um bom chefe de cozinha.
Moral 2: a erosão nas falésias portuguesas – e em toda a costa – é um factor preocupante e uma das principais prioridades desse paradigma da entropia que é o Programa Finisterra.
Havia, certa vez, uma família despudorada e amante da liberdade e da natureza que rumava, todos os Verões, até à Zambujeira do Mar na sua garbosa roulotte Vimara com a qual se instalavam nas falésias junto a qualquer praia menos frequentada e não vigiada, onde pudessem ir a banhos sem as prisões criadas pela indústria têxtil. “Lá vão aqueles porcos desavergonhados!”, diriam uns; “Lá vai o casal Brás e os pequenos!”, diriam os mais educados. Indiferentes a qualquer comentário, os Brás lá carregavam o Renault 9 acabadinho de comprar com tudo o que não coubesse na roulotte e, arranjando espaço entre cobertores, malas térmicas carregadas de refeições macrobióticas, lanternas, bolas de praia, atoalhados diversos e a gaiola do porquinho da Índia, lá se encaixavam o pai e a mãe, à frente, e os dois petizes, um com 12 e outro com 8 anos, algo agastados com a perspectiva de mais umas férias demasiado longe dos amigos (ou de qualquer outro ser vivo extra-família-e-porquinho) e demasiado perto das partes de seus pais que não faziam questão de ver.
- Cuidai em atentar, meus filhos – dizia o pai Brás no seu modo doutrinário, ao passar por Santiago do Cacém – na validade do que hoje vos digo. Estai cientes de que, num porvir não tão distante, vos recordareis de minhas palavras e ajuizareis então: era presciente, o nosso velho pai, quando nos fazia ver a importância de uma relação harmoniosa com a Natureza e de uma visão da “vida” enquanto milagre sem distinções valorativas baseadas numa racionalidade duvidosa atribuída ao Homo Sapiens-Sapiens.
- Eu quero um bolo! – guinchava o mais novo.
- Come pão integral. Está aí num saco ao lado dos teus pés. – respondia a mãe, atirando pela janela a beata do Português Suave sem filtro.
A indiferença dos restantes ocupantes do automóvel não fazia esmorecer o discurso do pai Brás:
- Atentai na roupa de que só nos podemos libertar nestes quinze dias paradisíacos em que reforçamos a nossa consciência de seres vivos ligados pelo sangue e pelo afecto próprio de cada mamífero a quem lhe dá continuidade. Recordareis um dia o que o vosso velho pai vos ensinou: é já de há muito que o fito da roupagem que nos impõem não tem por base a adversidade do clima, não. Vós mesmos adquirireis esse conhecimento quando crescerdes. Não. Os humanos tapam-se pela desarmonia em que caíram face à sua natureza animal, desarmonia essa que é um pesado jugo lançado pelas igrejas monoteístas ao cachaço das massas ruminantes que não se arrogam o direito – o dever!! – de questionar. Tu, Ramiro, meu primogénito, estarás porventura já familiarizado com o mecanismo da erecção em que o afluxo de sangue faz intumescer o teu ainda pouco notável órgão sexual…
- Não te preocupes, filho. Já viste como é o do teu pai e eu casei com ele na mesma… - interrompe a mãe Brás.
- Bom! – retoma o pai – Ramiro, tu és o teu corpo! O teu corpo que caminha, que se arrepia, que corre, que se molda às tuas necessidades e que se intumesce como lembrete à determinação animal da reprodução, da continuidade do milagre da vida! A erecção é harmonia! E que faz o suposto ser vivo inteligente?! Tapa-se!! Lembrais-vos, nas férias do ano passado, daquele momento intrinsecamente terno e maravilhoso em que a vossa mãe foi acometida pelo milagre mensal da fertilidade?...
Após as tradicionais duas paragens para o filho mais novo vomitar, lá chegavam os Brás ao litoral alentejano, martirizando a suspensão do Renault 9 em caminhos de terra e cascalho, procurando uma praia isolada. Num certo ano, encontraram uma praia pequena e rochosa, no fundo de uma falésia escarpada mas manejável para subir e descer. O pai Brás lá fez a costumeira manobra de aproximar a roulotte o mais possível da beira da falésia e a mãe Brás preparou uma saborosa refeição com brócolos, feijão manteiga e puré de maçã (e a acidental cinza de cigarro que a mãe tinha esperança ficasse bem diluída no puré) que toda a família se preparava para deglutir – uns com mais entusiasmo que outros – no avançado que os petizes tinham ajudado a montar.
Nisto, vzzzzzzzzt!
Moral 1: é perfeitamente evitável fumar enquanto se cozinha. Por mais que Hollywood tenha promovido a imagem cool do cigarro permanente ao canto da boca, não há indicações de que o Mickey Rourke seja um bom chefe de cozinha.
Moral 2: a erosão nas falésias portuguesas – e em toda a costa – é um factor preocupante e uma das principais prioridades desse paradigma da entropia que é o Programa Finisterra.
O Sentido de Votar, by g2
Mais uma vez nos encontramos perante umas eleições, estas, para a Assembleia da República, de cujo partido vencedor sairá o Primeiro Ministro e, dele, o Governo que nos governará durante os próximos quatro anos, se não houver "acidentes" de percurso e, se os houver, que sejam legítimos.
Quando voto, faço-o com um enorme orgulho, com uma alegria que os mais novos dificilmente compreenderão. Mas é preciso que esses, os mais novos, não tenham pena de não sentir a alegria que os mais velhos sentem, pois a estes foi dado viver em tempos de isolamento, de desconhecimento das coisas, de falta de razão. Temos termos de comparação, no acto de votar, que nos permitem, agora, sentir o coração cheio de alegria. Os mais novos devem ter o conhecimento das razões dessa alegria e usá-lo para impossibilitar desmandos de qualquer natureza.
Vamos para estas eleições com o espírito confuso, talvez até com algum temor pelos tempos que se avizinham, pela falta de rumo e de estratégias que nos permitam vislumbrar uma hipótese de contentamento futuro e que nos façam sentir parte de uma causa nacional. É um facto que não estamos confrontados com a hipótese de escolher maneiras de resolver os problemas do País, antes vamos somente escolher entre pessoas com as quais nos identificamos, por elas mesmas, ou pelos partidos que representam. Mas, repito, não nos foram apresentados caminhos ou soluções ao menos hipotéticas, para a solução dos tais problemas que nos trazem em desencanto permanente.
Mais uma vez nos encontramos perante umas eleições, estas, para a Assembleia da República, de cujo partido vencedor sairá o Primeiro Ministro e, dele, o Governo que nos governará durante os próximos quatro anos, se não houver "acidentes" de percurso e, se os houver, que sejam legítimos.
Quando voto, faço-o com um enorme orgulho, com uma alegria que os mais novos dificilmente compreenderão. Mas é preciso que esses, os mais novos, não tenham pena de não sentir a alegria que os mais velhos sentem, pois a estes foi dado viver em tempos de isolamento, de desconhecimento das coisas, de falta de razão. Temos termos de comparação, no acto de votar, que nos permitem, agora, sentir o coração cheio de alegria. Os mais novos devem ter o conhecimento das razões dessa alegria e usá-lo para impossibilitar desmandos de qualquer natureza.
Vamos para estas eleições com o espírito confuso, talvez até com algum temor pelos tempos que se avizinham, pela falta de rumo e de estratégias que nos permitam vislumbrar uma hipótese de contentamento futuro e que nos façam sentir parte de uma causa nacional. É um facto que não estamos confrontados com a hipótese de escolher maneiras de resolver os problemas do País, antes vamos somente escolher entre pessoas com as quais nos identificamos, por elas mesmas, ou pelos partidos que representam. Mas, repito, não nos foram apresentados caminhos ou soluções ao menos hipotéticas, para a solução dos tais problemas que nos trazem em desencanto permanente.
Precisamos de saber o que é que vamos fazer com o desemprego que está já num valor alarmante, alcançado por causa de políticas económicas e sociais sem rumo definido, à mercê da vontade das empresas para quem o máximo lucro em cada ano é a filosofia de vida, legítima é certo, mas a precisarem de baias que impeçam abusos. Aos trabalhadores portugueses não podem ser assacadas culpas de falta de brio ou qualidade, pois eles são os melhores entre os melhores por esse mundo fora, certamente porque enquadrados em condições de trabalho perfeitas para os fins em causa das respectivas empresas. Precisamos de formação profissional adequada, de um ensino para o País e não para os interesses imediatos das pessoas. Isto é, o País não pode formar licenciados disto e daquilo, sem viabilidade de emprego e não ter trabalhadores qualificados em profissões necessárias à vida de todos.
