sexta-feira, fevereiro 18, 2005 |
Microfábulas – VII
Havia, certa vez, uma família despudorada e amante da liberdade e da natureza que rumava, todos os Verões, até à Zambujeira do Mar na sua garbosa roulotte Vimara com a qual se instalavam nas falésias junto a qualquer praia menos frequentada e não vigiada, onde pudessem ir a banhos sem as prisões criadas pela indústria têxtil. “Lá vão aqueles porcos desavergonhados!”, diriam uns; “Lá vai o casal Brás e os pequenos!”, diriam os mais educados. Indiferentes a qualquer comentário, os Brás lá carregavam o Renault 9 acabadinho de comprar com tudo o que não coubesse na roulotte e, arranjando espaço entre cobertores, malas térmicas carregadas de refeições macrobióticas, lanternas, bolas de praia, atoalhados diversos e a gaiola do porquinho da Índia, lá se encaixavam o pai e a mãe, à frente, e os dois petizes, um com 12 e outro com 8 anos, algo agastados com a perspectiva de mais umas férias demasiado longe dos amigos (ou de qualquer outro ser vivo extra-família-e-porquinho) e demasiado perto das partes de seus pais que não faziam questão de ver.
- Cuidai em atentar, meus filhos – dizia o pai Brás no seu modo doutrinário, ao passar por Santiago do Cacém – na validade do que hoje vos digo. Estai cientes de que, num porvir não tão distante, vos recordareis de minhas palavras e ajuizareis então: era presciente, o nosso velho pai, quando nos fazia ver a importância de uma relação harmoniosa com a Natureza e de uma visão da “vida” enquanto milagre sem distinções valorativas baseadas numa racionalidade duvidosa atribuída ao Homo Sapiens-Sapiens.
- Eu quero um bolo! – guinchava o mais novo.
- Come pão integral. Está aí num saco ao lado dos teus pés. – respondia a mãe, atirando pela janela a beata do Português Suave sem filtro.
A indiferença dos restantes ocupantes do automóvel não fazia esmorecer o discurso do pai Brás:
- Atentai na roupa de que só nos podemos libertar nestes quinze dias paradisíacos em que reforçamos a nossa consciência de seres vivos ligados pelo sangue e pelo afecto próprio de cada mamífero a quem lhe dá continuidade. Recordareis um dia o que o vosso velho pai vos ensinou: é já de há muito que o fito da roupagem que nos impõem não tem por base a adversidade do clima, não. Vós mesmos adquirireis esse conhecimento quando crescerdes. Não. Os humanos tapam-se pela desarmonia em que caíram face à sua natureza animal, desarmonia essa que é um pesado jugo lançado pelas igrejas monoteístas ao cachaço das massas ruminantes que não se arrogam o direito – o dever!! – de questionar. Tu, Ramiro, meu primogénito, estarás porventura já familiarizado com o mecanismo da erecção em que o afluxo de sangue faz intumescer o teu ainda pouco notável órgão sexual…
- Não te preocupes, filho. Já viste como é o do teu pai e eu casei com ele na mesma… - interrompe a mãe Brás.
- Bom! – retoma o pai – Ramiro, tu és o teu corpo! O teu corpo que caminha, que se arrepia, que corre, que se molda às tuas necessidades e que se intumesce como lembrete à determinação animal da reprodução, da continuidade do milagre da vida! A erecção é harmonia! E que faz o suposto ser vivo inteligente?! Tapa-se!! Lembrais-vos, nas férias do ano passado, daquele momento intrinsecamente terno e maravilhoso em que a vossa mãe foi acometida pelo milagre mensal da fertilidade?...
Após as tradicionais duas paragens para o filho mais novo vomitar, lá chegavam os Brás ao litoral alentejano, martirizando a suspensão do Renault 9 em caminhos de terra e cascalho, procurando uma praia isolada. Num certo ano, encontraram uma praia pequena e rochosa, no fundo de uma falésia escarpada mas manejável para subir e descer. O pai Brás lá fez a costumeira manobra de aproximar a roulotte o mais possível da beira da falésia e a mãe Brás preparou uma saborosa refeição com brócolos, feijão manteiga e puré de maçã (e a acidental cinza de cigarro que a mãe tinha esperança ficasse bem diluída no puré) que toda a família se preparava para deglutir – uns com mais entusiasmo que outros – no avançado que os petizes tinham ajudado a montar.
Nisto, vzzzzzzzzt!
Moral 1: é perfeitamente evitável fumar enquanto se cozinha. Por mais que Hollywood tenha promovido a imagem cool do cigarro permanente ao canto da boca, não há indicações de que o Mickey Rourke seja um bom chefe de cozinha.
Moral 2: a erosão nas falésias portuguesas – e em toda a costa – é um factor preocupante e uma das principais prioridades desse paradigma da entropia que é o Programa Finisterra.
