quarta-feira, fevereiro 23, 2005 |
Microfábulas – VIII
Havia, certa vez, um jovem profundamente marcado pelo Processo Revolucionário em Curso mas que chegava ao dealbar dos anos 80 dividido entre as esquerdas moderadas da UEDS e da ASDI. “Lá vai esse porco rendido à reacção!”, diriam uns; “Lá vai o Álvaro!”, diriam os mais educados. Tudo em Álvaro era de esquerda: para começar, era canhoto. Fora extremo esquerdo nos iniciados da Quimigal (ainda era CUF, na altura, mas nunca mais da sua boca sairia a sigla do grande capital), caminhava pela esquerda como qualquer peão civilizado, e eram de esquerda as suas suíças, a sua camisa de xadrez com colarinhos compridos, as suas calças coçadas à boca-de-sino, as suas sandálias, a sua crença no amor livre, o seu desrespeito pela religião, a sua convicção no artificialismo das estratificações sociais, o seu apego à condição de professor primário. Era moderado porque sim, porque também tudo em Álvaro era moderado: tinha suíças mas eram bem aparadas, a camisa de xadrez estava impecavelmente engomada, as calças estavam coçadas mas nunca muito puídas ou rotas, nunca fora titular na Quimigal, era canhoto mas tinha uma caligrafia indecifrável, desprezava qualquer religião mas era crismado, era socialista mas orgulhoso do seu estatuto de classe média e acreditava no amor livre ainda que pouco o pusesse em prática. E se as outras inerências da sua condição de radical moderado pouco o amofinavam, já esta última trazia-o algo catastrofado. Que diabo!, era o despertar da liberdade!, era um tempo novo!! E as gajas?! Álvaro bem se esforçava para ter uma conversa interessante nos cafés e nas boîtes onde se cruzava com o mulherio, mas a fórmula parecia escapar-se-lhe e regressava a casa sozinho e incrédulo ante a falta de efeito de frases cuidadas como “Estás a beber absinto? Tem graça, sempre me fascinou a coloração esverdeada que o absinto provoca na minha urina.”
Enquanto enchia de alpista os comedouros dos periquitos, a altas horas da noite, Álvaro garantia-se que para a próxima é que era – “ou não seja o Barão um dos melhores defesas que já passou pelo Sporting!”. E no dia seguinte lá saía Álvaro, encharcado em Blue Stratos, com mais umas frases em carteira – “Olá! Olhei para ti e pensei que, com esses cabelos vermelhos, podias ser tu a explicar-me porque é que dizem que as ruivas cheiram a morte!” – e com o pente no bolso de trás não fosse a poupa ficar desfeita. Certo dia, as coisas não lhe correram mal. Chamava-se Lubélia, ela, pouco formosa mas de gargalhada fácil, mãos estragadas e cabelos queimados de permanentes feitas pelo barato. A conversa fluíra por acidente – começara, aliás, com um sonoro “Foda-se!” de Lubélia, ao ser pisada por Álvaro. A bebida fluíra de forma menos acidentada, apenas um salpico aqui ou ali. E Álvaro lá conseguiu levar o troféu Lubélia até casa com a simples pergunta “E se fôssemos a minha casa ouvir o “Humanoid Flesh” dos Tantra?”. Foram, pois, até ao Bairro do Arco do Cego. Álvaro abriu duas garrafas de Green Sands e ligou a aparelhagem Waltham. “Vais ver… a voz do Frodo parece mesmo de uma máquina!”. Colocou o vinil, carregou na patilha do “start” e o braço ergueu-se, avançou até às 12 polegadas e desceu.
Nisto, vzzzzzzzzt!
Moral 1: a substituição regular das agulhas de leitura de vinil é uma prática recomendável para a obtenção do melhor som daquele suporte fonográfico.
Moral 2: o “acaso” enquanto factor despoletador está sobrevalorizado em termos emocionais mas dá origem a literatura simpática, com o Paul Auster à cabeça.