A Justiça que é a base da Democracia tem de ser democrática ela própria e os caminhos que segue devem ser alisados, as bermas limpas das ervas que a não deixam avançar convenientemente. Todos, mas todos os juristas têm uma palavra a dizer no relançamento indispensável da Justiça.
A Educação precisa de uma definição nova, os professores devem ser encarados como tal, a educação é a principal faísca para acender o fogo do desenvolvimento. Precisamos de dar aos nossos adolescentes metas que não passem somente por um quarto mal iluminado, com um mtv qualquer em altos gritos, enquanto fazem intermináveis downloads de qualquer kaaza e se embrenham em chats infindáveis, onde escrevem «esqueçe» e onde informam «Olá eu sou a xana tenho 14 anus lol kem ker tcl cmg lol». Precisamos de cultura e de desporto e de incentivos exteriores à Internet. (Esta, a Internet, parece-me ser o senhor omnipresente do "1984").
Mas a Saúde também precisa de cuidados, a Agricultura e as Pescas estão fora do nosso conhecimento. Estas duas actividades são vitais para a evolução da produtividade, para uma certa independência. E por falar em independência, num tempo em que tudo, ou quase tudo, é definido em Bruxelas, que sabem de facto os portugueses sobre "essa coisa" da UE, para lá de ser fonte de verbas que cá chegaram, muitas delas infelizmente mal aplicadas.
O País está triste, confuso, desiludido, quiçá assustado, é só olhar para a maneira como caminhamos, para as conversas que temos, para o que não dizemos!
E no entanto…
Somos um País e um Povo (País e Povo pelos quais me apaixonei quando comecei a conhecê-los) que merece o melhor do mundo. Compete-nos a todos fazer de Portugal uma causa nacional, transformá-lo num "timor", numa "expo"…
Para isso, precisamos de um governo honesto, competente, absolutamente ao serviço do País. Mais que o homem que vier a ser Primeiro Ministro, conta a equipa de que se rodear. E se nenhum dos que se apresentam com possibilidades de vir a ser PM nos tranquiliza quanto à sua capacidade pessoal, esperemos que o que for escolhido tenha a sensatez e a sabedoria de se rodear dos melhores e não dos mais amigos. O governo que nascer no próximo Domingo deve dizer-nos tudo o que há a dizer, livre das peias que são as palavras de campanha eleitoral e, depois, devemos fazer das necessidades do País uma causa que todos devemos abraçar, por nós e pelos que virão depois de nós.
Fico com a alma a saber a pouco, por só me ser dado fazer uma cruzinha em forma de X num quadrado à minha escolha, de quatro em quatro anos. E se eu sou só uma pessoa e nada mais posso fazer, todas as pessoas juntas podem e devem exigir uma correcta aplicação de políticas, de ferramentas e pessoas para uma rota de desenvolvimento social e económico do País, num debate permanente, para o alcance e cumprimento de objectivos que outros já conseguiram e que para nós teimam em ser meras utopias. Cabe a cada um decidir em conformidade com as suas opções ou gostos políticos, mas em conjunto temos responsabilidades na vida em comum, naquilo que é a Sociedade e, nesta medida, entender que todos os partidos fazem falta, devemos até extrapolar e dizer que todos fazemos falta.
É tempo de termos cultura de exigência e, ao mesmo tempo, sentido de responsabilidade, são horas de levantarmos a cabeça e, depois de um projecto de futuro que merecemos, começar a construi-lo.
Não faz parte das minhas ilusões esperar que todos votem no partido em que eu irei votar. Faz parte das minhas ilusões esperar que todos votem!
quinta-feira, fevereiro 17, 2005 |
Desde o PREC que não se dava tanta atenção a um partido de esquerda.
O Bloco de Esquerda tem vindo a ganhar simpatizantes pelas propostas concretas que faz nas diversas áreas. Finalmente a esquerda tem qualidade, gente qualificada para falar claramente sobre aquilo que interessa às pessoas, apresentar propostas concretas e inteligíveis para solucionar os problemas que a direita criou em consecutivos governos incompetentes.
Quem acusava o Bloco de Esquerda de ser um grupo que era só folclore agora combate-o, critica-o, tenta que o Bloco seja visto como um partido esquerdista mas estuda ao pormenor as suas ideias e até as aproveita.
A direita volta a temer a esquerda. Nunca antes os partidos de direita tiveram a necessidade de atacar um partido de esquerda como o fazem agora.
As pessoas inteligentes mais conservadoras, mesmo sem concordarem ou apoiarem o Bloco de Esquerda, ouvem-no e reconhecem-lhe mérito. Outras há que criticam a maneira de falar do Louçã, os ares de superioridade e a tranquilidade, à falta de outros motivos de crítica.
Quem critica o Partido Comunista Português por estar envelhecido e por ter ideias velhas, tem medo e critica agora o Bloco de Esquerda, mas desta vez por agradar aos jovens, por ser moda e não por não ter a consistência da maturidade.
Não houve um só dia desta Campanha Eleitoral que um dos partidos de direita não falasse do Bloco Esquerda, que teve assim mais direito de antena. Talvez tenha ajudado ao resultados da sondagem de hoje:
PS .........46% ........ 118 a 124 mandatos
PSD .......31% .......... 80 a 84 mandatos
BE ......... 7% ......... 8 a 12 mandatos
CDU ........7% ......... 8 a 12 mandatos
CDS-PP ...6% ....... 6 a 10 mandatos
A esquerda está de parabéns.
quarta-feira, fevereiro 16, 2005 |
ESTE SABEMOS QUEM É!
Quero partilhar convosco uma descoberta que fiz hoje – uma página da Wikiopedia.
Depois de uma breve biografia de Pedro Santana Lopes, com entradas várias, deparo-me com isto:
Gaffes
Santana Lopes is known for his Quaylesque gaffes, which include:
• claiming that the non-existent Chopin violin concerto was his favourite piece of classical music;
• sending a postcard to Brazilian author Machado de Assis (who died in 1908);
• calling a press conference to announce that he was being threatened when in fact he had received a mailing for a book titled Cuidado com os rapazes ("Watch out for the boys");
• announcing that he would leave political life as a protest against criticism, and then changing his mind after a few days;
• missing a formal dinner during a State visit in order to attend a fashion show;
• postponing the inauguration of some of his vice-ministers in order to attend a wedding.
Enfim, vale o que vale. Ele e a Wikiopedia, entenda-se. A página completa aqui.
Quero partilhar convosco uma descoberta que fiz hoje – uma página da Wikiopedia.
Depois de uma breve biografia de Pedro Santana Lopes, com entradas várias, deparo-me com isto:
Gaffes
Santana Lopes is known for his Quaylesque gaffes, which include:
• claiming that the non-existent Chopin violin concerto was his favourite piece of classical music;
• sending a postcard to Brazilian author Machado de Assis (who died in 1908);
• calling a press conference to announce that he was being threatened when in fact he had received a mailing for a book titled Cuidado com os rapazes ("Watch out for the boys");
• announcing that he would leave political life as a protest against criticism, and then changing his mind after a few days;
• missing a formal dinner during a State visit in order to attend a fashion show;
• postponing the inauguration of some of his vice-ministers in order to attend a wedding.
Enfim, vale o que vale. Ele e a Wikiopedia, entenda-se. A página completa aqui.
EPHEMEROPTERA
Foi no ano de 1799 que os naturalistas Alexander Von Humboldt e Aimé Bompland partiram num navio da armada espanhola em direcção à Nova Andaluzia. Passaram em Tenerife, onde subiram ao vulcão do Teide e pasmaram com o gigantesco dragoeiro de Icod, que ainda hoje existe. De Cumaná, chegaram a Caracas e a S. Fernando de Apure, de onde encetaram uma longa viagem pela floresta dentro, subindo o rio Orinoco até ao Rio Negro, na fronteira com o Brasil. Foi uma longa viagem de vários meses rio acima, na companhia de índios e missionários jesuítas portugueses, espanhóis e alemães de tez azulada por vidas inteiras de picadas de mosquitos e hábitos mal tingidos a desbotar na pele. O cão de Bompland foi comido por um jaguar e Alexander viu índios que comiam lama e lhe ensinaram a fazer curare. Os teodolitos, termómetros, lunetas astronómicas, instrumentos geodésicos, assim como as colecções de plantas e animais ainda incógnitos para o homem civilizado, enchiam muitos barris bem selados, em fila nas pirogas e que se perderam-se várias vezes. Uma vez, tiveram que passar das cabeceiras do Orinoco, pela densa selva, cerca de sessenta milhas de terra firme até atingirem o Rio Negro e neste porem novamente as embarcações a flutuar.
