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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


sexta-feira, janeiro 30, 2004

DEVEM PENSAR QUE EU ANDO A DORMIR...

...e não me lembrava de que hoje é sexta-feira! Quer queiram quer não, aí vem a tradução! A sugestão para este fim-de-semana é a tomada de decisões. O que não quer necessariamente dizer que decidam, como o enooooorme Stephen Jones, que as coisas já não têm piada e toca de fazer buracos nas paredes com a cabeça. Pois é. Hoje saiu na rifa o Estêvão João, o homem que foi gravando sozinho ou em grupo algumas canções absolutamente brilhantes sob a capa Babybird. Sim, também gravou algumas menos felizes, mas é um tipo coerente e este "There's Something Going On", de que repesco o poema de hoje, é um belíssimo álbum muito injustiçado.

It's Not Funny Anymore



There’s a house in your head and the lights, they are on.
Eu sei que tu não gostas de morar na Brandoa... eu também preferia o Restelo.
They shine through your eyes, through your mouth, on your tongue.
Mas isto... para um casal novo como nós... querer dar um passo maior que as pernas...
There’s a house in my head but the lights, they’re not on.
Eu sei que tu não gostas das mobílias da Conforama... mas os meus pais não tinham dinheiro para mais.
They went out one by one in your heart, in your lungs.
Mas não precisas de ficar tão cinzenta como os prédios... ou como os ladrilhos da casa de banho...
It’s not funny anymore.
Esquece-te do lugar e lembra-te que sou eu que estou aqui.

Place out heads side to side, knock a hole through the walls,
Porque é que abanas a cabeça quando eu te digo isto?!
Push your tongue through my ears and nail me, nail me to the floor.
Achas que me sinto bem por só te poder dar duas assoalhadas acanhadas?!
Leave me there inside the house, flush the keys, slam the door.
Já me sinto uma merda e tu em vez de ajudares ainda puxas o autoclismo!...
Then you scream through the keyhole: ‘It’s not funny anymore.’
Isso! Vai-te embora! "Isto não é vida!", dizes tu! E a minha?!

It’s not funny anymore.
... e foi-se...

There’s a car on the road and it drives like a dream.
Meto-me no carro e vou atrás dela... vou. Nem que seja a casa dos pais...
See your lights in my eyes as my tears stream.
Estou a chorar? Merda, estou a chorar... Foda-se!
Tear the brakes from the floor, drop your toes on the gas.
Não... vou esperar... ou vou já? E se ela?... Não...
I’ll stand here like a wall that you made from sugar glass.
Fico aqui mesmo, na Brandoa que ela detesta, e ela há-de ter remorsos e há-de voltar e eu vou estar com um ar sujo e desgrenhado e sofrido e ela vai-se sentir culpada e...

It’s not funny anymore.
Nós ríamos tanto, antigamente...

Bom fim-semana. E já sabem que na próxima sexta vamos ter mais canções de dor de corno e separações trágicas, essa matéria prima fundamental das boas canções pop.





ORA DEIXA CÁ VER...



Penitencio-me. Arrojo-me aos pés de todos quantos tenho deixado à espera e rogo-lhes pela graça do perdão. É um facto triste, mas é a mais pura verdade: não consigo ser pontual.

Acho que a raíz desta patologia virá das minhas origens campesinas. Sim: corre nas minhas veias o sangue de quem trabalhava a terra sem outras formas de medir o tempo que não a posição do sol ou os toques do sino da capela. Naquele tempo e naquelas vidas, os minutos eram uma ideia difusa, qualquer coisa que se apreciava em casa com aqueles relógios de parede que tocavam o "Avé Maria" de quarto em quarto de hora. Pudesse eu viver também tão despreocupado...

O pior é que não posso. Não posso ficar despreocupado com as horas e não consigo submeter-me à sua cruel ditadura. Resultado: fico com os nervos num frangalho, corro pelas ruas como um louco e sou dos melhores clientes da RETALIS... Tudo isto para ganhar tempo junto dos outros, ou seja, chegar apenas com meia-hora de atraso.

Tomemos o caso de ontem: tinha uma reunião às 10h30, cheguei às 11h05. Tinha outra reunião às 21h30, cheguei às 22h00. Fazendo uma avaliação sincera, foi um dia de grande sucesso! Mantive os meus atrasos dentro de uma margem de 32,5 minutos! O peso pela culpa nestes lapsos temporais martiriza-me, mas não o exteriorizo. Quem me conhece sabe que chego com a maior naturalidade a qualquer compromisso ainda que o faça duas horas depois do prazo marcado. Ficou célebre, num anterior local de trabalho, o dia em que eu cheguei às 10h45 quando tinha uma reunião marcada para as 9h00. O chefe chamou-me e disse-me: "Ó Shô Vareta, a senhora da reunião esteve cá. Tive que ser eu a atendê-la." Eu, enquanto tentava enxugar os últimos pingos de água do cabelo, lá respondi com o ar mais casual que consegui: "Pois... Desculpe lá. Entretanto tenho aqui estes ofícios para assinar..." e lá continuei o dia como se nada fosse. É um bom truque, deixar trabalho pronto de véspera.

Mas com os atrasos profissionais posso eu bem... Lá ouço um ou outro responso: "Tem que chegar mais cedo" ou mesmo "Veja se consegue ter isto pronto hoje que amanhã tenho uma reunião às 10h30 e a essa hora ainda não está cá, não é?", mas não é à conta destas bocas que ganho úlceras no duodeno. O que me incomoda é fazer esperar as pessoas de quem gosto. Só que este incómodo não consegue rebater o meu optimismo horário. Se me propõem: vamos ao cinema mas jantamos primeiro, eu aceito logo. E até avanço a hora! "Oito e meia, aqui ou ali". Do outro lado, se me conhecem, já dão o devido desconto e chegam às 20h45. Pois mesmo assim é certo e sabido que eu chegarei dois minutos depois da hora de início do filme, afogueado, tartamudeando qualquer desculpa imberbe e perdendo tempo útil de "fruição do encontro" - esta expressão é linda, não é? fui eu que inventei! - tentando aplacar a ira alheia.

Eu tento tudo. O meu relógio de pulso está dez minutos adiantado. O relógio do telemóvel está UMA HORA adiantado para ver se eu me assusto quando toca o despertador e salto da cama. Tanto vale isto como nada. É mais forte que eu... As manhãs são um conceito que já não entra no meu campo lexical. E pensar que passei 12 anos da minha vida a ter aulas às 8h30 - e chegava a horas!

Já estive mais longe de me considerar narcoléptico... Mesmo se me vão buscar a casa de manhã, as coisas não correm melhor. Telefonam-me dez minutos antes da hora marcada, altura em que acordo em verdadeiro pânico e lá consigo condensar em 15 minutos os rituais matinais que nos outros dias me consomem pelo menos 40 minutos. Ainda assim, lá chego ao carro ainda a abotoar a camisa - e desenganem-se se pensam que é fácil fazer o nó da gravata pelos minúsculos espelhos dos carros. As consequências disto são tramadas: os meus sapatos nunca sabem o que é graxa, a pressa faz-me confundir camisas imprestáveis com camisas engomadas, o cinto é um acessório de que nem sempre me lembro... O que me vale é a minha lendária beleza, a compensar o invólucro descuidado.

Sou irremediável. Felizmente, quem me conhece mesmo bem já tolera esse facto. Ou melhor, já me pune por esse facto. Dizem-me "não é preciso teres pressa" e deixam-me à espera por larguíssimos minutos. Acreditem que me sabe bem esperar pelos outros: são tempos que tenho para mim, sem ter que correr, sem culpa nos ombros.

quarta-feira, janeiro 28, 2004

VOCÊS AGORA QUEREM É ESTILO!



Aos 17 anos rapei o cabelo. Foi a altura certa para o fazer. Nunca mais o fiz. Ficava com a cara redonda, muuuuito redonda e, como sou coradinho, parecia mais um provinciano destinado ao Alfeite. A reacção dos meus pais foi cautelosa e evoluiu gradualmente no sentido positivo, à medida que o cabelo ía crescendo. Claro que hoje, que uso o cabelo num tamanho perfeitamente comum, ainda os ouço dizer, algumas vezes: "Ficavas bem era com o cabelo rapado". É normal. Dá-se sempre mais valor ao que não se tem.

Se calhar também vou dar por mim com saudades do aspecto antigo do nosso Porquinho e a pensar: "Ficava bem era com o fundo branco". Mas não vai ser para já. Vou-me lembrar, sim, de como ele era. Isso é fundamental para apreciar a mudança.

Não vem ao caso se se muda para melhor ou pior (claro que é para melhor e ai de quem diga o contrário!). O que aconteceu foi que o face-lifting do nosso pequeno suíno me fez lembrar do que eu já fui e do que já foram as pessoas que eu fui/me foram acompanhando.

Mudei alguma coisa desde que rapei o cabelo há dez anos. Não devo ter mudado muito de aspecto - pelo menos a minha professora da escola primária ainda me reconhece: "Olha para essa figura! Eu sabia que te devia ter reprovado!". Fui acreditando em menos coisas, fui tendo menos certezas, fui variando de peso, fui dando por mim já um adulto. Para mim, valeu a pena ir mudando, como valeu a pena cada dia que passei em diferente condição - para os outros, não sei e preferia que se abstivessem de comentários...

Mas muito mais do que me examinar - coisa para que nunca tive paciência - hoje lembrei-me dos outros. Putos que conheci no 7º ano, de mochila às costas e sapatilhas Desportex, estão hoje casados e com filhos. Gajas que conheci no Ciclo Preparatório, de mala "Madonna" de plástico e collants de cores fortes, andam hoje atentas às tendências ou às lojas pré-mamã. Lembrei-me, claro, com muito carinho, dos pares de mamas que fui vendo crescer e avolumar em peitos que conheci tão lisos como o meu. Hoje em dia, concluí, faço parte de uma geração de jovens adultos.

Aqui há duas semanas, ía eu a entrar no comboio para Tomar, tropecei num degrau e caí. Cachapum!, lá aterrei eu em cima do saco de viagem. Tirando a nódoa negra na perna esquerda e a memória dolorosa das gargalhadas alheias, o que me marcou nessa queda foi ter ouvido duas rapariguitas dos seus 16 anos a comentar: "Viste a queda que aquele senhor deu?". Não foi pelas risadinhas que íam soltando, foi pela distância que a palavra "senhor" impôs. De mim, já não se espera que "rape o cabelo". Tenho um "lugar na sociedade" e ainda que não me lembre de o ter pedido, admito não ter a coragem para o largar. Quer queira, quer não, sou mesmo um "senhor".

Fiquei contente, digo-vos. Já tenho um passado e já tenho essa tal coisa das responsabilidades. Gostei destes 27 anos e não vou voltar a ser nada do que já fui, nem vou ser exactamente o que sou hoje. As mudanças de facto não dependem de nós. As mudanças de forma são um sintoma saudável. E de facto, de facto, o nosso Porco está muito mais bonito.

terça-feira, janeiro 27, 2004


Alambridatia, 6

Casal na casa dos 30, deitados em extensa cama. Lençóis de cetim, velas. Ela, em provocante camisa de seda, ele em boxers de algodão, justos. É uma quente noite de verão.

- O desenho dos teus músculos é digno de um Rodin.
- Pintor nenhum seria capz de reproduzir o teu contorno suave e a tua pele diáfana. Vejo a tua alma à transparência, tremeluzente.
- A tua serenidade é a minha enseada, o mármore do teu rosto, a minha fundação.
- O som da tua voz é como a semente que rasga a rocha, o fio de água que divide a montanha, o murmúrio do magma que se espreguiça no centro da Terra.
- Sinto o teu calor, daqui. A minha carne amolece, a minha vontade liquefaz-se, a minha pele enrubesce, o meu desejo vaporiza-se e envolve-nos em volutas de inevitabilidade, torce e rodopia num avassalador vulcão de sentidos.
- O teu cheiro é o da terra molhada na primeira noite de Primavera, é o do estuário fértil no virar da maré, o odor adocicado que sobe ao entardecer das matas virgens do Brasil, dos pântanos cálidos onde se corrompe a matéria e renasce a vida em novas e prodigiosas formas.
- A tua força é a do Sol impiedoso que nenhuma sombra aplaca, da primeira onda a quebrar sobre a primeira rocha, do primeiro feixe de luz da primeira estrela, eco do Big Bang que ressoa no final do Universo.
- És nuvem, terra e energia, sismo libertador, vulcão vingador da Terra decidida a reclamar-se, és o Génesis e o Apocalipse, és Deus saindo dos Infernos, morte sem redenção!
- És Nemésis reclamando a minha alma, supernova que me engole e incinera, explosão que me dilacera a carne e a arranca dos ossos!
- És doença insidiosa e pérfida que em meu âmago cravou as garras e me consome em pasta de sangue e pus!
- ... (com ar alarmado)...
- ... (com ar embaraçado)...
- Bem...
- Hum...
- Vou ver um bocadinho de televisão, importas-te?
- Não, mas põe baixinho que amanhã levanto-me cedo.

segunda-feira, janeiro 26, 2004

Hoje sinto-me mais velha

Depois de ter lido os vossos comentários fiquei com esta sensação.
A vossa mágoa, a vossa indignação, tudo o que sentiram, procuraram justificar com o facto de ter sido em directo.
O que eu senti foi um turbilhão de sentimentos que se prendem com o facto de eu ter passado por situações semelhantes várias vezes ao longo da minha vida – mas ao vivo – e onde eu era uma das intervenientes.

Não perco a cabeça e não choro. A cabeça fica fria e os braços obedecem.
A massagem cardíaca, a respiração boca-a-boca, a espera, outra vez e outra, faz pressão no peito conta até oito e espera. Outra vez. E espera.
Chamo, imploro que volte, que não desista.
Que insista.
Vai-se embora ou fica? Será que é desta?
Não foi.
Agora sim, a dormência, o vazio, o choro, o desespero. Um sentimento que não tem nome.

Consegui sempre trazer para este lado quem já quase estava do outro. Sempre que tentei.

Depois de ter assistido à morte de Fehér e principalmente durante todos os minutos de ansiedade que se viveram enquanto ele era assistido no relvado, não pude deixar de pensar que se eu lá estivesse talvez conseguisse. E tentei.
Mas não foi ao vivo - foi em directo. E não consegui.



Desabafo



Puta de vida madrasta.
É nestas alturas que penso se valerá a pena andar a trabalhar uma vida inteira para juntar uns míseros trocos, quando um jovem, aparentemente saudável e com uma conta bancária recheada - pelo menos bem mais do que a minha -, não chega a ter tempo para aproveitar aquilo que Deus lhe proporcionou. Porquê? Porque assim lho deu, assim lho tirou.
Não encontro explicação para tamanha brutalidade. Mas Deus explica... Ele, sempre Ele, qual Marcelo Rebelo de Sousa lá nas alturas, sempre com resposta para tudo.
Tentarei ir à igreja no próximo Domingo, pois nessa altura já o Sr. Padre terá sido contactado pelo Senhor a explicar-lhe as suas razões. E, muito sinceramente, gostaria de conhecê-las.

Deverei sacrificar o tabaco, os copos e os fritos em prol de uma vida mais saudável? Se alguém parecia "vender saúde", esse alguém era Fehér.
Não acredito que aquele rapaz fumasse desde os 13 e bebesse aquilo que eu bebo.
E acrescento: estou cada vez mais decidido a continuar a fazê-lo.

Vou foder dinheiro e aproveitar ao máximo aquilo que mais gosto de fazer, até que um cabrão qualquer se lembre que já não faço falta a este mundo.



Um novo tratador

É com mal-disfarçado orgulho que uso os poderes de gestão do porquinho que possuo para colocar aqui a primeira crónica de um dos dos "nossos" de primeira hora, Mr. Quentin de seu nick. Disfrutem.

Fala-se de tudo na TV. Na Casa Pia ou no Benfica, na Ferreira Leite ou na banda gástrica para o Vasco: tudo é noticiável para os donos da caixinha mágica. E, no entanto, do alto da minha ingenuidade juvenil, fico sempre com a sensação de que o que é realmente importante perde-se nas entrelinhas editoriais.

Nesta última sexta-feira de Janeiro, voltei a ter essa impressão.

Caminhava eu Chiado abaixo, quando perto do Armazém se aproxima uma jovem que não deveria ter mais que os seus 25 anos. Mulata, corpo torneado, bastante engraçada, vinha a segurar na mini-saia, dando a descobrir o pouco que ainda trazia ocultado. Sorridente, aproximou-se de mim:

- Olha, não me arranjas 20 cêntimos ?

Liso como qualquer membro da classe académica que se preze, respondi:

- Desculpa, mas não tenho dinheiro nenhum. - invadiu-me uma necessidade de "dar" qualquer coisa e por isso apressei-me a concluir - Posso é arranjar-te um cigarro.

Ela sorriu e disse em tom agradecido:

- Ah, obrigada... - o silêncio de quem reflecte em branco - Tás-me a discriminar ? Não é para droga. Não me podias arranjar mesmo 5 euros ? Eu fazia-te um broche, a sério. Arranja lá!

Chapada de luva branca. Desculpem o meu provincianismo, mas este tipo de abordagem, quando feita cara-a-cara, ganha uma força própria que ultrapassa qualquer ficcio-chachada à la TVI. Fiquei sinceramente estupefacto!

- Desculpa, mas não!

Foi a única coisa que consegui balbuciar enquanto me precipitei a tentar dar o primeiro passo para retomar o balanço da descida.

Perguntar-se-ão, talvez, a diferença desta história em relação a uma qualquer outra. Nenhuma talvez. Provavelmente, o facto de ser a minha história. E de me ter feito pensar em quantas pessoas caírão neste tipo de buracos sem que ninguém lhes deite a mão, quantas almas se perdem (por favor, não inserir sentido religioso nesta afirmação) sem repararem que "pra quem sabe olhar para trás, nenhuma rua é sem saída".

Não se pense que estou para aqui com moralismos. Sou a favor da liberalização em geral, de uma forma ponderada, é certo, mas são poucos os assuntos em que não seja a favor da Liberdade. Da droga ao aborto, passando pela prostituição ou pelos casamentos homossexuais, sou totalmente a favor da Liberdade. Ninguém melhor que cada um para decidir o que quer fazer com a sua vida, que caminhos seguir, que opções tomar. Talvez seja idealismo pseudo-anárquico (liberta o Proudhon que há em ti), mas tenho uma fé inesgotável no Ser Humano.

Mas é impossível não reflectir um pouco sobre isto. Haverá lugar mais fundo que a nossa própria ausência ? Quando já não queremos saber de nós e oferecemos o nosso lugar mais íntimo em troca de dinheiro ? Haverá um voyeurismo tal que queiramos estar acessíveis a tudo e todos por meia dúzia de tostões ? É que, neste caso, o dinheiro seria para um risco de coca ou mais uma dose de heroína, mas não é diferente do que se for para alimentar um luxo ou uma família.

Se as pessoas se querem dar, se querem vender, assim seja. Mas sei também que sou demasiado novo para compreender que se chegue a um ponto destes. Posso estar muito errado, mas se (forçados ou não) nos vendemos, o que nos resta ? Há sempre um último reduto que salvaguarda a nossa individualidade, um espaço na nossa cabeça onde dizemos "Este sou eu!", mas se o vendo a alguém é como se vendesse também esse espaço. Eu já não sou eu (será que me estou a fazer entender ?).

Esta é, para mim, a mais subtil e dilacerante forma de suicídio: a morte do Eu, versão século XXI.

Ser jovem tem destas "vantagens". Às vezes (mas só às vezes), o mundo ainda nos surpreende.

(poste da autoria de MrQuentin, caso não se tivessem dado ao trabalho de ler a introdução)

sexta-feira, janeiro 23, 2004

E É HOJE, SEXTA-FEIRA!

Pois é. É hoje. No Santiago Alquimista, pelas 22h30. Vini Reilly volta a Lisboa, tentando refazer "Amigos em Portugal" (caso não percebam esta piada de altíssimo quilate, "Amigos em Portugal" era o título de um álbum que os Durutti Column lançaram em 1984 pela Fundação Atlântica. Eu tenho-o, em vinil, e não o vendo.). Vamos poder ouvir de novo a guitarra etérea e melancólica, a guitarra que se multiplica em teias fascinantes, a guitarra em que Tony Wilson em boa hora apostou (a guitarra, convenhamos, que fez de "Viva Hate" o único álbum de Morrisey que vale a pena desde o fim dos The Smiths). Matando duas lebres (por respeito aos coelhos) de uma cajadada, divulga-se o concerto e a obra lírica - escassa mas de qualidade - do amigo Vini, devidamente traduzida para a língua de Renato Solnado.





Crumpled Dress

You don't act fair
Tu às vezes és um bocado cabra
You touch my face
E pensas que uma festinha resolve tudo
There are some lines
Se lavasses a merda da boca antes de dizeres o que dizes
Some you put there
E depois admiras-te com as constantes discussões!
This rented room
Tens este quarto que é uma vergonha!
Your summer frocks
Mesmo a roupa ordinária que insistes em comprar
Crumpled on the floor
Fica toda espalhada pelo chão, com nódoas que nem quero saber de que são
On the floor
E pensar que a senhoria mandou envernizar o soalho antes de te alugar este pardieiro...
There's tears in your eyes
Agora choramingas, não é?
Midnight coming
Tinhas combinado mais uma festança com as porcas das tuas amigas e eu cortei-te as vazas...
Dreams are coming on
Se tu sequer sonhasses com a noite que vais ter...
We like to dream
Tu já me conheces... "O que prometo, cumpro!"
Dreams are coming on
Vai ser uma noite de sonho, pois vai!

You don't act fair
Se tu fosses menos casmurra...
You touch my face
E pára de me tocar nas cicatrizes da varicela!
There are some lines
Pensas que eu me esqueço do que tu disseste?
Some you take away
"O nosso caso é como a TelePizza: quando não há mais nada..."
And some you put there
Mas lambuzas-te toda com as minhas fatias, não é?

Neon light in the rain
E deves achar que é bom, para uma pessoa da minha posição, subir até a um quarto manhoso por cima da Boutique Sandrypaula?
All these pale faces
E nem consegues ter arrumada esta pálida imitação de ninho de amor...

You don't act fair
És. Desculpa, mas tenho que te dizer: às vezes és um bocado cabra.
Midnight coming on
Chega-se a noite e pareces uma cadela com o cio
Dreams are coming on
...e ressonas. Sim senhora! Ressonas que mete dó!
We like to dream
E eu nunca me queixei, pois não?

This rented room
Se a senhoria visse o espavento que vai neste quarto...
And your summer frocks
Aquilo que está ali amassado é o casaco que te ofereci?!
Crumpled on the floor
É que não tens mesmo vergonha! E ainda dizes que eu é que não quero nada de sério!
There's tears in your eyes
Vá... Pronto... Não choramingues... Tens fome? Ligas tu ou ligo eu?

Durutti Column, Amigos em Portugal


quarta-feira, janeiro 21, 2004


Diálogos de Amizade, 6

-Ouve lá, falei com o gajo do banco e ele disse-me que temos a conta a descoberto...
-Não pode ser...
-Pode, pois. E tem mais: andei a ver a contabilidade e isto não bate certo de maneira nenhuma.
-Estás a brincar comigo...
-Não, não estou. E já agora, queres fazer o favor de me explicar que cheques são estes que tu passaste ao portador, sem documentos a justificar?
-Errrr... eh, pá, foi uma coisas que eu precisei...
-Que coisas?
-Pá, um arranjo do carro, a escola dos putos, cenas assim...
-Cenas assim? Não te estás a esquecer da entrada para o monte em Beja?
-Pois, esse também...
-Esse também, né? Fodeste o dinheiro todo que tínhamos no banco, temos a conta a descoberto, temos fornecedores a meter cheques carecas ao banco... e agora?
-Agora... não sei...
-Ah, não sabes? Olha, eu sei. Esta merda faliu e nem sei como nos vamos safar para pagar as contas!
-Credo, é assim tão mau?
-Como é que tu foste capaz? Somos amigos há, quê?, 17 anos? És o padrinho do meu puto, eu sou padrinho dos teus, e fodes-me assim a vida?
-Tem lá calma...
-Calma, o caralho! Eu posso ir dentro por causa desta merda!
-É só dinheiro, foda-se! Vais estragar a nossa amizade por causa de dinheiro?
-Claro que não. Comigo - disse, tirando o revólver da mala - um amigo é para toda a vida.

segunda-feira, janeiro 19, 2004


Alambridatia, 5

- Senhora, porque desdenhais assim deste vosso servo?
- Eu, gentil cavaleiro?
- Sim, vós. Notastes, por certo, como o meu olhar vos procura, incessante e furtivo.
- Senhor, cobris de rubor o meu embaraço...
- Asseguro-vos, senhora, que nada há nas minhas intenções que justifique tal embaraço.
- Mas é tudo tão súbito... mal vos conheço. Que digo eu!, mal me conheceis. Como podeis estar tão seguro de vossas intenções?
- Senhora, vejo-vos tão clara em meu coração quanto o mago espreita o porvir no seu cristal amaldiçoado.
- Blasfemais, senhor!
- Perdoai-me, minha adorada, mas se for o inferno dos danados a punição para este amor, tépida brisa de Abril me parecerá a sulfurosa eternidade.
- Senhor!...
- Ah, cruel destino! Não me deixeis assim, senhora, por vossa alma. Quereis realmente ser o algoz da minha alegria? Dizei-mo agora. Selai com uma palavra o féretro onde encerrarei meu coração em vida.
- Sabei então, nobre cavaleiro, que ao vosso penhor não sou indiferente.
- Deveras? É do coração que falais?
- Pois sim. Também eu - permiti-me a confissão - vos observo há muito.
- Senhora! Sabei que hoje é o dia do meu segundo nascimento, pois que hoje o Sol começa, para mim, a brilhar com nova luz.
- Também eu, senhor, rejubilo com vosso amor.
- Ah, feliz fortuna! Vejo a minha vida a escrever-se em douradas páginas. Como anseio pelo momento de tocar vossos lábios, vosso corpo, vossa virtude...
- Minha virtude?!?
- Perdoai. Foi o entusiasmo. Tal não deveria ter ousado.
- Não se trata disso, meu fogoso cavaleiro, mas julgais que ainda carrego esse injusto fardo da virtuosidade?
- Por Deus! Fostes assaltada, minha dama? Viveis em silenciosa vergonha?
- Assalto? Vergonha? Meu pobre e baralhado cavaleiro, estamos no séc. XVI. Cuidais que ainda vivemos na Idade das Trevas?

NOTA: este texto foi originalmente postado prenhe de incorrecções, assacáveis única e exclusivamente à inépcia do autor. Está agora ligeiramente menos ofensivo, obra do insigne Fodósofo, incansável vigilante e tenaz caçador das misérias linguísticas do autor, que assim publicamente manifesta o seu agradecimento.

sexta-feira, janeiro 16, 2004

MAIS UMA SEXTA-FEIRA...

...e mais uma pérola da canção estrangeira traduzida, mais ou menos, para a língua portuguesa. De braço dado com ela, vem a sugestão de fim-de-semana: um passeio a pé. Poderão ter a mesma sorte do grande Paddy McAloon, o homenageado de hoje, que à frente dos Prefab Sprout tem erigido verdadeiros monumentos pop.

The Ice Maiden




Standing on the boulevard
Em plena avenida
You wish to know my name
Tu vens-me com a história: lembras-me alguém... como é que te chamas?
I’m the ice maiden
E eu respondo: sou o cara*** que te f**a
I think perhaps you like being unhappy
Deves ser mesmo um triste para usares essas técnicas de engate
I’m the ice maiden - the limit of your dreams
Por isso põe-te na alheta que tu comigo só em sonhos...
(até aqui é a gaja a cantar)


(aqui começa o gajo)
Arctic winds blow and still you believe
Está um vento tão frio... Podíamos ir a minha casa
Loves makes you one of the chosen
Eu punha o cd da "Romântica FM" a tocar...
Die in the snow - I’ll never grieve
Mas se não queres, não queres... O que não falta para aí é gajedo
So what if tomorrow you’re frozen
Deixa-te estar aí ao vento e depois queixa-te da garganta
Death is a small price for heaven
E isto anda mau... as operações às amígdalas, gente a quinar...


(isto agora é uma espécie de narrador, mas gajo)
Welcome to the glow of high octane affairs
Tu bem querias uma daquelas fodas imprevistas, não era?
Esperanto style and blonde disheveled hair
Engatar uma gaja na rua, de preferência estrangeira...
Subterranean streams, duckling you’re a swan
E era logo no carro, no parque subterrâneo, que começava a festa
Infinites of dreams imploding into one
Mas acorda, paspalho! Só tens a Palmira e a Canhota como companhia.


(e lá vem o gajo outra vez, a lembrar-se do passado)
All those nights I dreamt of you
Ando há tempos a sonhar com uma merda destas
I wonder where they’ve gone
E tenho os kleenexes que não me deixam mentir...
You’re the ice maiden
Uma gaja dessas marchava melhor que um gelado da Häagen-Dazs


(agora é o gajo a lembrar-se da cena da avenida, tipo: eu devia ter-lhe dito era...)
Standing on the boulevard
Um gaja numa esquina da avenida está à espera de quê?
I’ve always known your name
E eu até sei quem ela é... Acho que se chama Soraya
You’re the ice maiden
E logo toda despachadinha a responder... "Sou o não sei o quê!"
Let you and I grow frosty together
Eu bem lhe contava uma história que a ensinava a ter maneiras
You’re the ice maiden - today you meet your match
"És o cara*** que me f**a? Então vá, sempre quero ver isso", era o que eu lhe devia ter dito

Girl when I burn - hell nothing’s the same
A gaja é que ainda não me viu virado do avesso!
I’ll singe your pretty blonde lashes
Dava-lhe um tratamento cá dos meus... até o cabelo ficava pastoso!
We’re talking fire - we’re talking flame
Se a volto a ver aí é que eu lhe mostro o que é ferver em pouca água
We’re talking ice into ashes
Havia de a deixar mais quente que a Central Termoeléctrica do Pego!
But death is a small price for heaven
Eram capazes de lhe cair os parentes na lama se a gaja fosse comigo...pfff!

All those nights I dreamt of you
Mas a gaja era bem boa... boa, não, era de sonho, pá
I wonder where they’ve gone
Acho que ainda volto p'ra trás...

Prefab Sprout, Jordan: the comeback

quinta-feira, janeiro 15, 2004

VAMOS JOGAR AO SCRAPIE?


Um texto dramático em um acto para três ovelhas e um carneiro, de Vareta Funda


CENA 1

Três ovelhas em descanso, num pasto, conversam enquanto debicam uma ervita ou outra



Clara – Mééeee?

Cynthia – Mééeee.

Suzele – ‘Bora lá!


CENA 2

Três ovelhas em descanso, num outro local do mesmo pasto mas com mais sombra, conversam enquanto debicam uma ervita ou outra

Cynthia - ...só vos digo que já me passou pela cabeça. É qu’isto tam’ém não é vida. Andar para aqui e para ali, ordenha, ordenha, ordenha, cresce lã, corta lã, lá vamos ao carneiro uma vez por outra... Não, eu não nasci p’ra isto. Lembro-me como se fosse hoje da minha mãezinha me dizer: “Cynthia, filha, tu és do Sr. Alberto, mas se isto der uma volta o teu futuro ainda poderá vir a estar nas tuas patas.”

Suzele – Eu cá num sei. Eu cá descunfio sempre. Mais bale...

Clara e Cynthia – Mééeee.... Hi hi hi!

Suzele – E lá estão bocês a guzarem cumigo! E pronto! Já num digo mai nada!

Clara – Também dizes sempre o mesmo... “Eu cá num me meto nissu! Eu cá prefiro estar do meu cãotinho!”. Que diabo, Suzele! Tens cinco anos, já não estás na flor da idade! Nem todas temos a sorte de ser como a Dolly e ficarmos famosas à nascença. Se não arriscarmos agora...

Suzele – Quem bos oubisse!... Bejam lá as senhoras dâutoras, parece que já são algúeim! Nunca biram mais nada senão esta quinta! Eu ó menos bim...

Cynthia – Sim, já sabemos, foste comprada na Ovibeja. E depois?... Vais ficar eternamente à sombra desse momento de glória? Lembras-te da Marisa? A tia dela também teve os seus quinze minutos de fama quando apareceu no autocolante da Ovibeja de 97. E onde é que elas estão agora, uma e outra?

Clara (cantarolando) – “No bandulho do Alberto/É o que tens de mais certo/Em costeleta ou ensopado/O teu futuro é cozinhado”...

Cynthia – Disfarça que vem aí o Orlando... Mééeee.

Clara e Suzele – Mééeee.


CENA 3

Três ovelhas em descanso, no mesmo local, conversam enquanto debicam uma ervita ou outra. Entretanto aproxima-se Orlando, o carneiro. As ovelhinhas ajeitam-se e exibem o ventre. A cada fala, o actor chega-se à boca do palco e depois recua, na melhor tradição do Parque Mayer. Se for fisicamente possível às ovelhas, sugere-se que façam manguitos.



Orlando – E então, people? Vai uma?

Clara – Deves estar, deves...

Orlando – ‘Tar até ‘tou. Cheio de tesão, ó, queres ver?

Cynthia – Deves de ‘tar é chei’da sorte, se pensas que levas daqui alguma coisa.

Orlando – Iá. Não levo nem trago, môr. Já sabes que p’ra ti é sempre à borliú, eh eh eh! (se o povo ainda é povo, deve rir aqui:____)

Suzele – Ó filhas, bamos-lhe cantar a canção da minha terra?!

(As luzes incidem apenas sobre as ovelhas e segue-se um bonito quadro musical...)

Clara, Cynthia e Suzele (cantando) –
Ó carneiro arremelgado
Tu aqui não te governas
Queres-nos ver de ventre inchado?
Vai c’o Portas p’rás casernas! (que diabo, é revista! tem que ter uma boca política, básica, de preferência)

Tu tens fraco material
E o mais certo é qualquer dia
Apareceres no jornal
A falar da Casa Pia (também se percebe, ou não?... hum? uma piada circunstancial?...)

Lá por te chamares Orlando
E cheirares a coentro
Achas que é só ir entrando
Pelas ovelhas adentro (e a carga lúbrica, senhores? que seria da revista sem a carga lúbrica?)

Vê se te pões nas canetas
Nem te queremos ver por perto
Guardamos as nossas tetas
P’rás maõzinhas do Alberto

Orlando – Iá, people. É como quiserem. Mais tarde ou mais cedo hão-de cá vir parar, eh eh eh. (Orlando fica cinco segundos com um sorriso estúpido no focinho, faz “eh eh eh” outra vez, vê que não tem resposta e sai de cena).


CENA 4

Três ovelhas em descanso, no mesmo local, conversam enquanto debicam uma ervita ou outra

Cynthia – Estou farta disto. Já é altura das ovelhas combaterem os estereótipos de animal pacato e estúpido, que dá leite e lã e carne... E o espírito? Quem é que nos aprecia pelo espírito?

Suzele – Olhó Orlando, esse é que num nus aprecia por o espírito! Fuôsga-se! Quando me lembro da primeira bez... Chiça! Mas no fim até gustei...

Clara – Olham para nós e só vêem camisolas, cachecóis, queijo da serra... E ainda fazem anúncios a gozar connosco, como se ficássemos umas loucas quando chupamos rebuçados de mentol... Eu cá bem sei o que é que lhes chupava!

Cynthia – Ó Clara, que horror! Não me digas que és dessas?!

Clara – Era o tutano dos ossos, minha desavergonhada.

Suzele – Eu ó Orlando estibe quase capaz... Ele bem mo pediu, mas tibe bergonha...

Clara – O ideal era uma fibromialgia... Aparecíamos nos jornais, íamos para Londres, viagens, repórteres, festas...

Cynthia – E quem é o veterinário que te diagnostica uma fibromialgia? Já sabes como é que é essa corja... Queres baixa? Paga! (o povo, o verdadeiro povo, também se deve sentir identificado com esta piada e dar umas gargalhaditas... uma palminha ou outra não ficaria mal)

Suzele – Eu cu Orlando é que quaise ficaba de baixa. Aquilo foi uma tarde inteira... Sacana do carneiro num se cansaba... E nim eu, eh eh eh... (reparem... é revista, isto no fundo é revista... tem que haver uma figura assim, que fale de forma engraçada, que tenha comentários despropositados... enfim, há que estabelecer empatia com o povo)

(Orlando reentra pela esquerda baixa)

Orlando – People, não dêem nas vistas, pá. Cheguem-se aqui.

(as ovelhas aproximam-se)

Orlando – Um primo meu que está em Amsterdão arranjou-me uma cena altamente, pá. Isto dá uma moca!...

Cynthia – Se for como a outra merda que arranjaste... Não dava pica nenhuma e até o leite me saía verde...

Orlando – Nã nã nã nã nã. Isto é mesmo altamente. Chama-se scrapie...

Clara – Fixe, pá. Orienta aí.

(Orlando mija na erva e as ovelhinhas comem sofregamente, dando origem a um novo quadro musical)

Clara, Cynthia, Orlando e Suzele (cantando) –

(refrão – sim, o refrão está em estrangeiro porque esta merda vai ser um hit, pá!)
London, Paris, Rome, New York or New Delhi
Nothing is impossible for a sheep with scrapie
x2

(solo da Cynthia)
Sou uma ovelha algo inconformada
Adeus aos pastos eu quero ir ver o mundo (coro: io! io! io!)
Com uma doença um bocado marada (esta rima é de uma fineza...)
Falam de mim até no país profundo

(refrão x2)

(solo da Clara)
Nós as ovelhas merecemos respeito
Não queremos mais estar junto à carneirada (coro: io! io! io!)
Já chega de nos espremerem o peito
Eu tenho scrapie eu sou sofisticada

(refrão x2)

(solo do Orlando)
Nunca pensei em armar tal confusão
Eu só queria passar um bom bocado (coro: io! io! io!)
Mas esta merda lá de Amsterdão
Deixou o ‘tuga algo preocupado ( eh pá! até eu me espanto comigo! esta do ‘tuga para encaixar na métrica...)

(refrão x2)

(solo da Suzele)
Eu sou uma obelha algo acarneirada (é a terceira vez que uso “algo”, mas estou-me a cagar)
Não me chateiem qu’eu estâou no meu cãotinho (coro: io! io! io!)
Mas c’o Orlando eu fico meio aluada
O que eu não faço pelo meu carneirinho

(coro final, glorioso, alegre, vivo, muita cor, muita dança, muita palma)
London, Paris, Rome, New York or New Delhi
Nothing is impossible for a sheep with scrapie

(repetir até a paciência do público se esgotar)

FIM

(E pronto. Não me ocorreu nada melhor como fim. Foi por isso que lhe chamei texto dramático e não revista ou comédia. É que o fim é triste, perceberam? Scrapie é a doença, uma variante espongiforme... Eh pá, pronto... Uns dias corre melhor, outros pior.)





Diálogos de Amizade, 5

- Ouve, parece que levei um enxerto de porrada...
- Eu bem te disse que a gaja não prestava...
- Tá bem, pá. Mas tu nunca gostaste dela, desde o princípio.
- Pois não! Topei-lhe logo a pinta!
- Nós somos amigos, somos como irmãos. Eu achei que era uma reacção natural a perderes algum contacto comigo, por causa dela. Em boa verdade, nunca levei muito à letra aquilo que tu dizias.
- Fizeste mal. Devias ter percebido que era genuína preocupação contigo e com o teu futuro. Tu és um gajo muito emocional, estava na cara que ias sofrer por causa dela.
- Mas que alternativa tinha eu, não me dizes?
- Oh, deixa-te de histórias...
- Não, a sério. Eu não sou como tu, eu quero viver intensamente. Loucuras, paixões, amor, até! Sim, amor!
- Tu nunca foste de medir consequências...
- Ó pá, quando um gajo ama está-se a cagar para a hipótese de sofrer.
- Amor, amor! Tu és muita estúpido, desculpa lá. As gajas só se querem é apanhar com um gajo em casa, e depois disso é sempre a pisar. São incapazes de manter uma relação equitativa contigo, fazem tudo para afastar o que entendem ser a concorrência e mandam-te à merda quando arranjam coisa melhor. Tu estavas à espera de quê?
- Ela era diferente. Ela não era dessas...
- Ah, ah, ah! Pois não, não era? Viste, não viste?
- Quando penso que ela se foi embora, só me apetece chorar.
- Tanso... chorar por uma gaja daquelas?
- Ela parecia mesmo "aquela". A gaja que tu sabes que está por aí à tua espera. A tua outra parte.
- O problema é que tu não eras a "outra parte" dela...
- Não sei... se calhar devia esperar mais uns tempos, pode ser que ela mude de ideias. Pode ser só uma cena passageira, uma paixoneta...
- Não te cansaste ainda de levar na cabeça? Que parvoíce, pá. Ainda por cima uma gaja que não sabe foder...
- Como?
- Sim, pá. Aquilo não se mexe, parece um boneco. E aqueles gemidinhos, quando ela trinca o lábio, "gni...gni...gni", que desatino!
- Mas... mas... tu foste para a cama com a gaja?
- Eu disse-te que ela não prestava, mas não havia maneira de perceberes! Teve que ser, pra tu veres que eu tinha razão.
- Como é que foste capaz? Tu, o meu melhor amigo!...
- Achas que me deu algum gozo? Da-se... mas eu, por um amigo, faço tudo.

quarta-feira, janeiro 14, 2004


Pequeno poste desnecessariamente sério

O número de visitantes do nosso porco é uma medida dos olhos que eu imagino ter a espreitar por sobre o ombro quando pego numa caneta. Se os belogues podem ser (mal) tomados por companhia, é pouco educado que essa companhia não se retire quando estamos sós.

terça-feira, janeiro 13, 2004

Rapidinha I

Perspectiva-se um surto de emigração de portugueses para o Brasil.
Escondam-se, assalta-berços, eles vêm-n'aí...




ABC da democracia

A não perder, o debate que se adivinha em redor da questão fulcral do enquadramento constitucional dos ideais e discursos fascistas nas democracias, semeado no Causa Nossa. É afiar as facas, senhores, e ler com atenção todas as contribuições que forem aparecendo. Está na altura de provar se os belogues são meros espelhos da vaidade imensa dos seus autores ou se têm um papel a desempenhar no exercício da cidadania.
Para começar, o Porco agradece o auto-golo do simpático leitor do Causa Nossa que decidiu "dar a cara" pelo inimigo. Sim, eu disse "inimigo". Nestas coisas, não há neutralidade - ou se é pela democracia ou contra ela. E se é inquestionável o direito à liberdade de expressão, não o é menos a garantia constitucional de que não são permitidas organizações ou associações que preconizem o fim da democracia como condição necessária.




De orelhas em pé - X

Oiço na TSF que vai ser finalmente interpretada, por uma orquestra, a mítica peça de John Cage 4'33'', de 1952. Para quem não saiba, 4'33'' é uma peça composta por esse mesmo tempo de ausência de música ou, dito de outra maneira (mais consentânea com a ideia do autor), 4 minutos e 33 segundos em que os músicos não tocam.
A peça vai ser tocada, creio, pela Orquestra Sinfónica de Londres na próxima 6ª feira, e o repórter TSF não resistiu a comparar esta execução programada com a projecção de "Branca de Neve" de João César Monteiro. Genialidades à parte, as diferenças são imensas e convém ressalvá-las:
- Não consta que parte ou o todo do trabalho de composição de John Cage tenha sido suportado pelo erário público, e se tal acontecesse nem faria grande diferença. Mesmo considerando que, proporcionalmente, os orçamentos dos EUA dos anos '50 e de Portugal dos anos '90 eram muito diferentes;
- John Cage passou o resto da sua vida a teorizar sobre a obra, em múltiplas entrevistas, palestras, etc. Uma das formulações favoritas (e a referida pela TSF) é a de que estaria a tentar mostrar às pessoas que o que elas ouvem é ruído, mas muitas outras há, bem menos cretinas e abstractas;
- J.C. Monteiro, instado a pronunciar-se sobre a sua obra à saída da estreia, largou um "...eu quero que o público se foda!" que correu mundo. O mesmo público que lhe pagou o filme e, se calhar, a exibição.

sexta-feira, janeiro 09, 2004

SUGESTÃO DE FIM-DE-SEMANA

"Isto o tempo passa a correr!", dizia o meu vizinho de 98 anos. E tinha razão. Já é sexta-feira outra vez... Como eu me apiedo daqueles que, por força da sorte madrasta que enforma as suas vidas, não podem usufruir de uma existência feliz e glamourosa como a minha, deixo-vos mais uma sugestão para o fim-de-semana que se avizinha, partindo das palavras desse artífice maior da música popular britânica: Stephen Duffy. Sim, esse mesmo, que já respondeu por Stephen "Tin Tin" Duffy por alturas do fantástico "Kiss Me" e que teve a coragem de virar costas (salvo seja) ao sucesso comercial, abraçando o bucolismo com os The Lilac Time.

MADRESFIELD



Pavilion in winter
"Ó Laura, trazes-me um cházinho?"
The turnstile getting colder
Sou capaz de passar horas nesta estufa
The cricket ground is empty
Enquanto o resto da casa vai caindo aos bocados
And Madresfield is sleepy
Se não tivesse estourado a herança em putas
Sleep beneath the snow
Ainda podia passar férias na neve...

How come no one told me
Gosto da estufa porque é quentinha
That killing time is harmful
E a Laura fica mais desinibida
For time cannot recover
A sopeirinha não é tão jeitosa como outras que aqui vinham nos tempos de fausto
And soon the ground will offer
Mas com o Cobrador de Fraque à porta
Sleep beneath the snow
Não me apetece sair à procura de melhor

These things I can remember
Nunca me lembro de regar as plantas
Like municipal ironwork
E os vizinhos queixam-se do meu gosto pela "natureza morta" que lhes invade o jardim
The hand-me-downs that clothe you
Mas no meio desta densidade putrefacta ninguém nos vê
Are all that I know of you
E a Laura lá tira a bata
Soon sleep beneath the snow
Gosto do contraste entre as suas alvas carnes e o tom esmaecido das folhas mortas
And in sleep we will know
Quer dizer: gosto mesmo é das suas alvas carnes, que as folhas é como o outro...

Pavilions in winter
"Então o caralho do chá, ó Laura? Essa merda demora muito?!"
The turnstile getting colder
Deve pensar que é fácil passar as tardes aqui sentado...
The cricket ground is empty
Isto dantes não era assim! As festas... As gajas... As drogas...
And Madresfield is sleepy
Agora só arranjo comprimidos para dormir, com a devida receita médica
Sleep beneath the snow.
Será que compensa despedir a Laura e ir para Aspen?...

The Lilac Time, Astronauts




Alambridatia, 4

(vagamente inspirada pelo meu casadoiro favorito, que já deixou saudades)

(ao telefone)
- Sim?
- Foi tão bonito...
- O quê?
- O que me mandaste. A mensagem.
- Ah! Obrigado...
- "...levo-te ao infinito depois das 20:45..."
- ...
- Sabes, vesti aquela lingerie de renda que me ofereceste...
- Ficas de morrer com ela.
- ... e abri uma garrafa de "Tapada de Coelheiros". Está a arejar em cima da lareira. Quando cá chegares já deve estar no ponto exacto. Estás à espera de quê?
- Desculpa, mas só depois das 20:45.
- O quê???
- Eu disse-te...
- Está bem, mas era uma expressão poética, porra!
- Não era nada. É o Benfica, na Sport TV.

quinta-feira, janeiro 08, 2004


Alambridatia, 3

- Diz-me uma coisa bonita.
- As coisas que eu podia dizer...
- Tenta, vá lá.
- Podia dizer como me dói o peito, inchado de amor por ti...
- ...
- ... de como me vejo um viajante, errando pelos montes em demanda da mais bela criatura que pisa a terra.
- Tão... lindo...
- De como me apetece subir ao mais alto cume e gritar o teu nome ao vazio.
- Bem...
- De como és o meu secreto e fresco vale, onde descanso e me exalto.
- Vale?
- De como bebo em teu olhar o leite que alimenta o meu sonho.
- Olhar, né? Ouve lá, tu gostas de mim ou das minhas mamas?
- Disparate! Onde é que foste buscar essa idéia?

terça-feira, janeiro 06, 2004

NÃO SEI DIZER



O que é que se pode dizer a uma pessoa que perde alguém? Parece-me um bocado ridículo dizer que "sentimos muito" a morte de alguém a uma pessoa que, de certeza, a sente muito mais do que nós. Apresentar "condolências"? É mesmo possível dividir essa dor e partilhá-la?

A ausência definitiva de alguém deixa-me sempre perante a ausência das palavras certas. E é um momento em que eu queria ter essas palavras certas, palavras que fizessem bem e que preenchessem um bocadinho de uma falta que, simplesmente por ser falta, é sempre irreparável.

Se eu fosse crente, isso seria porventura mais fácil. Ou antes: seria mais fácil, sim, se a pessoa que perdeu alguém fosse crente e aceitasse esse paliativo de que quem morre parte para um sítio melhor. Mas desde que ouvi uma criança de 6 anos contrapôr à frase "O teu avôzinho foi para o Céu." a crueza realista da expressão: "Não, não! O meu avôzinho está numa caixa debaixo da terra!" parece-me generalizada a convicção de que os mortos apenas se perdem e se arrumam.

Como ninguém sofre da mesma maneira, fico sempre receoso de não saber corresponder no momento em que uma pessoa de quem gosto perde alguém. Precisam de mim? Precisam de espaço? O que é que representam as palavras ou os gestos ou as presenças ou as flores? Claro que sofro com a ideia de que estão a sofrer mas, se o demonstrar, não os vou carregar com a culpa desse "sofrimento solidário"?

Qual é o comportamento, quais são essas tais palavras certas que só parecem estar ao alcance das pessoas com mais de 60 anos e muitos funerais no activo? É que me angustia, às vezes, não as saber - e angustia-me a possibilidade de não as ter dito há 14 anos, quando a minha mãe perdeu a sua mãe; há menos tempo, quando a A.M. perdeu as suas avós; ou ontem, quando o P. perdeu a única avó que conheceu. Queria ter sido o filho e o amigo de que precisavam e não sei se fui.




Diálogos de Amizade, 4

- Amo-te…
- Quem dera fosse verdade!…
- Mas é.
- Não é. Não pode ser.
- Ora essa!
- Sabes definir o amor? Sabes os seus limites, os seus disfarces, os seus enganos?
- O amor não se presta a perífrases, é endémico do sentir.
- Precisamente. Só o facto de sentires necessário verbalizá-lo dessa forma trivial denuncia a sua falsidade.
- Queres dizer que quem ama não pode declará-lo?
- Não precisa. O amor é um estado, não é uma força.
- Então porque raio existe a palavra?
- Para satisfazer os pobres que são incapazes de o sentir. É como uma imagem de Deus.
- Achas-me assim tão vã e perdida?
- Não. Acho que me prestas uma homenagem exagerada. O que sentes por mim é uma amizade, tão intensa que achas necessário promovê-la.
- Hum… acho que não. Acho que não quero ser tua amiga.
- Isso é uma reacção natural. Sentes-te exposta e embaraçada com a minha racionalização, mas quando pensares bem nisso vais ver como eu tenho razão.
- Nada disso. Não quero ser tua amiga porque os amigos não se fodem uns aos outros.

segunda-feira, janeiro 05, 2004



De orelhas em pé - IX

Chuva de objectos incandescentes alarmou habitantes da Península Ibérica. Em Portugal, as chamadas para os Bombeiros sucederam-se, de Ponte de Sôr a Viana do Castelo. Responsável do Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica identificou os objectos como sendo meteoritos e classificou o fenómeno como "natural". O porta-voz da Embaixada de Marte em Lisboa, porém, deu uma versão diferente dos acontecimentos: "É para vocês verem se gostam que a gente despeje lixo sobre o vosso planeta".

sexta-feira, janeiro 02, 2004

SUGESTÃO PARA O PRIMEIRO FIM-DE-SEMANA DE 2004

Agora que começa mais uma sucessão de 365 dias (com um de bónus, neste caso) a que se convencionou chamar ano, redobra-se o empenho com que aqui se divulga, à sexta-feira, a obra dos grandes nomes do lirismo cantarolável que teimam em escrever em estrangeiro e que eu, com modesto mas determinado esforço, vou traduzindo, permitindo às crianças que ainda não dominam "o estrangeiro" - essa língua manhosa - o contacto com grandes pérolas da literatura do nosso tempo.

Hoje, o homenageado é Tim Bowness, esse senhor que, armado de voz frágil e belíssimos poemas, ajudou a fazer dos No-Man um dos grupos pop mais importantes e injustamente ignorados dos anos 90.


DAYS IN THE TREES - MAHLER



the rain fell soft
Tinha que ser sempre tudo como tu querias...
on the green and distant fields.
Quando se te meteu na cabeça a mania do campismo selvagem,
I saw you run
De tanto valeu eu acenar com as previsões do tempo como nada.
to the shelter of the trees.
"Anda lá, 'mor. Apetece-me fazer amor ao luar."... pfff!

I stood alone
Claro que os preparativos sobraram para o burro do costume.
with weeds and broken bricks -
Tu só controlavas: "E o fogão? E os medicamentos? E as minhas malas?"
my pale fingers curled
"E o repelente de insectos? E a rede-mosquiteiro? E a esteira de palhinha?"
round blades of autumn grass.
E eu lá ia carregando e pensando se a tal foda ao luar valeria o esforço...

I heard your feet crack earth and branch
Enquanto eu montava a tenda, tu foste passear...
but you were covered by the leaves.
Aí estava a amiguinha da natureza no seu elemento!... pfff!
I shouted out and called your name
Nem numa cidade te orientavas, quanto mais no mato.
but you were hiding in the trees.
E lá tive eu que ir com o Petromax à tua procura.

days in the trees.
Natureza o caralho!

You rubbed the sleep from my tired eyes
Com o cagaço que apanhaste por te teres perdido, mal chegaste à tenda começaste a roncar.
and let the real taste of God
E chovia e a lona da tenda estava molhada e o saco-cama cheirava a mofo
change the colour of my thoughts.
e não havia luar nenhum - só os teus roncos a cortarem aquele negrume.

I was draining the heaven
Naquele momento, o meu T2 em Belas parecia-me o céu...
from the warmth of your breasts;
Um fim-de-semana que podia ter sido passado em casa, na cama...
lighting fire on the stone.
Estava a ser perdido num descampado onde nem te podias lavar por baixo.

I tore at the seams
Ainda assim, o teu entusiasmo sobrevivia, de manhã.
of my smooth and laundered clothes
"Comprei umas coisas giríssimas da Camel assim p'ra trazer p'ró campo!"
and ran to the trees
Mas foi sem roupa nenhuma que lá pagaste a promessa... e se pagaste bem!
racing naked against the day.
Ficaste com as costas cheias de caruma - bem feito!

days in the trees.
Natureza o caralho!

the ascent to your heaven,
Para a menina poder ver uma abetarda, lá tive eu que desmontar tudo sozinho...
spending days in the trees.
Uma mísera foda em dois dias de martírio!... Pfff!

(I can't stand him laughing at us)
(E eras tu que te rias quando eu falava em fins-de-semana em Monte Gordo!... Pfff!)

No-Man, Lovesighs: An Entertainment

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