Havia, certa vez, um jovem profundamente marcado pelo Processo Revolucionário em Curso mas que chegava ao dealbar dos anos 80 dividido entre as esquerdas moderadas da UEDS e da ASDI. “Lá vai esse porco rendido à reacção!”, diriam uns; “Lá vai o Álvaro!”, diriam os mais educados. Tudo em Álvaro era de esquerda: para começar, era canhoto. Fora extremo esquerdo nos iniciados da Quimigal (ainda era CUF, na altura, mas nunca mais da sua boca sairia a sigla do grande capital), caminhava pela esquerda como qualquer peão civilizado, e eram de esquerda as suas suíças, a sua camisa de xadrez com colarinhos compridos, as suas calças coçadas à boca-de-sino, as suas sandálias, a sua crença no amor livre, o seu desrespeito pela religião, a sua convicção no artificialismo das estratificações sociais, o seu apego à condição de professor primário. Era moderado porque sim, porque também tudo em Álvaro era moderado: tinha suíças mas eram bem aparadas, a camisa de xadrez estava impecavelmente engomada, as calças estavam coçadas mas nunca muito puídas ou rotas, nunca fora titular na Quimigal, era canhoto mas tinha uma caligrafia indecifrável, desprezava qualquer religião mas era crismado, era socialista mas orgulhoso do seu estatuto de classe média e acreditava no amor livre ainda que pouco o pusesse em prática. E se as outras inerências da sua condição de radical moderado pouco o amofinavam, já esta última trazia-o algo catastrofado. Que diabo!, era o despertar da liberdade!, era um tempo novo!! E as gajas?! Álvaro bem se esforçava para ter uma conversa interessante nos cafés e nas boîtes onde se cruzava com o mulherio, mas a fórmula parecia escapar-se-lhe e regressava a casa sozinho e incrédulo ante a falta de efeito de frases cuidadas como “Estás a beber absinto? Tem graça, sempre me fascinou a coloração esverdeada que o absinto provoca na minha urina.”
Enquanto enchia de alpista os comedouros dos periquitos, a altas horas da noite, Álvaro garantia-se que para a próxima é que era – “ou não seja o Barão um dos melhores defesas que já passou pelo Sporting!”. E no dia seguinte lá saía Álvaro, encharcado em Blue Stratos, com mais umas frases em carteira – “Olá! Olhei para ti e pensei que, com esses cabelos vermelhos, podias ser tu a explicar-me porque é que dizem que as ruivas cheiram a morte!” – e com o pente no bolso de trás não fosse a poupa ficar desfeita. Certo dia, as coisas não lhe correram mal. Chamava-se Lubélia, ela, pouco formosa mas de gargalhada fácil, mãos estragadas e cabelos queimados de permanentes feitas pelo barato. A conversa fluíra por acidente – começara, aliás, com um sonoro “Foda-se!” de Lubélia, ao ser pisada por Álvaro. A bebida fluíra de forma menos acidentada, apenas um salpico aqui ou ali. E Álvaro lá conseguiu levar o troféu Lubélia até casa com a simples pergunta “E se fôssemos a minha casa ouvir o “Humanoid Flesh” dos Tantra?”. Foram, pois, até ao Bairro do Arco do Cego. Álvaro abriu duas garrafas de Green Sands e ligou a aparelhagem Waltham. “Vais ver… a voz do Frodo parece mesmo de uma máquina!”. Colocou o vinil, carregou na patilha do “start” e o braço ergueu-se, avançou até às 12 polegadas e desceu.
Nisto, vzzzzzzzzt!
Moral 1: a substituição regular das agulhas de leitura de vinil é uma prática recomendável para a obtenção do melhor som daquele suporte fonográfico.
Moral 2: o “acaso” enquanto factor despoletador está sobrevalorizado em termos emocionais mas dá origem a literatura simpática, com o Paul Auster à cabeça.