Cruzaram os Andes em muitos milhares de milhas, passando pelo desértico Chasco e subiram ao Monte Chimborazo, sob frios glaciais e com as roupas do século XVIII, até aos 6. 267 metros de altitude. Charles Darwin, sessenta anos depois e como amava profundamente a memória de Humboldt, fez da costa do Chile, a mesma ascenção e sofreu da puna – o mal de altitude – para ver o que o alemão engenheiro de minas viu: os esplendor da Amazónia passadas as enormes montanhas. Aimé Bompland acabou preso por sete anos, por suposta espionagem, no Paraguai e o amigo lamentou a sua perda até ao fim da vida. De regresso á Europa, partiu em 1825 para a Sibéria e os Montes Altai, na Ásia central, onde viu tigres e xamãs que lhe deram drogas visionárias extraídas de cogumelos.
Alexander Von Humboldt escreveu os relatos das suas viagens nas Visões da Natureza, na Narrativa Pessoal às Regiões Equinociais do Novo Continente e no Cosmos, uma obra em vinte cinco volumes, inacabada. Classificou, ordenou, descreveu e emocionou-se com as paisagens que viu. Lançou as bases de muitas ciências e mereceu a reverência de contemporâneos e de muitos depois dele. Um dia, já avançado em anos, trabalhava numa sala do Museu de História Natural de Berlim. Passava em revista uma ordem peculiar de insectos que têm asas apenas numa parte da sua vida, para depois as perderem e lembrou-se do dragoeiro e dos tigres. Lembrou-se dos macacos fumados que os índios guardavam nas tendas como reserva de alimento e única mobília. Lembrou-se, de em pleno llano, encontrar um homem, Carlos del Pozo, que inventou uma máquina eléctrica de grandes discos e baterias. Lembrou-se dos índios que já só falavam castelhano e andavam vestidos de branco na missão de Catuaro. Lembrou-se do amigo Bompland e do seu tiro certeiro, matando as aves que Humboldt depois classificava e nomeava de acordo com as as afinidades naturais. Lembrou-se do termómetro com que mediu a temperatura na cratera do Teide. Ao fim do dia, o secretário Willem, foi encontrá-lo nú, pálido, com os lábios azuis e já frio, caído aos pés do armário dos insectos sem asas. Dos Ephemeroptera. – aqueles que têm asas efémeras.
Foi no ano de 1799 que os naturalistas Alexander Von Humboldt e Aimé Bompland partiram num navio da armada espanhola em direcção à Nova Andaluzia. Passaram em Tenerife, onde subiram ao vulcão do Teide e pasmaram com o gigantesco dragoeiro de Icod, que ainda hoje existe. De Cumaná, chegaram a Caracas e a S. Fernando de Apure, de onde encetaram uma longa viagem pela floresta dentro, subindo o rio Orinoco até ao Rio Negro, na fronteira com o Brasil. Foi uma longa viagem de vários meses rio acima, na companhia de índios e missionários jesuítas portugueses, espanhóis e alemães de tez azulada por vidas inteiras de picadas de mosquitos e hábitos mal tingidos a desbotar na pele. O cão de Bompland foi comido por um jaguar e Alexander viu índios que comiam lama e lhe ensinaram a fazer curare. Os teodolitos, termómetros, lunetas astronómicas, instrumentos geodésicos, assim como as colecções de plantas e animais ainda incógnitos para o homem civilizado, enchiam muitos barris bem selados, em fila nas pirogas e que se perderam-se várias vezes. Uma vez, tiveram que passar das cabeceiras do Orinoco, pela densa selva, cerca de sessenta milhas de terra firme até atingirem o Rio Negro e neste porem novamente as embarcações a flutuar.
Cruzaram os Andes em muitos milhares de milhas, passando pelo desértico Chasco e subiram ao Monte Chimborazo, sob frios glaciais e com as roupas do século XVIII, até aos 6. 267 metros de altitude. Charles Darwin, sessenta anos depois e como amava profundamente a memória de Humboldt, fez da costa do Chile, a mesma ascenção e sofreu da puna – o mal de altitude – para ver o que o alemão engenheiro de minas viu: os esplendor da Amazónia passadas as enormes montanhas. Aimé Bompland acabou preso por sete anos, por suposta espionagem, no Paraguai e o amigo lamentou a sua perda até ao fim da vida. De regresso á Europa, partiu em 1825 para a Sibéria e os Montes Altai, na Ásia central, onde viu tigres e xamãs que lhe deram drogas visionárias extraídas de cogumelos.
Alexander Von Humboldt escreveu os relatos das suas viagens nas Visões da Natureza, na Narrativa Pessoal às Regiões Equinociais do Novo Continente e no Cosmos, uma obra em vinte cinco volumes, inacabada. Classificou, ordenou, descreveu e emocionou-se com as paisagens que viu. Lançou as bases de muitas ciências e mereceu a reverência de contemporâneos e de muitos depois dele. Um dia, já avançado em anos, trabalhava numa sala do Museu de História Natural de Berlim. Passava em revista uma ordem peculiar de insectos que têm asas apenas numa parte da sua vida, para depois as perderem e lembrou-se do dragoeiro e dos tigres. Lembrou-se dos macacos fumados que os índios guardavam nas tendas como reserva de alimento e única mobília. Lembrou-se, de em pleno llano, encontrar um homem, Carlos del Pozo, que inventou uma máquina eléctrica de grandes discos e baterias. Lembrou-se dos índios que já só falavam castelhano e andavam vestidos de branco na missão de Catuaro. Lembrou-se do amigo Bompland e do seu tiro certeiro, matando as aves que Humboldt depois classificava e nomeava de acordo com as as afinidades naturais. Lembrou-se do termómetro com que mediu a temperatura na cratera do Teide. Ao fim do dia, o secretário Willem, foi encontrá-lo nú, pálido, com os lábios azuis e já frio, caído aos pés do armário dos insectos sem asas. Dos Ephemeroptera. – aqueles que têm asas efémeras.
terça-feira, fevereiro 15, 2005 |
A HISTÓRIA RECENTE EM AUTOCOLANTES
A quem, como eu, viveu intensamente os tempos a seguir ao 25 de Abril de 1974, ou a quem não os tenha vivido, se interesse por eles, mesmo que apenas do ponto de vista histórico, gostaria de aconselhar a consulta de um blogue novo – Tócolante – que publica regularmente verdadeiras peças de museu – autocolantes de vários partidos políticos, organizações sindicais, movimentos, etc. A pluralidade só lhe aumenta o interesse.
O autocolante foi um dos instrumentos de propaganda política mais utilizados após o 25 de Abril e hoje em dia não são fáceis de consultar. Há várias colecções na Biblioteca Nacional mas só os comemorativos do 25 de Abril têm acesso on line.
O autocolante foi um dos instrumentos de propaganda política mais utilizados após o 25 de Abril e hoje em dia não são fáceis de consultar. Há várias colecções na Biblioteca Nacional mas só os comemorativos do 25 de Abril têm acesso on line.
segunda-feira, fevereiro 14, 2005 |
AO AMOR DA MINHA VIDA
Nem sempre se acha o que se procura e nem sempre o que se acha é por termos procurado.
Há coisas mais fáceis de achar que outras.
Quando se sabe o que se quer, é muito mais difícil achar.
Se procurar é difícil, por se poder ou não achar, mais difícil é escolher o que se acaba por encontrar.
Eu sou uma pessoa difícil de se acomodar que achou fácil tanto procurar até achar quem escolheu mesmo antes de o encontrar.
Nem sempre se acha o que se procura e nem sempre o que se acha é por termos procurado.
Há coisas mais fáceis de achar que outras.
Quando se sabe o que se quer, é muito mais difícil achar.
Se procurar é difícil, por se poder ou não achar, mais difícil é escolher o que se acaba por encontrar.
