quarta-feira, fevereiro 09, 2005 |
Microfábulas - V
Havia, certa vez, uma solteirona de grande porte, perna torneada e ligeiramente varicosa, seio farto em recta descendente, anca generosa gritando a frustração da vocação maternal, verruga saliente logo abaixo do queixo como ferrete da condenação ao celibato. “Lá vai o saco de pasteleiro!”, diriam uns; “Lá vai a Mariazinha!”, diriam os mais educados. E Mariazinha ia. E vinha. E todos os dias ia e vinha, completando o percurso entre Palheiros da Tocha e o Hospital Rovisco Pais para reabilitação de leprosos, onde trabalhava na cozinha. Se lhe perguntassem, Mariazinha diria que preferia ir a voltar, contorcendo-se-lhe o estômago ante a perspectiva de encarar mais um serão com a irmã, o cunhado e o sobrinho: os homens andavam na pesca e a irmã limitava-se a ser nervosa e a desdizer a sua sorte. No hospital, a miséria era outra, mais clara e directa, mais “in your face”, como diria o Rex Harrison de sua predilecção…
Na casa dos Palheiros, a coabitação era difícil. De um lado, os nervos da irmã, os gritos da irmã, o choro da irmã, as constantes referências da irmã ao facto de aquela ser a casa dos pais onde ela e Mariazinha tinham partes iguais e iguais direitos. De outro lado, a boçalidade primeva do cunhado, o chiste constante do cunhado, a má vontade, a lembrança constante de que “somos a tua única companhia!”, os comentários aos gastos que delapidariam a herança do sobrinho. Para ajudar, o sobrinho – os dentes podres do sobrinho, o tabaco de enrolar “Duque” do sobrinho, os olhos doentios do sobrinho, a permanente mão no bolso do sobrinho, o descaramento do sobrinho… “A ‘nha rica tia madrinha é que ainda me faz um jeitinho um dia destes, hum?” ou “Eu ao menos tenho as peças todas, não sou como os outros do hospital… quer ver, tia?”. E Mariazinha aguentando, couraçada atrás de uma bata, sempre uma bata, tanto em casa como no trabalho. A bata era a Mariazinha “de fora”, a solteirona trabalhadora e contristada. Da Mariazinha “de dentro”, se porventura existira uma Mariazinha com anseios e expectativas, não havia memória – nem inferências possíveis da roupa interior que usava.
E Mariazinha ia e vinha, dos Palheiros da Tocha para a Tocha, da Tocha para os Palheiros da mesma. Ia e vinha na carreira, que lhe espartilhava a vida com horários semi-rígidos. Mas um dia tardou a vir, muito mais que o costume. Desatou a irmã num pranto e o cunhado a especular quanto “às coroas que ela devia ter de lado”. Até que o barulho estrepitoso de um motor pouco são se acercou da porta. Era Mariazinha ao volante de um Anglia, com um ar afogueado e pouco seguro, mas determinado. O cunhado protestou – “depois de velha é que se lembrou de entrar em despesas!” – e escarneceu da decisão; a irmã afiançou que o carro era mais uma ralação que lhe iria tirar o sono e trazê-la mais nervosa ainda; o sobrinho sorriu com lascívia e desafiou a tia “vamos à Praia de Mira e eu mostro-lhe p’ra que serve o banco de trás!”. Mariazinha calou-se, jantou e foi-se deitar.
Nisto, vzzzzzzt!
Moral 1: a compra de carros usados deve ser limitada aos agentes autorizados ou a viaturas avalizadas por mecânicos de confiança, se é que tal coisa existe.
Moral 2: o número de carros vítimas de combustão espontânea é despiciendo no universo global dos veículos automóveis mas o número de vencedores do Euromilhões no total da população europeia também o é. E eles existem...
Havia, certa vez, uma solteirona de grande porte, perna torneada e ligeiramente varicosa, seio farto em recta descendente, anca generosa gritando a frustração da vocação maternal, verruga saliente logo abaixo do queixo como ferrete da condenação ao celibato. “Lá vai o saco de pasteleiro!”, diriam uns; “Lá vai a Mariazinha!”, diriam os mais educados. E Mariazinha ia. E vinha. E todos os dias ia e vinha, completando o percurso entre Palheiros da Tocha e o Hospital Rovisco Pais para reabilitação de leprosos, onde trabalhava na cozinha. Se lhe perguntassem, Mariazinha diria que preferia ir a voltar, contorcendo-se-lhe o estômago ante a perspectiva de encarar mais um serão com a irmã, o cunhado e o sobrinho: os homens andavam na pesca e a irmã limitava-se a ser nervosa e a desdizer a sua sorte. No hospital, a miséria era outra, mais clara e directa, mais “in your face”, como diria o Rex Harrison de sua predilecção…
Na casa dos Palheiros, a coabitação era difícil. De um lado, os nervos da irmã, os gritos da irmã, o choro da irmã, as constantes referências da irmã ao facto de aquela ser a casa dos pais onde ela e Mariazinha tinham partes iguais e iguais direitos. De outro lado, a boçalidade primeva do cunhado, o chiste constante do cunhado, a má vontade, a lembrança constante de que “somos a tua única companhia!”, os comentários aos gastos que delapidariam a herança do sobrinho. Para ajudar, o sobrinho – os dentes podres do sobrinho, o tabaco de enrolar “Duque” do sobrinho, os olhos doentios do sobrinho, a permanente mão no bolso do sobrinho, o descaramento do sobrinho… “A ‘nha rica tia madrinha é que ainda me faz um jeitinho um dia destes, hum?” ou “Eu ao menos tenho as peças todas, não sou como os outros do hospital… quer ver, tia?”. E Mariazinha aguentando, couraçada atrás de uma bata, sempre uma bata, tanto em casa como no trabalho. A bata era a Mariazinha “de fora”, a solteirona trabalhadora e contristada. Da Mariazinha “de dentro”, se porventura existira uma Mariazinha com anseios e expectativas, não havia memória – nem inferências possíveis da roupa interior que usava.
E Mariazinha ia e vinha, dos Palheiros da Tocha para a Tocha, da Tocha para os Palheiros da mesma. Ia e vinha na carreira, que lhe espartilhava a vida com horários semi-rígidos. Mas um dia tardou a vir, muito mais que o costume. Desatou a irmã num pranto e o cunhado a especular quanto “às coroas que ela devia ter de lado”. Até que o barulho estrepitoso de um motor pouco são se acercou da porta. Era Mariazinha ao volante de um Anglia, com um ar afogueado e pouco seguro, mas determinado. O cunhado protestou – “depois de velha é que se lembrou de entrar em despesas!” – e escarneceu da decisão; a irmã afiançou que o carro era mais uma ralação que lhe iria tirar o sono e trazê-la mais nervosa ainda; o sobrinho sorriu com lascívia e desafiou a tia “vamos à Praia de Mira e eu mostro-lhe p’ra que serve o banco de trás!”. Mariazinha calou-se, jantou e foi-se deitar.
Nisto, vzzzzzzt!
Moral 1: a compra de carros usados deve ser limitada aos agentes autorizados ou a viaturas avalizadas por mecânicos de confiança, se é que tal coisa existe.
Moral 2: o número de carros vítimas de combustão espontânea é despiciendo no universo global dos veículos automóveis mas o número de vencedores do Euromilhões no total da população europeia também o é. E eles existem...