quinta-feira, maio 04, 2006 |
Fotogravura policromada impressa sobre seda; fotografada dum original da colecção Tampa (1901, Japão).
O JARDIM DE CHÁ DE CHANIWA
Sakura apressou-se com passinhos curtos e ajeitou o cesto do chá. Acercou-se mais da irmã. Hitomi sorriu graciosamente e continuou a colher com destreza, as tenras folhas do Sencha, colocando-as no cesto. A brisa suave fez voar algumas flores de pessegueiro na direcção do jardim de chá de Chaniwa. As duas irmãs soergeram-se brevemente para as contemplar e inspiraram o aroma perfumado e acre das folhas frescas. Ao longe, o sino do Templo da Felicidade Perfeita, ecoava no vale e as vozes dos artesãos da aldeia ouviam-se ao longe. O bruto Kenzo espreitava acocorado por detrás de um redondo arbusto enquanto esbrugava o tarolo insalubre. O prepúcio argamassado em esmegma de vários meses fazia um ruído rítmico -schleck schleck schleck - enquanto os chatos pululavam nos gordos alforjes do açougueiro da aldeia. As micoses das virilhas, vermelhas e húmidas de tanto as coçar, não incomodavam Kenzo, mas o pé-de-atleta estava assanhado e a hérnia inguinal balançava à medida que o gordo e suado Kenzo se manipulava com brutalidade. Com o entusiasmo, a face de Kenzo contraía-se num esgar caricatural e parecia um personagem de uma gravura de Hokusai. Os arbustos em redor estavam cobertos de gosma. Grunhia como um porco, quando, por detrás, levou uma valente paulada na nuca. Viu estrelas, olhou para trás e viu um fuínha em cuecas e chinelas que meneava um grosso bastão de bambú. O magro ancião vociferava desvairado com Kenzo. Era o velho samurai cego, tio das duas raparigas, que lograra descobrir Kenzo acoitado no jardim, manipulando-se como um primata tresloucado. Kenzo ria-se desbragadamente do velho exibindo os dentes podres. As raparigas surpreendidas, tinham pousado os cestos e riam-se dos dois tratantes: o tio perseguia o andrajoso açougueiro com o bastão enquanto o outro o fintava trocista, saltando de um lado para o outro. Mas o velho, com um golpe mais certeiro, acertou-lhe secamente na cabeça, o outro revirou os olhos e caiu redondo no chão. No caminho, sob os áceres passavam três mulheres, de cestos às costas, seguidas por dois rapazinhos que brincavam com espadas de madeira. Pararam brevemente e comentaram a rir que Kenzo precisava era de se refrescar no arrozal. Dito e feito, arrastaram com dificuldade o corpulento aldeão para dentro de um tanque de arroz - plof! Este acordou ao sentir o frio da água lamacenta e também com o esvoaçar assustado de umas graças que ali estavam. Mais tarde na taberna, entre golos de sake e risos, toda a gente troçava de Kenzo, quando entrou um façanhudo samurai ainda com a armadura e o capacete debaixo do braço. Deitou um olhar gelado em redor sem largar o punho do sabre. Todos se calaram e baixaram os olhos. O taberneiro desfez-se em vénias a tremer e conduziu-o a uma mesinha no canto da taberna. Bebeu dois tragos de sake e depois cuspiu para o chão de terra. Franziu o sobrolho em silêncio e o taberneiro tremendo serviu-o de uma garrafa que guardava na cozinha. - "Procuro um homem. Chama-se Kenzo." Todos olharam para o açougueiro e pigarrearam. Com os joelhos a tremer, Kenzo, disse - "Sou eu.. senhor..." enquanto se urinava pelas pernas abaixo em cima dos pés deformados pelos joanetes e as unhas sujas e musgosas. - "Queria um bife do acém, seis salsichas frescas, três bifanas, um chouriço de sangue, uma morcela de arroz, um bocado de fígado, meio quilo de carne picada, uma embalagem de conserva de pimentão e bofe para o gato". - Disse, enquanto comia de boca aberta, sorvia o ranho e espetava uma faca no tampo da mesa. - " As salsichas frescas estão um bocado picantes, senhor..." - Disse Kenzo. - " São mais frescas certamente que a tua que parece que não lavas á meses e andas a arrepelar nos jardins de chá, ah, ah, ah, ah, ah, oh, oh, oh, oh!" - Todos riram: ah, ah, ah, ih, ih, ih, oh, oh, oh!" - " E o fígado é de porco, não é de vaca, senhor..." - Disse Kenzo, a medo. - "A cona da tua mãe é que parece um bocado de fígado, ó varrasco, ah, ah, ah, ah!..." - Dise o outro. - " E o cu parece uma moela já mole, aqui da taberna, ah, ah, ah! O taberneiro riu-se nervosamente. - " Se me permite, a cu da minha mãe não parece nada uma moela, senhor. A mim parece-me mais um bocado de fressura, assim tipo torresmo do rissol..." - " Mais, assim tipo dobrada? Ou uma tripa enfarinhada já meio podre...não? - "Bom, enfarinhada está porque a pobre velhinha come muita farinha de arroz e aaquilo coagula-lhe na tripa aos três quinze dias. Está a ver? E depois para sair é que são o cabo dos trabalhos...Da última vez tive de lhe tirar o cagalhão à colher." Todos riram: - "ah, ah, ah, ah, ah, oh, oh, oh, oh, ih, ih, ih...". Havia um que se borrava todo de tanto rir e os outros correram com ele porta fora por causa do cheiro nauseabundo. - " Bom. Ó Kenzo, agora que já nos rimos vamos ao que interessa" - Disse grave o possante guerreiro. Kenzo tremia. - "Há bocado estava a brincar. Eu preciso é dumas febras." Kenzo engoliu em seco enquanto via o samurai desmbainhar lentamente o sabre. - " As febras tem um bocado de nervos, sabe?" - "Então, corta-me aí uns bifes do lombo, ou uma picanha, tens picanha, não tens?" - "Maminha de alcatra, tenho..." - "Pode ser" disse o outro. - "E fiambre da pá, tens?" - Kenzo engoliu em seco e disse: "N..não."
- "Não faz mal. Deixa lá. Levo antes um chouriço de carne extra". - "Este é especial cá da terra. Vai ver que não se arrepende, senhor". - Disse Kenzo. O que se tinha borrado voltava agora a entrar e disse: "Tenho ali umas alheiras de se lhe tirar o chapéu, se quiser...". Kenzo olhou-o com raiva, não se conteve e arrumou-lhe dois valentes bananos nos queixos. Um zarolho com uma faixa de pano em roda da cabeça aproveitou para partir uma cadeira nas costas de Kenzo e num segundo todos se envolveram à pancada na taberna. As raparigas que voltavam do trabalho riam-se tapando a boca com a mão delicada. O taberneiro, com dois olhos negros, disse - " Bom. Agora vamos é lá limpar esta merda toda, se fazem a fineza...". O samurai coçou os tomates alcatifados de pintelhos densos e negros. - "Mas e a minha alcatra?" - Disse. "A tua alcatra o caralho!" - Disse um lá do canto. Kenzo aviou-lhe com uma trave da porta no meio da testa e novamente se pegaram todos à pancada.
A brisa da Primavera ondulava no arrozal e ao longe dois monges cantavam ao Buda Amitaba, um repetitivo e grave nembutsu. Um cagalhão de cão, já sediço, acumulou-se no canto da casa de Katsushika, ao lado dum requintado bule de ferro onde o chá fervia esquecido pela velha Kazue, que tinha um problema na tróclea do fémur esquerdo.
FIM