Eu sou uma pessoa difícil de se acomodar que achou fácil tanto procurar até achar quem escolheu mesmo antes de o encontrar.
sexta-feira, fevereiro 11, 2005 |
Confissões de uma Sanita Turca
Sou uma vil e insalubre sanita turca com uns bons sete milímetros de sarro bem incrustrado, desde o sifão até à boia do autoclismo. Transbordam democraticamente de mim fezes multicolores – o ocre do caril de frango; o castanho franco da bela feijoada à transmontana, pontuada de feijões e coiratos mal digeridos; a mais frugal refeição vegetariana com laivos creme de tofu com cascas de lentilhas e chá Três Anos; os translúcidos nervos de bife duma honesta refeição com o dito e um ovo a cavalo; as pevides de melancia onde as moscas verdes remansam dos cansativos voos em redor da larada rala ou ainda a verde, duma velente COUVADA DE BACALHAU…enfim. Mas também tenho um coração e sou uma alma sensível. Não cuido divulgar as indiscrições acerca dos diversos espectáculos da fraqueza humana que se me deparam amiúde. Nem dos do desbragados grafitti que ornamentam a minha modesta sentina da estação ferroviária da Damaia. Não. Queria agradecer de alma e coração a bondade compassiva e desinteressada com que, eivados dum espírito aberto e, soi dizer-se porque não, dum calor humano que desborda dos frios meandros cibernéticos da Internet, aos curadores deste altar de VERDADE e elevação especulativa, o facto de me terem recolhido no seu douto mas humilde regaço. Desde o chiste mais soez, mas subrepticiamente espicaçando consciências, ao ensaio sagaz e fundamentado, passando por páginas de emocionante literatura – efémera é certo, pois perder-se-à nos no limbo do esquecimento informático e na falta de paciência dos leitores- ao debate político mais penetrante e prenhe, tudo passa na VARA. É pois, borbulhando de alegria, enquanto o bêbedo inocente alivia o estômago de dois pacotes de Casal da Eira misturados com os restos copiosos de uma sandes de túbaros em pão regional, que vos digo OBRIGADO. Estou em casa.
O Vosso,
Assento da Sanita.
Sou uma vil e insalubre sanita turca com uns bons sete milímetros de sarro bem incrustrado, desde o sifão até à boia do autoclismo. Transbordam democraticamente de mim fezes multicolores – o ocre do caril de frango; o castanho franco da bela feijoada à transmontana, pontuada de feijões e coiratos mal digeridos; a mais frugal refeição vegetariana com laivos creme de tofu com cascas de lentilhas e chá Três Anos; os translúcidos nervos de bife duma honesta refeição com o dito e um ovo a cavalo; as pevides de melancia onde as moscas verdes remansam dos cansativos voos em redor da larada rala ou ainda a verde, duma velente COUVADA DE BACALHAU…enfim. Mas também tenho um coração e sou uma alma sensível. Não cuido divulgar as indiscrições acerca dos diversos espectáculos da fraqueza humana que se me deparam amiúde. Nem dos do desbragados grafitti que ornamentam a minha modesta sentina da estação ferroviária da Damaia. Não. Queria agradecer de alma e coração a bondade compassiva e desinteressada com que, eivados dum espírito aberto e, soi dizer-se porque não, dum calor humano que desborda dos frios meandros cibernéticos da Internet, aos curadores deste altar de VERDADE e elevação especulativa, o facto de me terem recolhido no seu douto mas humilde regaço. Desde o chiste mais soez, mas subrepticiamente espicaçando consciências, ao ensaio sagaz e fundamentado, passando por páginas de emocionante literatura – efémera é certo, pois perder-se-à nos no limbo do esquecimento informático e na falta de paciência dos leitores- ao debate político mais penetrante e prenhe, tudo passa na VARA. É pois, borbulhando de alegria, enquanto o bêbedo inocente alivia o estômago de dois pacotes de Casal da Eira misturados com os restos copiosos de uma sandes de túbaros em pão regional, que vos digo OBRIGADO. Estou em casa.
O Vosso,
Assento da Sanita.
quinta-feira, fevereiro 10, 2005 |
Microfábulas – VI
Havia, certa vez, um maquinista galhofeiro, famoso desde Tui ao Entroncamento – passando pelo Espadanal da Azambuja ou por Alfarelos – por ser amigo da paródia, lesto na piada ou no dichote, amigo do seu amigo e das bebidas licorosas de qualquer proveniência. “Lá vai o Treco-Lareco!”, diriam uns; “Lá vai o Ramiro!”, diriam os mais educados. Distribuía sorrisos às mãos cheias, com um esgar um tanto idiota – idiota pelo menos aos olhos dos que não percebem como se pode ser feliz sem saber porquê. Ramiro também não percebia nem se esforçava para tanto. Gostava era de se rir e de fazer rir os outros – e também gostava de codornizes, de bucho, de maranhos, de morcela de arroz e de salada de pepino. “O diabo da esofagite é que é o pior!”, queixava-se ele entre fartos arrotos.
Quem também lucrava com a sua bonomia e com o seu apetite saudável era o cão, o Tremoço, assim chamado pelo amarelo vivo do seu pêlo – ou por qualquer outro motivo menos plausível. O Tremoço mostrava-se néscio mas luzidio, um pouco à imagem do dono, se bem que seja difícil aferir da sua popularidade entre os demais canídeos. Era a sombra de Ramiro, por várias vezes o fazendo tropeçar quando o sequioso maquinista emborcava uma composição de copos de três.
- Ai ‘tás-te a rir, alma de um raio?! Qualquer dia misturo-te pinga na reção e ó pois quero ver como é! – dizia Ramiro nessas alturas, entre umas risadas que se confundiam com expectoração.
Em certa noite, Ramiro e o seu Tremoço dirigiam-se aos tombos, mais o primeiro que o segundo, para o apeadeiro das Curvaceiras, no ramal de Tomar, depois de uma passagem pelo Pantanal, bar de alterne com licença de casa de fados.
- Ai, Tramoço, Tramoço… Tu vistes-me aquela Soraya? Aquilo é que era braseira para me esquecer o Inverno!
- Wof! – ladrou o Tremoço.
- Ah também guestastes, ahm?! És cão mas n’és parvo, poi não?!
- Wof! Wof!
- Aquilo não é p’rós teus beiços, animal! Aquilo era uma proméssia d’amor! Aquilo era lombinho do rim, não eram aparas para cão! Aquilo era…
- Wof! Wof! Wof! Wof!
- Mas que rai…
Nisto, vzzzzzzzzzt!
Moral 1: nas linhas de menor circulação a CP pode não ser tão lesta a reparar uma catenária caída no chão.
Moral 2: em situações de perigo, o comportamento dos animais pode ser um bom indicador quanto à proximidade do mesmo.
Havia, certa vez, um maquinista galhofeiro, famoso desde Tui ao Entroncamento – passando pelo Espadanal da Azambuja ou por Alfarelos – por ser amigo da paródia, lesto na piada ou no dichote, amigo do seu amigo e das bebidas licorosas de qualquer proveniência. “Lá vai o Treco-Lareco!”, diriam uns; “Lá vai o Ramiro!”, diriam os mais educados. Distribuía sorrisos às mãos cheias, com um esgar um tanto idiota – idiota pelo menos aos olhos dos que não percebem como se pode ser feliz sem saber porquê. Ramiro também não percebia nem se esforçava para tanto. Gostava era de se rir e de fazer rir os outros – e também gostava de codornizes, de bucho, de maranhos, de morcela de arroz e de salada de pepino. “O diabo da esofagite é que é o pior!”, queixava-se ele entre fartos arrotos.
Quem também lucrava com a sua bonomia e com o seu apetite saudável era o cão, o Tremoço, assim chamado pelo amarelo vivo do seu pêlo – ou por qualquer outro motivo menos plausível. O Tremoço mostrava-se néscio mas luzidio, um pouco à imagem do dono, se bem que seja difícil aferir da sua popularidade entre os demais canídeos. Era a sombra de Ramiro, por várias vezes o fazendo tropeçar quando o sequioso maquinista emborcava uma composição de copos de três.
- Ai ‘tás-te a rir, alma de um raio?! Qualquer dia misturo-te pinga na reção e ó pois quero ver como é! – dizia Ramiro nessas alturas, entre umas risadas que se confundiam com expectoração.
Em certa noite, Ramiro e o seu Tremoço dirigiam-se aos tombos, mais o primeiro que o segundo, para o apeadeiro das Curvaceiras, no ramal de Tomar, depois de uma passagem pelo Pantanal, bar de alterne com licença de casa de fados.
- Ai, Tramoço, Tramoço… Tu vistes-me aquela Soraya? Aquilo é que era braseira para me esquecer o Inverno!
- Wof! – ladrou o Tremoço.
- Ah também guestastes, ahm?! És cão mas n’és parvo, poi não?!
- Wof! Wof!
- Aquilo não é p’rós teus beiços, animal! Aquilo era uma proméssia d’amor! Aquilo era lombinho do rim, não eram aparas para cão! Aquilo era…
- Wof! Wof! Wof! Wof!
- Mas que rai…
Nisto, vzzzzzzzzzt!
Moral 1: nas linhas de menor circulação a CP pode não ser tão lesta a reparar uma catenária caída no chão.
Moral 2: em situações de perigo, o comportamento dos animais pode ser um bom indicador quanto à proximidade do mesmo.
quarta-feira, fevereiro 09, 2005 |
Microfábulas - V
Havia, certa vez, uma solteirona de grande porte, perna torneada e ligeiramente varicosa, seio farto em recta descendente, anca generosa gritando a frustração da vocação maternal, verruga saliente logo abaixo do queixo como ferrete da condenação ao celibato. “Lá vai o saco de pasteleiro!”, diriam uns; “Lá vai a Mariazinha!”, diriam os mais educados. E Mariazinha ia. E vinha. E todos os dias ia e vinha, completando o percurso entre Palheiros da Tocha e o Hospital Rovisco Pais para reabilitação de leprosos, onde trabalhava na cozinha. Se lhe perguntassem, Mariazinha diria que preferia ir a voltar, contorcendo-se-lhe o estômago ante a perspectiva de encarar mais um serão com a irmã, o cunhado e o sobrinho: os homens andavam na pesca e a irmã limitava-se a ser nervosa e a desdizer a sua sorte. No hospital, a miséria era outra, mais clara e directa, mais “in your face”, como diria o Rex Harrison de sua predilecção…
Na casa dos Palheiros, a coabitação era difícil. De um lado, os nervos da irmã, os gritos da irmã, o choro da irmã, as constantes referências da irmã ao facto de aquela ser a casa dos pais onde ela e Mariazinha tinham partes iguais e iguais direitos. De outro lado, a boçalidade primeva do cunhado, o chiste constante do cunhado, a má vontade, a lembrança constante de que “somos a tua única companhia!”, os comentários aos gastos que delapidariam a herança do sobrinho. Para ajudar, o sobrinho – os dentes podres do sobrinho, o tabaco de enrolar “Duque” do sobrinho, os olhos doentios do sobrinho, a permanente mão no bolso do sobrinho, o descaramento do sobrinho… “A ‘nha rica tia madrinha é que ainda me faz um jeitinho um dia destes, hum?” ou “Eu ao menos tenho as peças todas, não sou como os outros do hospital… quer ver, tia?”. E Mariazinha aguentando, couraçada atrás de uma bata, sempre uma bata, tanto em casa como no trabalho. A bata era a Mariazinha “de fora”, a solteirona trabalhadora e contristada. Da Mariazinha “de dentro”, se porventura existira uma Mariazinha com anseios e expectativas, não havia memória – nem inferências possíveis da roupa interior que usava.
E Mariazinha ia e vinha, dos Palheiros da Tocha para a Tocha, da Tocha para os Palheiros da mesma. Ia e vinha na carreira, que lhe espartilhava a vida com horários semi-rígidos. Mas um dia tardou a vir, muito mais que o costume. Desatou a irmã num pranto e o cunhado a especular quanto “às coroas que ela devia ter de lado”. Até que o barulho estrepitoso de um motor pouco são se acercou da porta. Era Mariazinha ao volante de um Anglia, com um ar afogueado e pouco seguro, mas determinado. O cunhado protestou – “depois de velha é que se lembrou de entrar em despesas!” – e escarneceu da decisão; a irmã afiançou que o carro era mais uma ralação que lhe iria tirar o sono e trazê-la mais nervosa ainda; o sobrinho sorriu com lascívia e desafiou a tia “vamos à Praia de Mira e eu mostro-lhe p’ra que serve o banco de trás!”. Mariazinha calou-se, jantou e foi-se deitar.
Nisto, vzzzzzzt!
Moral 1: a compra de carros usados deve ser limitada aos agentes autorizados ou a viaturas avalizadas por mecânicos de confiança, se é que tal coisa existe.
Moral 2: o número de carros vítimas de combustão espontânea é despiciendo no universo global dos veículos automóveis mas o número de vencedores do Euromilhões no total da população europeia também o é. E eles existem...
Havia, certa vez, uma solteirona de grande porte, perna torneada e ligeiramente varicosa, seio farto em recta descendente, anca generosa gritando a frustração da vocação maternal, verruga saliente logo abaixo do queixo como ferrete da condenação ao celibato. “Lá vai o saco de pasteleiro!”, diriam uns; “Lá vai a Mariazinha!”, diriam os mais educados. E Mariazinha ia. E vinha. E todos os dias ia e vinha, completando o percurso entre Palheiros da Tocha e o Hospital Rovisco Pais para reabilitação de leprosos, onde trabalhava na cozinha. Se lhe perguntassem, Mariazinha diria que preferia ir a voltar, contorcendo-se-lhe o estômago ante a perspectiva de encarar mais um serão com a irmã, o cunhado e o sobrinho: os homens andavam na pesca e a irmã limitava-se a ser nervosa e a desdizer a sua sorte. No hospital, a miséria era outra, mais clara e directa, mais “in your face”, como diria o Rex Harrison de sua predilecção…
Na casa dos Palheiros, a coabitação era difícil. De um lado, os nervos da irmã, os gritos da irmã, o choro da irmã, as constantes referências da irmã ao facto de aquela ser a casa dos pais onde ela e Mariazinha tinham partes iguais e iguais direitos. De outro lado, a boçalidade primeva do cunhado, o chiste constante do cunhado, a má vontade, a lembrança constante de que “somos a tua única companhia!”, os comentários aos gastos que delapidariam a herança do sobrinho. Para ajudar, o sobrinho – os dentes podres do sobrinho, o tabaco de enrolar “Duque” do sobrinho, os olhos doentios do sobrinho, a permanente mão no bolso do sobrinho, o descaramento do sobrinho… “A ‘nha rica tia madrinha é que ainda me faz um jeitinho um dia destes, hum?” ou “Eu ao menos tenho as peças todas, não sou como os outros do hospital… quer ver, tia?”. E Mariazinha aguentando, couraçada atrás de uma bata, sempre uma bata, tanto em casa como no trabalho. A bata era a Mariazinha “de fora”, a solteirona trabalhadora e contristada. Da Mariazinha “de dentro”, se porventura existira uma Mariazinha com anseios e expectativas, não havia memória – nem inferências possíveis da roupa interior que usava.
E Mariazinha ia e vinha, dos Palheiros da Tocha para a Tocha, da Tocha para os Palheiros da mesma. Ia e vinha na carreira, que lhe espartilhava a vida com horários semi-rígidos. Mas um dia tardou a vir, muito mais que o costume. Desatou a irmã num pranto e o cunhado a especular quanto “às coroas que ela devia ter de lado”. Até que o barulho estrepitoso de um motor pouco são se acercou da porta. Era Mariazinha ao volante de um Anglia, com um ar afogueado e pouco seguro, mas determinado. O cunhado protestou – “depois de velha é que se lembrou de entrar em despesas!” – e escarneceu da decisão; a irmã afiançou que o carro era mais uma ralação que lhe iria tirar o sono e trazê-la mais nervosa ainda; o sobrinho sorriu com lascívia e desafiou a tia “vamos à Praia de Mira e eu mostro-lhe p’ra que serve o banco de trás!”. Mariazinha calou-se, jantou e foi-se deitar.
Nisto, vzzzzzzt!
Moral 1: a compra de carros usados deve ser limitada aos agentes autorizados ou a viaturas avalizadas por mecânicos de confiança, se é que tal coisa existe.
Moral 2: o número de carros vítimas de combustão espontânea é despiciendo no universo global dos veículos automóveis mas o número de vencedores do Euromilhões no total da população europeia também o é. E eles existem...
O AVIADOR
Ontem, Santana Lopes deslocou-se à Base Aérea de Monte Real para a assinatura de um protocolo entre os ministérios da Defesa e das Obras Públicas para a utilização daquela infra-estrutura pela aviação civil. Para chegar à base, o primeiro-ministro usou um Falcon, numa cerimónia em que não participou o titular da Defesa, Paulo Portas.
O primeiro-ministro, Pedro Santana Lopes, decidiu ontem adiar o processo de aquisição de meios aéreos de combate a incêndios florestais.
Ontem, Santana Lopes deslocou-se à Base Aérea de Monte Real para a assinatura de um protocolo entre os ministérios da Defesa e das Obras Públicas para a utilização daquela infra-estrutura pela aviação civil. Para chegar à base, o primeiro-ministro usou um Falcon, numa cerimónia em que não participou o titular da Defesa, Paulo Portas.
O primeiro-ministro, Pedro Santana Lopes, decidiu ontem adiar o processo de aquisição de meios aéreos de combate a incêndios florestais.
segunda-feira, fevereiro 07, 2005 |
sexta-feira, fevereiro 04, 2005 |
Microfábulas – IV
Havia, certa vez, um casal de camponeses remediados, vivendo na felicidade medíocre de quem entrega o destino aos humores da natureza e à certeza do foskamónio, que habitavam uma casinha humilde mas decente, de fachada caiada e telhado de duas águas, em cujo alpendre passavam boa parte do pouco tempo que roubavam à horta. “Lá estão os sovinas do caralho!”, diriam alguns vizinhos; “Lá está o Santos e a mulher!”, diriam os mais educados. No cão poucos reparavam: era um animalzito sem ar nem graça, pêlo ralo e baço na cor, olhos tristes e remelosos, porte discreto e sem autoridade no ladrar; um animal, portanto, que tanto poderia ter nascido cão como osga, desprovido de personalidade, mas fiel, seguindo cada passo dos donos – ou estacando no caminho a ganir se acaso os donos seguiam caminhos separados, ali ficando o tempo que fosse preciso até que algum deles regressasse.
Dos três, quem mais gostava do alpendre era o cão, tendo poiso na bancada de madeira tosca onde a mulher, ao serão, preparava a ceia, invariavelmente debulhando uma quantidade substancial de batatas para dentro de um largo alguidar de barro que o Santos enchera com água do poço. Numa prateleirita, directamente por cima do lugar destinado ao alguidar, estava a telefonia que o Santos comprara a um vizinho no dia ainda não muito distante em que a electricidade chegara a sua casa. Ligava-a duas vezes por dia: para ouvir as notícias à hora de almoço e para ouvir o terço, ao fim da tarde. E era ouvindo o terço e debulhando batatas que estava a mulher num dia em que o Santos voltou da lavoura particularmente enxofrado por ver as favas queimadas da geada. Entrou sem nada dizer e sentou-se a tirar carrapiços das calças e das ceroulas.
- Vai à adega buscar-me meio almude de vinho, anda.
- E não poderás ir lá tu? Não vês que estou a tratar da ceia?
- Catano da mulher!! Também já queres usar calças cá em casa?!
- Ó hóme’! Pois se és tu que o bebes que te custa ir buscá-lo?
Vai o Santos, pega numa bota cardada que entretanto descalçara e atira-a, fazendo pontaria à mulher mas acertando na prateleirita.
Nisto, vzzzzzzzzt!
Moral 1: sendo a água condutora de electricidade, não é conveniente ter aparelhos eléctricos por cima de alguidares de barro com água.
Moral 2: por maior que seja o charme gauché de umas botas cardadas, a verdade é que são uma péssima arma de arremesso – prova disso é o facto de nunca se ter jogado chinquilho com elas.
Havia, certa vez, um casal de camponeses remediados, vivendo na felicidade medíocre de quem entrega o destino aos humores da natureza e à certeza do foskamónio, que habitavam uma casinha humilde mas decente, de fachada caiada e telhado de duas águas, em cujo alpendre passavam boa parte do pouco tempo que roubavam à horta. “Lá estão os sovinas do caralho!”, diriam alguns vizinhos; “Lá está o Santos e a mulher!”, diriam os mais educados. No cão poucos reparavam: era um animalzito sem ar nem graça, pêlo ralo e baço na cor, olhos tristes e remelosos, porte discreto e sem autoridade no ladrar; um animal, portanto, que tanto poderia ter nascido cão como osga, desprovido de personalidade, mas fiel, seguindo cada passo dos donos – ou estacando no caminho a ganir se acaso os donos seguiam caminhos separados, ali ficando o tempo que fosse preciso até que algum deles regressasse.
Dos três, quem mais gostava do alpendre era o cão, tendo poiso na bancada de madeira tosca onde a mulher, ao serão, preparava a ceia, invariavelmente debulhando uma quantidade substancial de batatas para dentro de um largo alguidar de barro que o Santos enchera com água do poço. Numa prateleirita, directamente por cima do lugar destinado ao alguidar, estava a telefonia que o Santos comprara a um vizinho no dia ainda não muito distante em que a electricidade chegara a sua casa. Ligava-a duas vezes por dia: para ouvir as notícias à hora de almoço e para ouvir o terço, ao fim da tarde. E era ouvindo o terço e debulhando batatas que estava a mulher num dia em que o Santos voltou da lavoura particularmente enxofrado por ver as favas queimadas da geada. Entrou sem nada dizer e sentou-se a tirar carrapiços das calças e das ceroulas.
- Vai à adega buscar-me meio almude de vinho, anda.
- E não poderás ir lá tu? Não vês que estou a tratar da ceia?
- Catano da mulher!! Também já queres usar calças cá em casa?!
- Ó hóme’! Pois se és tu que o bebes que te custa ir buscá-lo?
Vai o Santos, pega numa bota cardada que entretanto descalçara e atira-a, fazendo pontaria à mulher mas acertando na prateleirita.
Nisto, vzzzzzzzzt!
Moral 1: sendo a água condutora de electricidade, não é conveniente ter aparelhos eléctricos por cima de alguidares de barro com água.
Moral 2: por maior que seja o charme gauché de umas botas cardadas, a verdade é que são uma péssima arma de arremesso – prova disso é o facto de nunca se ter jogado chinquilho com elas.
Como construir um político - parte I
Receita básica e que serve apenas para os de baixo nível.
Tempo de preparação: simples. Grau de dificuldade: médio.
Ingredientes:
1 pessoa sem grandes escrúpulos
1 falta de carácter exacerbada
1 juventude partidária
1 desinteresse pelos demais
1 ambição desmedida
1 grande amor pelo dinheiro
1 pitada de corrupção
1 oratória básica
½ colher de chá de ensino básico
1 discurso de Mirabeau
1 discurso de Lamartine
1 exemplar do «Conde d’Abranhos», de Eça de Queiroz
Misture bem os ingredientes, lentamente, e reserve. À parte, prepare o molho de mioleira de vaca louca. Bastam alguns segundos para esta operação. Junte tudo numa travessa de grande porte – pirex – e leve ao forno até levedar.
Está preparado. Pode começar a viver à conta do erário público e de alguns favores.
Receita básica e que serve apenas para os de baixo nível.
Tempo de preparação: simples. Grau de dificuldade: médio.
Ingredientes:
1 pessoa sem grandes escrúpulos
1 falta de carácter exacerbada
1 juventude partidária
1 desinteresse pelos demais
1 ambição desmedida
1 grande amor pelo dinheiro
1 pitada de corrupção
1 oratória básica
½ colher de chá de ensino básico
1 discurso de Mirabeau
1 discurso de Lamartine
1 exemplar do «Conde d’Abranhos», de Eça de Queiroz
Misture bem os ingredientes, lentamente, e reserve. À parte, prepare o molho de mioleira de vaca louca. Bastam alguns segundos para esta operação. Junte tudo numa travessa de grande porte – pirex – e leve ao forno até levedar.
Está preparado. Pode começar a viver à conta do erário público e de alguns favores.
quinta-feira, fevereiro 03, 2005 |
Microfábulas – III
Havia, certa vez, um rapaz em idade de casar que passava pelos dias amarelecido e macambúzio, de olhos pregados à calçada da vila onde lhe calhara nascer. “Lá vai o Fuinha Punheteiro!”, diriam uns; “Lá vai o Herculano!”, diriam os mais educados. Dissessem o que quisessem, uns e outros, que Herculano parecia sempre alheado de quaisquer sons ou movimentos à sua volta. Tanto ou tão pouco que a senhora sua mãe empenhara umas arrecadas de oiro para levar o menino ao otorrino, ainda que transtornada pela certeza de que enjoaria na carreira entre Cantanhede e Coimbra. “Ele ouvir, ouve, minha senhora. Não sei é que raio de estopa terá ele dentro da cabeça que parece não processar nada do que ouve.” O diagnóstico valeu a Herculano uma severa reprimenda da mãe – “antes fosses duro de ouvido que mole do juízo, meu paspalho!” – e umas valentes cinturadas do pai que acreditava que qualquer motivo era suficientemente bom para “disciplinar o malandro” e não gostava de ver o nome da sua família arrastado debalde pelos consultórios de Coimbra.
E Herculano vivia assim, suportando tudo sem o sorriso dos inconscientes mas antes com o esgar dos resignados – ou dos obstipados, que também é parecido. Passava horas perdidas na retrosaria de seu pai, a olhar para um canário engaiolado e mal nutrido, ou agarrado aos livros – o rapaz “ajeitava-se às letras” apesar de ser de poucas falas e de gostar pouco de ouvir – e dava longos passeios pela vila, os conterrâneos já habituados a não terem resposta aos cumprimentos que lhe dirigiam.
Num desses passeios, em se abeirando de sua casa, encontrou Herculano uma jovem donzela muito bem ataviada, delicadamente apoiada sobre uma sombrinha rendada, pele clara e luzidia, cabelos finos da cor do trigo, sorriso aberto e dentes sãos. Ao ver Herculano, a jovem interpelou-o, numa voz cristalina:
- O cavalheiro, por obséquio, indicar-me-ia onde fica a farmácia?
Nisto, vzzzzzzzzzt!
Moral 1: acessórios potencialmente pirosos como uma sombrinha rendada podem ter o seu impacto visual.
Moral 2: a ejaculação precoce é um problema que, dizem as estatísticas, atinge milhares de portugueses.
Havia, certa vez, um rapaz em idade de casar que passava pelos dias amarelecido e macambúzio, de olhos pregados à calçada da vila onde lhe calhara nascer. “Lá vai o Fuinha Punheteiro!”, diriam uns; “Lá vai o Herculano!”, diriam os mais educados. Dissessem o que quisessem, uns e outros, que Herculano parecia sempre alheado de quaisquer sons ou movimentos à sua volta. Tanto ou tão pouco que a senhora sua mãe empenhara umas arrecadas de oiro para levar o menino ao otorrino, ainda que transtornada pela certeza de que enjoaria na carreira entre Cantanhede e Coimbra. “Ele ouvir, ouve, minha senhora. Não sei é que raio de estopa terá ele dentro da cabeça que parece não processar nada do que ouve.” O diagnóstico valeu a Herculano uma severa reprimenda da mãe – “antes fosses duro de ouvido que mole do juízo, meu paspalho!” – e umas valentes cinturadas do pai que acreditava que qualquer motivo era suficientemente bom para “disciplinar o malandro” e não gostava de ver o nome da sua família arrastado debalde pelos consultórios de Coimbra.
E Herculano vivia assim, suportando tudo sem o sorriso dos inconscientes mas antes com o esgar dos resignados – ou dos obstipados, que também é parecido. Passava horas perdidas na retrosaria de seu pai, a olhar para um canário engaiolado e mal nutrido, ou agarrado aos livros – o rapaz “ajeitava-se às letras” apesar de ser de poucas falas e de gostar pouco de ouvir – e dava longos passeios pela vila, os conterrâneos já habituados a não terem resposta aos cumprimentos que lhe dirigiam.
Num desses passeios, em se abeirando de sua casa, encontrou Herculano uma jovem donzela muito bem ataviada, delicadamente apoiada sobre uma sombrinha rendada, pele clara e luzidia, cabelos finos da cor do trigo, sorriso aberto e dentes sãos. Ao ver Herculano, a jovem interpelou-o, numa voz cristalina:
- O cavalheiro, por obséquio, indicar-me-ia onde fica a farmácia?
Nisto, vzzzzzzzzzt!
Moral 1: acessórios potencialmente pirosos como uma sombrinha rendada podem ter o seu impacto visual.
Moral 2: a ejaculação precoce é um problema que, dizem as estatísticas, atinge milhares de portugueses.
quarta-feira, fevereiro 02, 2005 |
Microfábulas – II
Havia, certa vez, uma menina muito pequenina e mirradinha e enfezada que, brandindo na mão direita escrofulosa e alporquenta uma insignificante vergasta, levava duas cabrinhas a pastar nos terrenos de seu pai. “Lá vai a tísica de merda!”, diriam uns; “Lá vai a Tinita!”, diriam os mais educados. Caminhava descalça, o cascalho grosso do carreiro não deixando já qualquer marca nos seus pezitos calejados e estrumados.
- Ticha! Farrusca! She comeides a lande do b’zinho doi-vos tantas c’a vergasta que voj’arrebenta o saingue do cu!
As cabrinhas olharam uma para a outra e riram o seu discreto risinho de cabra, conscientes da diferença na balança de poder e da facilidade com que poderiam aniquilar o inimigo e aumentar o seu lebensraum. Culpa do pai de Tinita, que havia dado a comer às cabrinhas os livros de Nicholas Spykman e Políbio Valente de Almeida.
Chegando às terras de seu pai, Tinita deixou as cabrinhas destroçarem a rama de uma azinheira e começou a cantarolar:
“Ai eu hei-de murrer num’àdéigaaa
Ai c’um copo de binho na mãooo…”
Nisto, vzzzzzzzzzzt!
Moral 1: lá porque o narrador a não refere, a trovoada pode sempre estar presente numa história.
Moral 2: o trabalho infantil é ainda mais condenável se o empregador fizer um seguro de vida às crianças que emprega e as mandar acoutarem-se da trovoada debaixo de uma árvore.
Havia, certa vez, uma menina muito pequenina e mirradinha e enfezada que, brandindo na mão direita escrofulosa e alporquenta uma insignificante vergasta, levava duas cabrinhas a pastar nos terrenos de seu pai. “Lá vai a tísica de merda!”, diriam uns; “Lá vai a Tinita!”, diriam os mais educados. Caminhava descalça, o cascalho grosso do carreiro não deixando já qualquer marca nos seus pezitos calejados e estrumados.
- Ticha! Farrusca! She comeides a lande do b’zinho doi-vos tantas c’a vergasta que voj’arrebenta o saingue do cu!
As cabrinhas olharam uma para a outra e riram o seu discreto risinho de cabra, conscientes da diferença na balança de poder e da facilidade com que poderiam aniquilar o inimigo e aumentar o seu lebensraum. Culpa do pai de Tinita, que havia dado a comer às cabrinhas os livros de Nicholas Spykman e Políbio Valente de Almeida.
Chegando às terras de seu pai, Tinita deixou as cabrinhas destroçarem a rama de uma azinheira e começou a cantarolar:
“Ai eu hei-de murrer num’àdéigaaa
Ai c’um copo de binho na mãooo…”
Nisto, vzzzzzzzzzzt!
Moral 1: lá porque o narrador a não refere, a trovoada pode sempre estar presente numa história.
Moral 2: o trabalho infantil é ainda mais condenável se o empregador fizer um seguro de vida às crianças que emprega e as mandar acoutarem-se da trovoada debaixo de uma árvore.
Pequeno relato de um sábado na Mealhada, Janeiro de 2005
Uma palavra prévia de apreço pela organização: o g2, embora de tenra idade, esmerou-se e proporcionou-nos uma óptima tarde, com um excelente repasto e com uma qualidade de escolha excelente. Arranjou-nos uma sala espaçosa, aquecida e bem servida de luz. Sem qualquer problema para estacionar e com um serviço assaz eficiente. Nem podia deixar de ser assim: é que o jovem g2 fez para lá uma amiga que só lhe respondia «Meta» cada vez que ele telefonava. Mas isso não me diz respeito…
Caros Amigos, o Grande Consílio dos Bácoros reuniu-se uma vez mais. E se peca por não ter contado com todos - o que, convenhamos, é sempre difícil - não pecou por falta de boa disposição e amizade.
As miúdas estavam lindas, isso é ponto assente.
De uma ponta à outra da mesa, tínhamos a menina do mimalho, a Saltos Altos, a tt, a laurinha e, um pouco mais tarde, a estounua.
Do lado dos marmanjos, estavam lá o zé cutivo, o referido g2, o mimosa, o Fodimedes, eu, o Papo-seco e o Manuel.
Lamentámos a ausência da Nena Maria que, prostrada por uma súbita febre, não pôde comparecer. Em abono da verdade, deixem-me que lhes diga que os que não foram perderam uma grande tarde. E uma tarde grande, pois então. Entrámos no local do nham à hora do almoço – uns mais tarde do que os outros, é verdade (eu incluído nestes do mais tarde…) – e saímos à hora de jantar.
Para manter a tradição, demo-nos todos bem, com uma conversa fluida e as piadas acutilantes de um certo senhor do Norte. Carago!
Revi Amigos que já não encontrava há um ano e estão cada vez melhores. Achei muita piada a conhecer pessoalmente o Manuel e o Papo-seco. Estes gajos são uma boa lição para os clones, que têm medo de assumir um nick e de nos conhecer as fronhas. E são gajos muito fixes.
Bom, como já disse, foi uma óptima tarde. Ou quase.
Sim, quase. O que não sabem é que, depois de terem encerrado as festividades e antes de voltar para Lisboa, eu e a laurinha fomos tomar um café à Mealhada. In loco, sim.
Pois. Tinha sido muito leitão e muito Sarmentinho (vinho adamado - vinho frisante gaseificado - bem bom!) e eu precisava de um bocadinho de cafeína. Ora bem, entro naquela magnífica terra e vou até um café que aproveitou as antigas instalações de um teatro e que ficou muito bem. Até aí, sem problemas.
Como aquilo está localizado numa estrada onde passa um carro a cada dez minutos e como está rodeado de armazéns, ou coisa que o valha, não vi qualquer problema em estacionar em cima do passeio, onde até estava, pelo menos, outro carro. Digamos que deixei apenas as rodas do lado esquerdo do carro fora do passeio. À frente da entrada de um armazém, com um acesso enorme. Com um passeio larguíssimo, onde cabia um outro carro estacionado ao lado do meu. Num passeio onde não passava vivalma e com razão – o frio que se fazia sentir era cortante.
Pois bem, tomámos o nosso café em quinze minutos, saímos e dirigimo-nos para o carro. Entrámos. Abri a janela. Nesse momento, passou um carro da Guarda Nacional Republicana. Eu disse para a laurinha: «Queres ver que este gajo nos vem chatear?». Ela responde-me: «Não. Achas que sim?».
Take seguinte: o senhor guarda sai da viatura e posta-se ao lado da minha janela. «Boa noite, senhor condutor». Eu: «Boa noite». Ele: «Não sabe que não pode estacionar o veículo em cima do passeio?». Eu: «Tem razão, fomos só tomar um cafezinho e vamos já embora». Ele: «Está sujeito a ser autuado». Eu, em pensamento: «Filho da puta, vem para aqui implicar». A laurinha – uma querida – a querer ajudar: «A culpa foi minha!». O GNR (estava escuro, mal nos víamos): «Então se eu decidir autuar o senhor condutor, é a senhora que paga». Eu, em pensamento: «Cabrão, filho da puta – perspectiva económica, hem?». Eu, na realidade: «Nós nem somos daqui, viemos de Lisboa e vamos já embora». Ele, efectivamente cabrão e filho da puta e com uma lógica imbatível: «Um passeio é um passeio, aqui ou em Lisboa». Eu, já farto e a ligar o motor: «Tem razão, vamos já embora». E fomos. Mas o senhor GNR fez questão de permanecer ao lado do carro e ver se tínhamos os cintos de segurança postos e se eu fazia pisca-pisca para sair de cima do passeio. Tudo cumprido.
Dois metros à frente, de janela aberta, viro-me para a laurinha e desabafo: «Filho da puta». Não sei se o senhor guarda ouviu ou não.
Prepotenciazinha do camandro, não?
Pois bem, tomámos o nosso café em quinze minutos, saímos e dirigimo-nos para o carro. Entrámos. Abri a janela. Nesse momento, passou um carro da Guarda Nacional Republicana. Eu disse para a laurinha: «Queres ver que este gajo nos vem chatear?». Ela responde-me: «Não. Achas que sim?».
Take seguinte: o senhor guarda sai da viatura e posta-se ao lado da minha janela. «Boa noite, senhor condutor». Eu: «Boa noite». Ele: «Não sabe que não pode estacionar o veículo em cima do passeio?». Eu: «Tem razão, fomos só tomar um cafezinho e vamos já embora». Ele: «Está sujeito a ser autuado». Eu, em pensamento: «Filho da puta, vem para aqui implicar». A laurinha – uma querida – a querer ajudar: «A culpa foi minha!». O GNR (estava escuro, mal nos víamos): «Então se eu decidir autuar o senhor condutor, é a senhora que paga». Eu, em pensamento: «Cabrão, filho da puta – perspectiva económica, hem?». Eu, na realidade: «Nós nem somos daqui, viemos de Lisboa e vamos já embora». Ele, efectivamente cabrão e filho da puta e com uma lógica imbatível: «Um passeio é um passeio, aqui ou em Lisboa». Eu, já farto e a ligar o motor: «Tem razão, vamos já embora». E fomos. Mas o senhor GNR fez questão de permanecer ao lado do carro e ver se tínhamos os cintos de segurança postos e se eu fazia pisca-pisca para sair de cima do passeio. Tudo cumprido.
Dois metros à frente, de janela aberta, viro-me para a laurinha e desabafo: «Filho da puta». Não sei se o senhor guarda ouviu ou não.
Prepotenciazinha do camandro, não?
terça-feira, fevereiro 01, 2005 |
Microfábulas – I
Havia, certa vez, uma velhinha que caminhava rumo a casa, ajoujada pelo peso dos anos, quase juntando os pés com a cabeça. “Lá vai a Puta Marreca!”, diriam uns; “Lá vai a Domitília!”, diriam os mais educados. Atrás de si, duas linhas paralelas gravadas na poeira por onde os seus pés se tinham arrastado nos tamancos cambados e um rasto de cascas de tremoço que a pobre velhinha mal conseguia mastigar com as gengivas calejadas. Comprara uma medida deles à Jaquina Quinquilheira, à saída da missa, e ainda guardava alguns no lenço para saciar apetites mais tardios. Domitília abriu a custo o portão do seu casinhoto insalubre e foi saudada pelo seu gatinho Tareco, a quem refregas de rua haviam custado uma vista. Ainda assim, um olho e o seu faro eram suficientes para reconhecer a dona e logo se lhe enleou nas pernas, quase a fazendo cair.
- Caralho do gato! ‘Inda te mando capar!
Domitília pegou em dois ou três cavaquitos de lenha e num molho de caruma e acendeu um foguito modesto na sua chaminé.
- Ai, Tareco… Vinha tão desensofrida com frio que só pensava em vir para casa e chegar os pés ao borralho…
Nisto, vzzzzzzzzt!
Moral 1: quando se calçam meias de vidro, não convém aproximar demasiado os pés de uma fonte de combustão.
Moral 2: tamancos cambados e meias de vidro é uma escolha unfashionable.
Havia, certa vez, uma velhinha que caminhava rumo a casa, ajoujada pelo peso dos anos, quase juntando os pés com a cabeça. “Lá vai a Puta Marreca!”, diriam uns; “Lá vai a Domitília!”, diriam os mais educados. Atrás de si, duas linhas paralelas gravadas na poeira por onde os seus pés se tinham arrastado nos tamancos cambados e um rasto de cascas de tremoço que a pobre velhinha mal conseguia mastigar com as gengivas calejadas. Comprara uma medida deles à Jaquina Quinquilheira, à saída da missa, e ainda guardava alguns no lenço para saciar apetites mais tardios. Domitília abriu a custo o portão do seu casinhoto insalubre e foi saudada pelo seu gatinho Tareco, a quem refregas de rua haviam custado uma vista. Ainda assim, um olho e o seu faro eram suficientes para reconhecer a dona e logo se lhe enleou nas pernas, quase a fazendo cair.
- Caralho do gato! ‘Inda te mando capar!
Domitília pegou em dois ou três cavaquitos de lenha e num molho de caruma e acendeu um foguito modesto na sua chaminé.
- Ai, Tareco… Vinha tão desensofrida com frio que só pensava em vir para casa e chegar os pés ao borralho…
Nisto, vzzzzzzzzt!
Moral 1: quando se calçam meias de vidro, não convém aproximar demasiado os pés de uma fonte de combustão.
Moral 2: tamancos cambados e meias de vidro é uma escolha unfashionable.