Havia, certa vez, uma família despudorada e amante da liberdade e da natureza que rumava, todos os Verões, até à Zambujeira do Mar na sua garbosa roulotte Vimara com a qual se instalavam nas falésias junto a qualquer praia menos frequentada e não vigiada, onde pudessem ir a banhos sem as prisões criadas pela indústria têxtil. “Lá vão aqueles porcos desavergonhados!”, diriam uns; “Lá vai o casal Brás e os pequenos!”, diriam os mais educados. Indiferentes a qualquer comentário, os Brás lá carregavam o Renault 9 acabadinho de comprar com tudo o que não coubesse na roulotte e, arranjando espaço entre cobertores, malas térmicas carregadas de refeições macrobióticas, lanternas, bolas de praia, atoalhados diversos e a gaiola do porquinho da Índia, lá se encaixavam o pai e a mãe, à frente, e os dois petizes, um com 12 e outro com 8 anos, algo agastados com a perspectiva de mais umas férias demasiado longe dos amigos (ou de qualquer outro ser vivo extra-família-e-porquinho) e demasiado perto das partes de seus pais que não faziam questão de ver.
- Cuidai em atentar, meus filhos – dizia o pai Brás no seu modo doutrinário, ao passar por Santiago do Cacém – na validade do que hoje vos digo. Estai cientes de que, num porvir não tão distante, vos recordareis de minhas palavras e ajuizareis então: era presciente, o nosso velho pai, quando nos fazia ver a importância de uma relação harmoniosa com a Natureza e de uma visão da “vida” enquanto milagre sem distinções valorativas baseadas numa racionalidade duvidosa atribuída ao Homo Sapiens-Sapiens.
- Eu quero um bolo! – guinchava o mais novo.
- Come pão integral. Está aí num saco ao lado dos teus pés. – respondia a mãe, atirando pela janela a beata do Português Suave sem filtro.
A indiferença dos restantes ocupantes do automóvel não fazia esmorecer o discurso do pai Brás:
- Atentai na roupa de que só nos podemos libertar nestes quinze dias paradisíacos em que reforçamos a nossa consciência de seres vivos ligados pelo sangue e pelo afecto próprio de cada mamífero a quem lhe dá continuidade. Recordareis um dia o que o vosso velho pai vos ensinou: é já de há muito que o fito da roupagem que nos impõem não tem por base a adversidade do clima, não. Vós mesmos adquirireis esse conhecimento quando crescerdes. Não. Os humanos tapam-se pela desarmonia em que caíram face à sua natureza animal, desarmonia essa que é um pesado jugo lançado pelas igrejas monoteístas ao cachaço das massas ruminantes que não se arrogam o direito – o dever!! – de questionar. Tu, Ramiro, meu primogénito, estarás porventura já familiarizado com o mecanismo da erecção em que o afluxo de sangue faz intumescer o teu ainda pouco notável órgão sexual…
- Não te preocupes, filho. Já viste como é o do teu pai e eu casei com ele na mesma… - interrompe a mãe Brás.
- Bom! – retoma o pai – Ramiro, tu és o teu corpo! O teu corpo que caminha, que se arrepia, que corre, que se molda às tuas necessidades e que se intumesce como lembrete à determinação animal da reprodução, da continuidade do milagre da vida! A erecção é harmonia! E que faz o suposto ser vivo inteligente?! Tapa-se!! Lembrais-vos, nas férias do ano passado, daquele momento intrinsecamente terno e maravilhoso em que a vossa mãe foi acometida pelo milagre mensal da fertilidade?...
Após as tradicionais duas paragens para o filho mais novo vomitar, lá chegavam os Brás ao litoral alentejano, martirizando a suspensão do Renault 9 em caminhos de terra e cascalho, procurando uma praia isolada. Num certo ano, encontraram uma praia pequena e rochosa, no fundo de uma falésia escarpada mas manejável para subir e descer. O pai Brás lá fez a costumeira manobra de aproximar a roulotte o mais possível da beira da falésia e a mãe Brás preparou uma saborosa refeição com brócolos, feijão manteiga e puré de maçã (e a acidental cinza de cigarro que a mãe tinha esperança ficasse bem diluída no puré) que toda a família se preparava para deglutir – uns com mais entusiasmo que outros – no avançado que os petizes tinham ajudado a montar.
Nisto, vzzzzzzzzt!
Moral 1: é perfeitamente evitável fumar enquanto se cozinha. Por mais que Hollywood tenha promovido a imagem cool do cigarro permanente ao canto da boca, não há indicações de que o Mickey Rourke seja um bom chefe de cozinha.
Moral 2: a erosão nas falésias portuguesas – e em toda a costa – é um factor preocupante e uma das principais prioridades desse paradigma da entropia que é o Programa Finisterra.
Arrotos do Porco: