segunda-feira, maio 29, 2006 |
José Manuel Amaral de Freitas (1958-2006)
Quaisquer que fossem, as minhas palavras não seriam suficientemente poderosas para prestar devido tributo ao Confinhas.
Escolhi, por isso, um poema de Pessoa, que imagino possa transmitir muitos dos sentimentos que o nosso Amigo Confúcio experimentou nas últimas semanas.
Fernando Pessoa
Temor da Morte
Quarto Tema
I
Que a morte me desmembre em outro, e eu fique
Sinto um tropel esfuziante e quente
II
... só um sentimento
III
Ah, o horror de morrer!
IV
Gela-me a idéia de que a morte seja
V
...gela-me apenas, muda,
VI
Mistério, vai-te, esmagas-me! Ah, partir
VII
Não é o horror à morte, porque raie
VIII
O animal teme a morte porque vive,
IX
Medo da morte, não; horror da morte.
X
... ao condenado
XI
Ah, não me ofendas com palavras vãs
XII
Só uma cousa me apavora
E nessa hora em que eu e a Morte
Envolvei-me, fechai-me dentro em vós
Jamais morrerás aqui, querido Amigo!
Até sempre.
terça-feira, maio 23, 2006 |
isto
i.
vale talvez a pena dizê-lo
mas muito menos que experimentá-lo
(pensá-lo é espúrio,
(d)escrevê-lo, o maior dos erros,
calá-lo, virtuosamente calado,
é garantir-lhe a perenidade)
ii.
um dia de sol e vento
bonito, normal
e tudo pode soçobrar
urgindo
iii.
o susto de alguns tempos verbais
e questões conexas
é conservante
último.
silêncio
das palavras todas dizendo o mesmo
na mercê de uma voz
articulado ou mudo
isto
é onde existo agora
segunda-feira, maio 22, 2006 |
Salary-man
o chefe
vénia
bom dia, chefe
vénia
o chefe olha de soslaio para o meu fato da Tokyu Store
vénia
releve, chefe
amanhã trago outro
amanhã trago o dos casamentos
os mais novos vestem-se melhor, não é, chefe
também..
não pensam noutra coisa
vénia
vou buscar um chá
o chefe quer um chá, com certeza
o melhor chá que eu puder preparar, chefe
os mais novos preferem café, não é, chefe
não sabem o que é bom
o chefe é que a leva direita
vénia
os mais novos acham que os estudos contam muito, não é, chefe
mas depois nem sabem onde é que se põe o carimbo
que eu nunca vi ninguém carimbar como o chefe
vénia
a precisão, o rigor da aplicação
mãos de ouro, chefe
como já não se fazem
vénia
está aqui um clip no chão
eu apanho, chefe
não se mace
vou só arquivar umas facturas
depois vou-lhe comprar tabaco, chefe
se manda um dos mais novos ainda lhe trazem a marca errada, não é, chefe
que eles agora fumam qualquer porcaria
até a droga!, quem sabe
ele ouve-se p’raí tanta coisa...
e nem todos são tão sérios como os filhos do chefe
aquilo sim!
vénia
uma educação...
o rapaz do o-bento traz o almoço às 12h27, chefe
hoje há uma probabilidade de 20% de que chova à tarde, chefe
tomei a liberdade de lhe comprar um chapéu de chuva
...na com-bi-ni, chefe
...como reparei que não tinha trazido...
...ah... tinha um no carro?...
vénia
tem razão, chefe
vénia
fui estúpido e irreflectido
e trezentos ienes são trezentos ienes
vénia
gomenasai, chefe
eu não tenho emenda
vénia
devia pôr os olhos no chefe
malbaratar recursos é um vício
como os mais novos, que não pensam no amanhã, não é, chefe
ontem fui beber com eles, chefe
vénia
desafiaram-me...
ainda estão cheios de ideias
“se fosse eu que mandasse, fazia isto ou aquilo...”
sabe como é...
ainda não conhecem a cultura da empresa
falar mal do chefe?! não!! nunca!!,
nem eu deixava!!
ai daqueles pirralhos!!
punha-os na ordem!!
do meu chefe?!
vénia
ainda aqui está, chefe
já são oito horas
mas tem que ser, não é, chefe
a responsabilidade...
eu fico também, claro
os mais novos é que têm pressa de sair
pode ir, chefe
eu ainda fico e depois apago tudo
- menos o desconsolo de morreres sem uma única vez teres sequer pensado “aquele grandessíssimo filha-da-puta!!!”...
sexta-feira, maio 19, 2006 |
Poema com referências geográficas que quase ninguém conhece, o que ajuda ao exotismo e àquela ideia do poeta viajante e viajado
assalta-me em plena Hanabusayama
um destemido perfume de cerejeiras
que não morreu com as primeiras chuvas
puta que pariu as presenças intangíveis!
queria agarrar aquele perfume
como as tuas formas
e guardá-las incorruptíveis
em cuba inox
ou num jerrican de bom plástico
apareces de novo num corvo
na margem do rio Meguro
(ali como quem vai de Gotanda para Oosaki
do lado direito de quem segue para Shinagawa
ao pé de um restaurante antigo de tonkatsu)
como apareces num saco de plástico
que prevarica boiando na água
és tu, em tudo o que é belo ou não
(nos canteiros floridos de Hanzomon
como na sujidade nocturna de Okachimachi)
ah!, se visses por mim tudo o que és e não sabes...
todos esses defeitos menores e singulares
tão mais teus que as calmas virtudes
esses feios multiplicadores do encanto
(como a improvável beleza das ruas de Ebisu)
ah!, mostrar-te as nódoas que te alindam
esfregar-te a cara na verdade de ti
sufocares na tua graça, mínima e plena
e devolveres-me o ar
e as outras cores do mundo
(apareces num corvo porque outros pássaros não há
podias aparecer num caracol, dizendo ao espelho
“um dia, tu e eu havemos de foder”
mas o caracol não voa
a menos que o atires
com muita força
p’ra cima)
o teu passo é ligeiro quando desces a Takeshita
o peso de quem és carrego-o eu
de ti, conheces um nome e as cores que o dizem
mas há um castanho
esse castanho de castanho que se te agarra aos olhos
que só cabe em palavra nenhuma
- até porque eu, de oftalmologia, percebo pouco
quinta-feira, maio 18, 2006 |
A quase todas, menos a Miki e mais umas quantas cujo nome não vem para o caso
Japonesinha
o peito terraplenado
tal qual tens o miolo
joelhos convexos
pés que em repouso são cuneiformes
um oito nas pernas vistas de frente
cavalo-marinho de perfil
mãos delicadas e finas
relevadas as unhas
mala na curva do braço
sapatos feitos chinela
porte a que a roupa
- essa roupinha ocidental
embacia e deslustra
plácida como o olhar
não inquire
bem desenhados os lábios
- portão de luxo para um triste jardim de dentes
mínimo o nariz
como se o ar não fosse preciso
louvo-te o pescoço
delgado
tenso
longo
- belo suporte argênteo para uma floreira de fancaria
com roupa ou sem ela, o sentido do dever
e socialmente obrigada ao prazer
uma coisa te digo, japonesinha:
(ainda) não sei se te quero para minha
TETRAGRAMATON
Palmer Eldritch começou por ser uma toupeira. Através dos micro-implantes e dos interfaces neuro-cibernéticos instalados ilegalmente pelos neurocirurgiões alemães da Corporação Ziklon-B, o seu cérebro pôde transportar grande quantidade de software extremamente valioso, informação industrial e militar classificada através das fronteiras espaciais terrestres e descarregá-las nos computadores dos conspiradores sionistas, refugiados nas colonias mineiras abandonadas de Io. Os sionistas organizavam-se secretamente e conspiravam contra o Império Indo-Germânico, apostando poder um dia corromper o Império e urdir o seu fim, não pela via militar, mas atacando irremediavelmente a Rede, que geria desde as importantes bolsas de Varanasi e Berlim, ao mega-sistema de segurança e informações sobre os cidadãos imperiais. Mais eficiente que qualquer solução militar ou policial, tinha sido a monitorização e indexação pelo Império, com fins políticos declaradamente totalitários, de toda a informação disponível no primeiro século da Internet II, entretanto desactivada e transformada na Rede. Os sionistas forjaram um conjunto de programas que percorriam a Rede recolhendo informações cruciais sobre a sua estrutura básica para um dia a atacarem irremediavelmente nas suas próprias fragilidades. Socorriam-se do tráfico de software, com origem nos hackers da Rede na Terra, para através de mercenários, as toupeiras, com Palmer, iludir a apertada vigilância dos scanners alfandegários do Império e trazê-la para Io. O servidor principal dos sionistas localizava-se numa antiga mina de irídio já desactivada há muito pelo Império e a sua localização era o dado mais secreto entre todos. Munido de diversas fontes autónomas de energia e completamente desprovido de comunicações de rede com o exterior, este computador, correndo em Linux, tinha estado desde sempre isolado e continha todo o resultado do tráfico e da elaboração que dela faziam os informáticos sionistas. O cerne do software que esperava estar completo para, uma vez em contacto coma Rede, a destruir rapidamente, era conhecida como – Os Protocolos. A informação era tratada de modo não-convencional, através de computação neuronal no cérebro de indivíduos dotados de interfaces neuro-ciberneticos e implantes de software no cérebro, análogos aos das toupeiras. A informação era processada e programada no subconsciente dos indíviduos, escolhidos pelos sua capacidade de meditação ióguica profunda – os neuro-sidhis tipicamente antigos monges budistas, místicos cristãos ou mestres sufis. A maturação do software no processo de computação bio-informática era baseada no percurso ióguico clássico, Ida e Pingala dos Sete Chackras, começando no Chackra-base, o Muladhara, até atingir, já pronta para download, o Chackra Coroa – O Sahasrara – O Lótus Violeta das Mil Pétalas. Por fim, após um processo de compilação para a arcaica, mas robusta e segura linguagem Javascript, a informação era criptografada e armazenada no servidor, acrescentando-se assim aos Protocolos. Palmer estudara meditação Kundalini com mestres indianos e neuro-computação com os neurofisiologistas do CALTECH e tornara-se, também ele, um mestre neuro-sidhi. Os níveis profundos do absoluto silêncio e quietude da mente, a união sujeito-objecto i.e. observador e observado e a dissolução da dualidade pessoal entre o ego e o Mundo, para atingir e residir em beatitude na sede da alma pessoal – o Atman - foi o primeiro passo. “Atman é Brahman”, lera nos textos de Advaita Vedanta, ou seja a alma do homem e a alma universal - Deus -são idênticas. A alma imortal do homem é consunstancial e identica a Deus, que reside, para lá do Ego e da Personalidade, no mais íntimo do coração do Homem. Palmer levou as práticas meditativas ao limiar da Iluminação, do Nirvikalpa Samadhi, ou do Mahaparanirvana na terminologia budista e tornou-se um homem santo - um arhat. Ao reconhecer a sua própria identidade como a do Deus Uno e Absoluto, deixou cair a ilusão do Ego, mas os liames de lealdade com a organização sionista persistiam. Seria lícito levar Deus a executar as computações? Nunca ninguém ousara tão absoluta e sacrílega experiência. Ligou os interfaces neuro-cibernéticos, sentou-se em Padmasana e meditou profundamente. Tinha agora a plena e perfeita consciência que as computações dos Protocolos eram processadas pelo abismo do Vazio Absoluto e esperou. O software veio quase acto contínuo e era agora uma pura emanação divina, uma teofania de zeros e uns, infinitamente resplandescente, quase insuportável, que vibrava na sua cabeça e que era afinal o Universo inteiro. Vira a face do Senhor em Javascript.
Na sala da transducção, os peritos entreolhavam-se. O software mais precioso alguma vez obtido estava ali, à sua frente e fora baptizado Tetragramaton, como o santo, indizível e secreto nome de Deus. O servidor foi ligado à Rede. Altos dirigentes sionistas reuniram-se também na sala. O rabino Jerod, o mais venerando ancião da secreta organização, recitou uma breve passagem talmúdica e premiu “enter”. No monitor do servidor surgiu, em fundo azul um singelo texto:
“O trono de Deus e do Cordeiro estará na cidade e os seu servos hão-de adorá-lo e vêlo face a face, e hão-de trazer gravado nas suas frontes o nome do Cordeiro. Não mais haverá noite, nem terão necessidade de luz da lâmpada, nem da luz do Sol, porque o Senhor Deus irradiará sobre eles a sua luz e serão reis pelos séculos dos séculos.”
Nesse momento, simultaneamente em todos os computadores da Terra, que sem excepção corriam em Windows Vista CCXVI, surgiu uma mensagem no interior dum rectângulo: “A fatal system error in occured in imp4@.sys.dll: error 654 . Bios corrupt - no system disk”. E nesse dia o Império teve o seu fim.
FIM
quarta-feira, maio 17, 2006 |
Ode a uma discreta filipina
- ou uma descida aos infernos do neo-realismo pós-modernista
à Amy
ou lá como raio se chama ela
ou para a outra…
Monica, não era?
aquele senhor ali quer falar contigo
sim, esse
o gordo
o do fato amassado e pasta na mão
vai, então
senta-te bem perto dele
as tuas costas convidam o seu toque
e ele aceita
a tua perna destapada toca o tecido ordinário
das calças mal cortadas
dá-lhe de beber, com urgência
e ele que beba depressa que
esse não interessa
é só um dos sozinhos – não vai pagar a escola da tua filha
nem ao menos a conta do telefone
não; esse é dos que volta para casa
e olha para a mulher que tem na cama
(com as pernas tortas e princípio de sifose)
e lhe vira costas
e se fecha na casa de banho a pensar em ti
agora vais fingir que te apetece cantar
mal começas e apetece-te mesmo
são três minutos de harmonia
sozinha
sabem-te bem as palmas das colegas
- breves tréguas nas rivalidades do deve e do haver
está ali um grupo
és o “main request”
já são da casa
o mais novo, o que tenta chegar com a mão onde não deve, dizendo
do teu vestido ser uma estrada de seda
o careca, que se acha valente por te dizer “punha-te um bocado de wasabi na senaita…
ias ver o que era gozar!”
o chefe, emaciado e com outros interesses
todos os porcos que odeias sorrindo
porque sabes que não te fodem
- nem que eles se fodam
o teu corpo ainda é teu
só concessionas algumas partes
e alugas o sorriso e a conversa
essa alegria de pacotilha
em língua que não é tua
é o dinheiro
ou a verdade mais surda
também eles são companhia
um estrangeiro
americano? não
menos mal, ainda assim
os estrangeiros costumam estar sozinhos
de estado civil
acende-lhe o cigarro
deixa cair a piada sobre o isqueiro que tiras do decote
conversa, encontra conversa
“estás vermelho. é da bebida?” – já te saíste melhor
“não. é dermatite seborreica.”
isto é o que tu menos queres
a honestidade é caruncho, num mundo destes
dói-te mais a cara por trás da máscara
mas que o sorriso não se apague
mantém o aprumo
pede uma bebida – ele é estrangeiro, pode pagar
até que lhe tocas instintivamente
espantada pela falta de esforço
pelo repentino repouso
mas já passaram os minutos da ordem
há outra mesa para ti
mais tarde
esmagas no algodão os traços da noite
inteira
vês o que fica de ti
agora, que não fazes companhia,
estás sozinha
e não achas préstimo ao teu corpo grácil e firme
na cama ainda por fazer
- e se te custava alguma coisa puxares o edredon para cima quando te levantas...
terça-feira, maio 16, 2006 |
- uma série que, como as outras, terá uma continuidade muito relativa
“urbanizamo-te”
Coa-se densa a luz tardia.
A esta luz ou a luz nenhuma
cada dedo da tua mão tem a tua idade.
Eu amo cada dedo da tua mão.
Tenho planos para o teu corpo.
Quero loteá-lo e em cada pequeno lote
deixar marcos geodésicos
marcando cada um o centro de mim.
Deixa crescer impune esta tirania
aceita os arruamentos que eu traçar.
Tenho planos para o teu corpo, eu
- do saneamento trata-se depois!, esta paixão é demasiado nova para se gastar em obra que não se vê...
Esse corpo é o meu espaço
agora. Há que organizá-lo
sinalizá-lo
cartografá-lo
todo ele eu mas percorrido com certezas.
Ao Norte a cabeça, Sagres no pé direito
para o esquerdo, Vila Real de Santo António.
Os bairros das regiões lombares são os mais finos.
No ventre, qualquer coisa como o Parque das Nações:
ninguém quer saber o que lá esteve antes.
E nisso tudo vivo eu, eu – só
o teu papel é o de terra que mexe
como a terra do Japão que estremece centos de vezes
ao dia!
(estremece, estremece com força!,
outras rachas não abres que não
...essa
estremece p’raí
a ver se eu me importo)
Um sonho táctil
de tu seres solo e eu condomínio
fechado
em ti.
Na branca ditadura
da luz cega do meio-dia
cada dedo da tua mão tem a tua idade.
Eu amo cada dedo da tua mão.
- só não sei se teria planos para o teu corpo
se roesses as unhas até ao sabugo...
domingo, maio 14, 2006 |
FÁTIMA
Faltavam ainda umas quatro horas para o Papa chegar e presidir à missa e depois à Procissão das Velas. Muita gente já se acotovelava junto à Capelinha das Aparições. Na fila da frente estava um gajo com uma enorme cruz de madeira que dizia “INRI” e “Jesus Salva” – “Baixa cruz, ó camelo! Que não vemos nada!” – Diziam uns cá atrás, entre duas goladas de tinto dum garrafão de palhinha. Estava calor e para não perder o lugar, uma mulher abriu as pernas, levantou ligeiramente a saia e mijou em pé mesmo ali. A poça de mijo correu num fio sobre o macadame do Santuário até que uma freira reparou no que estava a pisar. Presciniu-se e disse alguns impropérios para dentro, olhando em volta com raiva, para ver se percebia quem tinha feito uma coisa daquelas. É certo que já cheirava bastante a urina e a suor velho. Uns padres andavam atarefados num palco provisório, onde surgiria mais tarde o Santo Padre. De cada vez que alguém de sotaina surgia, a multidão inquieta ululava visivelmente e havia um zum-zum que subia de tom. – “O gajo só vem às nove, pá. Estes são os ajudantes. Tenham calma...” – Dizia um para a geral. Cá atrás não se via bem por causa da cruz e continuavam os protestos: “Baixa a cruz, cabrão que não vemos o Papa, carago!...” E desataram a atirar objectos à cruz. Primeiro foram umas embalagens de iogurte vazias, umas velas, depois meia sandes de túbaros em pão regional e finalmente uma algália cheia, subtraída a uma doentinha que ali estava para Benção. – “Olha, vão para o caralho, cabrões!” –Dizia o da cruz, virando-se para trás e fazendo um gesto fálico com uma das mãos e agarrando os tomates com a outra, abanando-os na direcção dos outros. – “Isto foi uma promessa, caralho! E vim com a puta da cruz às costas desde Penajoia! De joelhos, ò filhos da puta! Qual é a vossa fé, foda-se, ó cabrões? É uma pôrra duma cruz! Haja respeito, pá!.. Francamente.” “Um, dois, ahhhh...experiência” – Dizia um padre ao microfone. Uma mulher teve um chilique com o calor e começou a revirar os olhos. – “Façam espaço, façam espaço, deixem entrar o ar” – Mas ninguém se moveu um milímetro para não perder o lugar. – “Chamem a GNR!” – “Mas a GNR para quê? Ela precisa é dos bombeiros ou do médico!” – “Eu vou chamar um padre, esperem aí” – “O médico da cabeça já lhe tinha dito que não se podia irritar, caralho! A culpa é daqueles cabrões que a irritaram! Deviam era ser todos enforcados no alto daquela árvore!” – Disse o marido aos gritos, referindo-se às azinheira das aparições. – “Ela está é com uma ganda bebedeira pelos queixos!” – Gritou o da cruz lá da frente. O marido transido de fúria, com a face rubra e a espumar, desatou ao soco e ao pontapé a toda a gente abrindo caminho por entre a densa multidão, em direcção ao da cruz. Uma freira pontapeada pelo furibundo marido gritava agarrada a uma canela: - Ai, ai, ai! Acudam, senhores, acudam!” – “Pôrra, nem as freiras escapam, mas o gajo ofendeu-lhe a mulher, não é? Nota-se que é uma pessoa nervosa. Se fosse comigo fazia o mesmo.” – “Eu fodo-os, eu fodo-os!...” - Dizia, fora de si, o homem que estrebuchava e empurrava toda a gente violentamente para se aproximar da frente. O da cruz vendo que o outro se aproximava, teve medo e subiu a custo para o palco, com a cruz às costas. Veio logo um padre dizendo que tinha de sair dali, mas ele ignorou-o e fugiu em direcção à capelinha. Dois GNRs seguiram-no de pistola em punho. O marido da outra estava quase a alcançá-lo, mas o padre e os GNRs agarraram-no. O outro tinha trepado azinheira acima. Nisto alguém gritou do meio da multidão, a uns cento e cinquenta metros dali: - “É a Virgem! Ali na azinheira...Não! É Jesus! É Jesus que está na azinheira! Uns ajoelhavam-se e rezavam. Outros lançavam os braços ao céu num estertor de comoção; doentes tetraplégicos arremessavam as muletas e começavam a andar. A multidão forçou as guardas do palco em torno da capela e dirigiu-se extática para a azinheira, onde foram repelidos pela GNR com tiros para o ar e pelos padres armados com os suportes dos microfones e com a cruz do outro. Chegaram reforços e em vinte minutos estava tudo mais calmo. O passa-palavra entre a multidão foi suficiente para inteirar a maioria das pessoas do que tinha acontecido: - Jesus tinha aparecido na azinheira, em vez da Mãe, para a defender dos comunistas, mas como a GNR o tinha tranquilizado “que em Fátima, não lá havia nenhum comunista”, ele voltou para o Céu.”
Á noite, luziam milhares de velas e a multidão unida em cânticos de oração, expiava os seus pecados.
FIM
sábado, maio 13, 2006 |
OUTUBRO, 1917
Dimitri Fedorov Iuchenko aproximou-se do velho mujique. Fez um vago gesto de saudação, o idoso retribuiu entre dentes e cofiou a barba. – “Sabe, eu procuro a estalagem. Pode dizer-me onde fica?” O velho soltou vagarosamente uma fumaça do cachimbo e retorquiu – “Ali por trás, na perspectiva Ilianovich” Dimitri pegou na mochila e agradeceu – “Obrigado, tovarich”. Cruzou a avenida Ilianovich, passou apressado entre as carruagens e estugou o passo. Era o número cento e trinta. Todos os estudantes de humanidades da universidade de S. Petersburgo acabavam por vir parar à estalagem “O Samovar”. Longas noites de tertúlias filosóficas acesas, noite fora, arrastavam-se até altas horas por entre o fumo e os muitos copos de vodka. O debate entre os nihilistas mais radicais, os nacionalistas eslavófilos e os bolcheviques, descambava frequentemente em cenas de pancadaria, que a dona da estalagem resolvia correndo com os bêbados à vassourada: - “Não quero cá anarquistas! – Dizia ela , enquanto os desancava, atirando-os meio atordoados pelo álcool, para o meio da neve da avenida. É claro que era também ali que os estudantes anarco-sindicalistas reuniam, debalde as frequentes intrusões provocatórias e rusgas da polícia. Dimitri pousou a mochila num canto e pediu batatas cozidas e vodka . –“O meu nome é Dimitri Fedorov Iuchenko e escrevo peças de teatro, alguém me acompanha num trago?” – Disse para a geral. Do meio do bubrurinho, levantou-se Ludmila Fedorova Nicolaevna Bratiskaya Putchenka Andropov Komanechi Ataturk Turguneiev. –“Olá. Este é o meu amigo Vasili Rimsky Glinka Komarkov Alexandrovitch Tchevchenko Tibor Nicolaesco, ele tinha um avô romeno”. – Disse com um sorriso franco. Sentaram-se os três e ainda mais dois rapazes, um ruivo com borbulhas vestindo um grosso capote de pele, e um de ar soturno e calado. Nós somos delegados ao Congresso do Partido, mas isso é muito ilegal... e se dizes uma palavra cortamos-te o pescoço!” – Disse, meio a rir, o ruivo. Apertou-lhe a mão com força e apresentou-se: - “Chamo-me Evgeni Tadeus Armen Milankovitch Taktajan Eisenstein Fedorov Scriabine Dimidovitch Suckachev Raskolnikov e este é o meu amigo Zé Tó, “ O Bilhas”, para os amigos. Bebamos, camaradas!” - Ludmila rastejara para debaixo da mesa e deglutia, com gula, o tarolo de Dimitri, enquanto se borrava copiosamente no chão. O hábito burgês de comer caviar beluga ao desejum, almoço e ceia, desarranjava-lhe os intestinos. O rabo efectuava um movimento de translação lateral, lubrificado pelas fezes ralas e esverdeadas e propelido pela poderosa expulsão de fezes liquefeitas. Vasili escorregara, enquanto se ria, bêbado, também para debaixo da mesa. Levantou a custo uma das pernas do móvel, lubrificou-a com o bolsado de Evgeni, que entretanto estava desacordado a babar uma espuma branca, que pingava viscosa mesmo sobre Vasili, e introduziu no anús mais de metade. – “Porra que já tenho o cu quadrado, mas gosto tanto disto...”. Ludmila, de olhos semi-cerrados, desgrenhada, mas exibindo um sorriso franco de grande satisfação exclamou – “Arre que o gajo tinha os colhões mais cheios que os dum burro! Até esguichei pelas orelhas, pá...”. O pior é que o gajo, quando lhe estava a coçar a crica com a laringe, veio-se e arrotou por baixo ao mesmo tempo! Foi cá um cheiro... – “Ah, mas onde está ele?” – Perguntou Zé Tó, enchendo o cachimbo. – “Está a enrrabar o Vasili que está bêbado e vomitado. Não dá por isso”. Debaixo da mesa, Vasili gemia sob as investidas de Dimitri que lhe zurzia o anús com brutalidade, arreganhando-lhe as mucosas e os pêlos pubicos vários centimetros pelo recto dentro. Ludmila, saira brevemente e voltara com uma navalha de barba e sabão, levantou a saia e pôs-se acocorada a rapar os pêlos que sacudia de vez em quando. Argamassadas com sabão, as pastas de pêlos eram projectadas para cima dos vizinhos da mesa do lado, atingindo mesmo alguns copos. Um de barbas negras franziu o sobrolho, mas limpou a porcaria e deglutiu o vodka dum trago. – “Uma gaja tem que cuidar da higiene” – Disse ela a guinchar estridentemente e a rir. – “Estou mal disposto. Tenho de ir apanhar ar” – Disse Vasili a gemer, e saiu pela porta da estalagem aos caídos e tropeções. Pôs-se a invectivar o Governo aos gritos enquanto se urinava nas calças e brandia duas garrafas de vodka, uma em cada mão. Depois de vaguear sem destino uns minutos, acabou por adormecer junto a um monte de lixo, por trás dum vomitório e foi levado pela carreta da Câmara Municipal que percorria a perspectiva Ilianovitch. Ainda lá dentro, Evgeni fazia um ruidoso cunnilingus a Ludmila, com a barba cheia de candidíase. Zé Tó, “O Bilhas” enchia o cachimbo outra vez.. Os primeiros alvores do Sol raiavam já, róseos e alaranjados, sobre a neve calcada pelos cascos dos cavalos do Exército Vermelho que marchava triunfante sobre S. Petersburgo. Evgeni metia a hemorróida a custo para dentro e com risinhos trocistas, Ludmila voltava a puxar-lha para fora. Os canhões ribombavam ao longe e os tacões do bolcheviques, tonitroantes, marcavam passo na perspectiva Ilianovitch.
FIM
quarta-feira, maio 10, 2006 |
A TEOLOGIA QUÍMICA
Escrevi num transe durante seis dias, e o manuscrito tinha, depois de pronto, seiscentas e dezanove páginas. Foi uma espécie de escrita automática. Não fazia ainda ideia da natureza do texto que produzi naquela semana. A minha Teologia Mistica estava escrita, eu acredito, numa língua que não conheço – o grego demótico – e depois passei mais uma semana a traduzí-lo como um macaco em frente à máquina de escrever, ou seja sem saber o que fazia, batendo ao acaso nas teclas. Aparentemente tinha reproduzido, ao pormenor da vírgula, um texto de S. Dionísio Areopagita. Isto descobriu Timóteo sob a influência psicoactiva da Salvia divinorum, de uma dose tripla de Nembutal e uma lata de Patex ; e confesso que versado em línguas antigas era coisa que não imaginava que um segurança do Saldanha Residence fosse. Orgulha-se da sua glossolália crónica quanto volátil. Dizia-me que compunha poemas ora em minóico linear B, ora em acádico cursivo, ora em nabateu. Mas tomo-o por bona fide, pois não tenho mais a quem recorra neste assunto.Transcrevo aqui uma passagem deste texto que escrevi sob a influência de um cocktail do cogumelo Psilocibe cubensis (psilocibina), do cacto Lophophora wiliamsii (mescalina) e da liana amazónica Banisteriopsis caapi var. ovalifolia, rica em DMT. Ah, e ainda uns snifes de óxido nitroso, umas pastilhas de quetamina e um caldo que Líquido Coração. Tenho agora as minhas dúvidas se o texto é fidedigno, pois discrepâncias de estilo fazem-me suspeitar da autenticidade da minha recriação do discurso dionísico.
“Deus não existe, no sentido em que Deus é uma não-coisa; é impessoal e sem atributos, pois associar-lhe qualidades seria, por oposição aquelas antitéticas ou exclusivas das primeiras, reduzi-lo a um estado de finitude incompatível com aquele que é Uno, Absoluto e, enfim, tudo contém em Si mesmo. O Bem, o Belo e o Verdadeiro são atributos de um Deus, que por possuir assim personalidade, só pode ser, tão só, uma emanação menor do Divino, o Demiurgo das Escrituras. Assim como o Uno Absoluto se faz homem, a tempos, para se comunicar como Homem, também o Deus pessoal é Criador mas também criado. Por isso, o verdadeiro e absoluto Deus é inominável; por isso está imóvel e no entanto mas nada é mais célere que Ele. Através d´Ele escrevo estas linhas, vejo, ouço e penso os meus pensamentos. Através d´Ele correm os rios, ficam as pedras onde estão e cada ente na sua própria natureza. Ele é o substrato último do Ser, o Chão em que tudo assenta. No entanto, ele é o Vazio, o abismo da Vacuidade. Mesmo o Tempo, que criou ao ordenar a sucessão dos objectos, lhe é estranho, pois para Ele, os éons do princípio ao fim dos tempos são indistintos do Aqui e Agora eterno em que reside. A sua sede é a Eternidade e nunca a temporalidade. O Demiurgo, esse sim, vive na torrente da sucessão e como tal teve um íncio do tempo e como tal morrerá também, retornando à matriz inicial una e indivisível. Os objectos, os fenómenos não são entidades por direito próprio, pois nada o é. Mesmo alma imortal que que vive no Homem e é na sua centelha, idêntica a Deus, pois nada reside fora d´Ele. O que são as ondas senão o Oceano? O que é uma mossa no metal dum vaso? Onde está o colo quando me levanto ou o punho quando a mão se abre? (...) ilegível (...) Não gerado, não criado, inominável e pensá-Lo seria confiná-lo ao um conceito, uma finitude e como tal, Deus é também incomensorável com o humano pensamento. No entanto, é, no mais íntimo de nós, Ele que testemunha, silencioso e imóvel, tudo o que vemos, sentimos e pensamos. E nem ele nem nós somos os pensamentos nem as sensações. Não são estes distintos da matéria, ao contrário do fugitivo sujeito - a Testemunha que preside ao desfilar da sucessão quer dos objectos exteriores quer dos seus pensamentos, que no fundo, são ontologicamente indistintos e apenas o jogo da Matéria, animada em Deus. É portanto, obrigação do Homem reconhecer a sua verdadeira natureza divina, deixando cair a ilusão de que possui um Ego e uma personalidade. Como é incompatível com os limites e os nomes , apenas se pode apontá-lo directamente, e no íntimo do coração dizer: - "Tu és aquilo!"
Recebamos agora os estigmas do reencontro “.
O resto são sucedâneos sem interesse de transcrições canónicas e comentários ao Brydadaranyaka Upanishad e ao De Visione Dei de Nicolau de Cusa e ainda uma lista de compras do Continente.
terça-feira, maio 09, 2006 |
Geopolítica emocional
i.
Como ainda não pertenço, passo a vida em regressos. Regresso a Tomar, sempre; regresso a Lisboa, regresso a Tóquio. Nunca “vou” a um sítio onde tenha estado; “volto”, sempre. Ao contrário de outros que só estão bem onde não estão, eu estou bem em qualquer lado. Os espaços e as diferenças não me desorganizam, talvez porque nada haja que mereça a pena desorganizar. O que eu sou é tão em nada absoluto, um tão grande caos de probabilidades – e o mais delas mutuamente exclusivas… Desorganizar o quê?…
Estou bem porque não estou – em definitivo, ainda. A maior perspectiva de estabilidade que a minha vida agora me oferece sou eu; agarro-me a isso sem custo ou arrependimentos, não escolheria outra nem que pudesse. Se eu fosse um país, seria a Suíça: estável, sem grande assunto, mas encantado por existir. E com mais amigos que a Suíça, todavia.
ii.
Tal como a Suíça, tendo a acantonar-me. Mais ainda: ponham-me a guardar o Vaticano, se querem ver o que é discrição. Agora, não me peçam é para descrever o que sinto, ou o que sou, ou o que sonho. Eu sou eu; só me vê quem olha para mim – eu, eu olho sempre para os outros e só conheço o pouco que me espelham.
De quando em vez, há quem me cerque e invada. Quase sempre o papel cabe a “potências” que não dão por isso – ou dão por tal tarde demais, quando a devastada Suíça já só guarda o segredo bancário. Como um país, fico mais pobre; mas reconstruo-me com igual ou maior vigor. Fico mais novo, mas fico sempre menos eu do que era – de fatia em fatia até que se acabe o emmental…
iii.
Também podia ser a Birmânia.
Construir uma capital secreta, uma fortaleza de mim, cheia de pequenos amores-funcionários-públicos a que ninguém pede contas nem mede a produtividade, a que não se questiona a razão de ser nem o impacto no “utente”.
Pária, acossado, encasulado e sozinho; Myanmar orgulhoso com fé insana num destino bizarro… – mas não; pareço-me mais talhado para o micro-estado. Vanuatu, quem sabe; ou até umas Ilhas Buganvília libertas da opressão da Papua Nova-Guiné. Ou São Marino! Giro, queridinho, ali no meio de tudo, sempre em último nos Jogos Sem Fronteiras, a levar abadas de toda a gente nos jogos de qualificação para o Europeu mas subsistindo (com modéstia, se me permitem) alcandorado em penedos maiores que ele, em portentos de solidez, em tempo e sangue e história. É isso: quando for mais pequeno – e isto deve estar por dias… – quero ser São Marino. A improbabilidade da minha subsistência e da minha felicidade é gémea da improbabilidade de São Marino – existem, como pequenos milagres que passam ao lado de D. Saraiva Martins. (por falar nisso: psscht!, ó Deus!, pediram-me para te dar o recado: se és tu que mandas nisto, arranja aí o pbx dos amores, a ver se não se volta a ouvir nem a dizer “Desculpe, foi engano…”)
iv.
Ele há p’ra cima de 190 países, dizem-me. Eu podia ser/estar (n)eles todos. Eu basto-me, só preciso das pessoas para gostar delas.
“somewhere i have never travelled,gladly beyond
any experience,your eyes have their silence:
quinta-feira, maio 04, 2006 |
Fotogravura policromada impressa sobre seda; fotografada dum original da colecção Tampa (1901, Japão).
O JARDIM DE CHÁ DE CHANIWA
Sakura apressou-se com passinhos curtos e ajeitou o cesto do chá. Acercou-se mais da irmã. Hitomi sorriu graciosamente e continuou a colher com destreza, as tenras folhas do Sencha, colocando-as no cesto. A brisa suave fez voar algumas flores de pessegueiro na direcção do jardim de chá de Chaniwa. As duas irmãs soergeram-se brevemente para as contemplar e inspiraram o aroma perfumado e acre das folhas frescas. Ao longe, o sino do Templo da Felicidade Perfeita, ecoava no vale e as vozes dos artesãos da aldeia ouviam-se ao longe. O bruto Kenzo espreitava acocorado por detrás de um redondo arbusto enquanto esbrugava o tarolo insalubre. O prepúcio argamassado em esmegma de vários meses fazia um ruído rítmico -schleck schleck schleck - enquanto os chatos pululavam nos gordos alforjes do açougueiro da aldeia. As micoses das virilhas, vermelhas e húmidas de tanto as coçar, não incomodavam Kenzo, mas o pé-de-atleta estava assanhado e a hérnia inguinal balançava à medida que o gordo e suado Kenzo se manipulava com brutalidade. Com o entusiasmo, a face de Kenzo contraía-se num esgar caricatural e parecia um personagem de uma gravura de Hokusai. Os arbustos em redor estavam cobertos de gosma. Grunhia como um porco, quando, por detrás, levou uma valente paulada na nuca. Viu estrelas, olhou para trás e viu um fuínha em cuecas e chinelas que meneava um grosso bastão de bambú. O magro ancião vociferava desvairado com Kenzo. Era o velho samurai cego, tio das duas raparigas, que lograra descobrir Kenzo acoitado no jardim, manipulando-se como um primata tresloucado. Kenzo ria-se desbragadamente do velho exibindo os dentes podres. As raparigas surpreendidas, tinham pousado os cestos e riam-se dos dois tratantes: o tio perseguia o andrajoso açougueiro com o bastão enquanto o outro o fintava trocista, saltando de um lado para o outro. Mas o velho, com um golpe mais certeiro, acertou-lhe secamente na cabeça, o outro revirou os olhos e caiu redondo no chão. No caminho, sob os áceres passavam três mulheres, de cestos às costas, seguidas por dois rapazinhos que brincavam com espadas de madeira. Pararam brevemente e comentaram a rir que Kenzo precisava era de se refrescar no arrozal. Dito e feito, arrastaram com dificuldade o corpulento aldeão para dentro de um tanque de arroz - plof! Este acordou ao sentir o frio da água lamacenta e também com o esvoaçar assustado de umas graças que ali estavam. Mais tarde na taberna, entre golos de sake e risos, toda a gente troçava de Kenzo, quando entrou um façanhudo samurai ainda com a armadura e o capacete debaixo do braço. Deitou um olhar gelado em redor sem largar o punho do sabre. Todos se calaram e baixaram os olhos. O taberneiro desfez-se em vénias a tremer e conduziu-o a uma mesinha no canto da taberna. Bebeu dois tragos de sake e depois cuspiu para o chão de terra. Franziu o sobrolho em silêncio e o taberneiro tremendo serviu-o de uma garrafa que guardava na cozinha. - "Procuro um homem. Chama-se Kenzo." Todos olharam para o açougueiro e pigarrearam. Com os joelhos a tremer, Kenzo, disse - "Sou eu.. senhor..." enquanto se urinava pelas pernas abaixo em cima dos pés deformados pelos joanetes e as unhas sujas e musgosas. - "Queria um bife do acém, seis salsichas frescas, três bifanas, um chouriço de sangue, uma morcela de arroz, um bocado de fígado, meio quilo de carne picada, uma embalagem de conserva de pimentão e bofe para o gato". - Disse, enquanto comia de boca aberta, sorvia o ranho e espetava uma faca no tampo da mesa. - " As salsichas frescas estão um bocado picantes, senhor..." - Disse Kenzo. - " São mais frescas certamente que a tua que parece que não lavas á meses e andas a arrepelar nos jardins de chá, ah, ah, ah, ah, ah, oh, oh, oh, oh!" - Todos riram: ah, ah, ah, ih, ih, ih, oh, oh, oh!" - " E o fígado é de porco, não é de vaca, senhor..." - Disse Kenzo, a medo. - "A cona da tua mãe é que parece um bocado de fígado, ó varrasco, ah, ah, ah, ah!..." - Dise o outro. - " E o cu parece uma moela já mole, aqui da taberna, ah, ah, ah! O taberneiro riu-se nervosamente. - " Se me permite, a cu da minha mãe não parece nada uma moela, senhor. A mim parece-me mais um bocado de fressura, assim tipo torresmo do rissol..." - " Mais, assim tipo dobrada? Ou uma tripa enfarinhada já meio podre...não? - "Bom, enfarinhada está porque a pobre velhinha come muita farinha de arroz e aaquilo coagula-lhe na tripa aos três quinze dias. Está a ver? E depois para sair é que são o cabo dos trabalhos...Da última vez tive de lhe tirar o cagalhão à colher." Todos riram: - "ah, ah, ah, ah, ah, oh, oh, oh, oh, ih, ih, ih...". Havia um que se borrava todo de tanto rir e os outros correram com ele porta fora por causa do cheiro nauseabundo. - " Bom. Ó Kenzo, agora que já nos rimos vamos ao que interessa" - Disse grave o possante guerreiro. Kenzo tremia. - "Há bocado estava a brincar. Eu preciso é dumas febras." Kenzo engoliu em seco enquanto via o samurai desmbainhar lentamente o sabre. - " As febras tem um bocado de nervos, sabe?" - "Então, corta-me aí uns bifes do lombo, ou uma picanha, tens picanha, não tens?" - "Maminha de alcatra, tenho..." - "Pode ser" disse o outro. - "E fiambre da pá, tens?" - Kenzo engoliu em seco e disse: "N..não."
- "Não faz mal. Deixa lá. Levo antes um chouriço de carne extra". - "Este é especial cá da terra. Vai ver que não se arrepende, senhor". - Disse Kenzo. O que se tinha borrado voltava agora a entrar e disse: "Tenho ali umas alheiras de se lhe tirar o chapéu, se quiser...". Kenzo olhou-o com raiva, não se conteve e arrumou-lhe dois valentes bananos nos queixos. Um zarolho com uma faixa de pano em roda da cabeça aproveitou para partir uma cadeira nas costas de Kenzo e num segundo todos se envolveram à pancada na taberna. As raparigas que voltavam do trabalho riam-se tapando a boca com a mão delicada. O taberneiro, com dois olhos negros, disse - " Bom. Agora vamos é lá limpar esta merda toda, se fazem a fineza...". O samurai coçou os tomates alcatifados de pintelhos densos e negros. - "Mas e a minha alcatra?" - Disse. "A tua alcatra o caralho!" - Disse um lá do canto. Kenzo aviou-lhe com uma trave da porta no meio da testa e novamente se pegaram todos à pancada.
A brisa da Primavera ondulava no arrozal e ao longe dois monges cantavam ao Buda Amitaba, um repetitivo e grave nembutsu. Um cagalhão de cão, já sediço, acumulou-se no canto da casa de Katsushika, ao lado dum requintado bule de ferro onde o chá fervia esquecido pela velha Kazue, que tinha um problema na tróclea do fémur esquerdo.
FIM
terça-feira, maio 02, 2006 |
CHUVA NA CHARNECA DO LUMIAR
Não sou a mesma pessoa que foi o miúdo que ia à chuva, sozinho, no caminho da escola. Era uma hora cinzenta de sonhar acordado, de olhos nas poças de lama e no horizonte cinzento, que imaginava perdido, selvagem e vazio. A certa altura, no caminho, via-se o Tejo muito ao longe. Um remoto e lamacento sapal que luzia ao sol, às vezes, ao fim da tarde. Passava uma velha e arruinada vacaria. Passava a casa de uma bruxa com um pentáculo metálico na porta e os miúdos das barracas que me assaltavam os bolsos em busca de berlindes. Depois, uma vaga alameda com freixos. Num deles dei com força com um martelo de madeira daqueles de bater bifes. Fez ricochete e veio fazer um enorme e roxo galo na testa, que exibi perante a Dona Domingas, a professora. Senti tanta vergonha ante um auto-infligido acto de estupidez que acusei um rapaz já crescido mas mentalmente retardado, que não se soube defender e arcou com as culpas. Ainda hoje me arrependo e pedir-lhe-ia desculpas se me lembrasse sequer como se chamava. Uma sacholada na minha avó já expiei, quando lhe contei que me consumia desde os cinco anos com essa culpa. Ela, na cama e um dia antes de morrer disse-me que não tinha nada que me desculpar, pois ela não se lembrava de nada disso e provavelmente teria sido um sonho. Como me envenenou trinta anos uma culpa meramente sonhada…Depois, descia uma rua de escadas, muitas escadas e havia ao fundo, um grande terreiro. Cheio de lama. Lama boa para jogar aos ferros, ao pião na lama, andar ao soco e chegar a casa com um olho negro ou a cabeça a sangrar. O terreiro culminava num muro. Muito bom para a lagartixa. Elas apanhavam-se bem era com varetas de chapéu-de-chuva disparadas de arcos feitos também de varetas. E depois cozinhadas em latas velhas, junto com uns caracóis e umas ervas? Pitéus que obviamente ninguém comeria, mas que só o gozo de acender uma pequena fogueira justificava. Às vezes as lagartixas eram capturadas vivas e incólumes com fins náuticos. Mor de ser necessária tripulação para barcos de esferovite raspado na parede e que nadavam no tanques da roupa. No Verão floresciam na varanda as alegrias, translúcidas plantas, os cravos-túnicos amarelos e roxos; as begónias e as sardinheiras. Pondo um cobertor velho no ferro vermelho e redondo da varanda e prendendo com molas da roupa o outro extremo tinha-se uma bela casinha. Mais uma tenda. Acreditava numa espécie de fronteira com o desconhecido, sempre que os meus olhos alcançavam um qualquer limite. Podia ser o beirado do telhado. Para lá havia um abismo infinito e sem fundo, o caos o desconhecido, a Fronteira. Tanto assim foi que uma vez sonhei com uma gigantesca engrenagem oleosa suspensa no céu, por cima do beirado. E depois passei meses a esperar vê-la pelo canto do olho nesse sítio. Frequentemente sonhava com coisas no céu: luzes, imagens, coisas inverosímeis e artificiais. Mas nunca tinha visto um riacho ou um ribeiro e sonhava com isso. Uma vez vi uma cascata. Estava doente e chovia muito e eu á janela a ver cascatas de água lamacenta a jorrar de buracos nos muros de pedra para lá da quinta em frente; no caminho por baixo do castelo. Sempre gostei de chuva e dias cinzentos e vento também. O meu avô era guarda de uma obra e essa vez vi pernadas de árvores deitadas ao chão pelo vento; a caminho; pela mão da minha avó; ia-mos ter com ele com uma marmita com comida. A obra ficava ao lado da estância que também era um ferro-velho. O velho Mercedes do meu vizinho foi para lá. Outra vez, apanhei lá um ratinho.
FIM
Cidade by g2
E assim se chega à estação dos comboios – aproveito para informar que, neste momento, a estação dos comboios não fica nada a dever a qualquer outra. A zona envolvente está bonita e a própria estação também…
Depois, desço a Avenida pelo seu lado direito e…
E então o mundo cai!
Porque continuam a estar, à minha esquerda, as faixas de rodagem, só o separador central com os seus bancos e pista para BUGA’s parece indiferente a esta minha estranheza, em que uma coisa é agora o que não era há pouco e o que há pouco era aquilo, agora é isto! Bem sei que terra anda à roda, mas isto…
Como farei luz na minha maneira de ver o que é o quê?!