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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


terça-feira, maio 02, 2006




CHUVA NA CHARNECA DO LUMIAR


Não sou a mesma pessoa que foi o miúdo que ia à chuva, sozinho, no caminho da escola. Era uma hora cinzenta de sonhar acordado, de olhos nas poças de lama e no horizonte cinzento, que imaginava perdido, selvagem e vazio. A certa altura, no caminho, via-se o Tejo muito ao longe. Um remoto e lamacento sapal que luzia ao sol, às vezes, ao fim da tarde. Passava uma velha e arruinada vacaria. Passava a casa de uma bruxa com um pentáculo metálico na porta e os miúdos das barracas que me assaltavam os bolsos em busca de berlindes. Depois, uma vaga alameda com freixos. Num deles dei com força com um martelo de madeira daqueles de bater bifes. Fez ricochete e veio fazer um enorme e roxo galo na testa, que exibi perante a Dona Domingas, a professora. Senti tanta vergonha ante um auto-infligido acto de estupidez que acusei um rapaz já crescido mas mentalmente retardado, que não se soube defender e arcou com as culpas. Ainda hoje me arrependo e pedir-lhe-ia desculpas se me lembrasse sequer como se chamava. Uma sacholada na minha avó já expiei, quando lhe contei que me consumia desde os cinco anos com essa culpa. Ela, na cama e um dia antes de morrer disse-me que não tinha nada que me desculpar, pois ela não se lembrava de nada disso e provavelmente teria sido um sonho. Como me envenenou trinta anos uma culpa meramente sonhada…Depois, descia uma rua de escadas, muitas escadas e havia ao fundo, um grande terreiro. Cheio de lama. Lama boa para jogar aos ferros, ao pião na lama, andar ao soco e chegar a casa com um olho negro ou a cabeça a sangrar. O terreiro culminava num muro. Muito bom para a lagartixa. Elas apanhavam-se bem era com varetas de chapéu-de-chuva disparadas de arcos feitos também de varetas. E depois cozinhadas em latas velhas, junto com uns caracóis e umas ervas? Pitéus que obviamente ninguém comeria, mas que só o gozo de acender uma pequena fogueira justificava. Às vezes as lagartixas eram capturadas vivas e incólumes com fins náuticos. Mor de ser necessária tripulação para barcos de esferovite raspado na parede e que nadavam no tanques da roupa. No Verão floresciam na varanda as alegrias, translúcidas plantas, os cravos-túnicos amarelos e roxos; as begónias e as sardinheiras. Pondo um cobertor velho no ferro vermelho e redondo da varanda e prendendo com molas da roupa o outro extremo tinha-se uma bela casinha. Mais uma tenda. Acreditava numa espécie de fronteira com o desconhecido, sempre que os meus olhos alcançavam um qualquer limite. Podia ser o beirado do telhado. Para lá havia um abismo infinito e sem fundo, o caos o desconhecido, a Fronteira. Tanto assim foi que uma vez sonhei com uma gigantesca engrenagem oleosa suspensa no céu, por cima do beirado. E depois passei meses a esperar vê-la pelo canto do olho nesse sítio. Frequentemente sonhava com coisas no céu: luzes, imagens, coisas inverosímeis e artificiais. Mas nunca tinha visto um riacho ou um ribeiro e sonhava com isso. Uma vez vi uma cascata. Estava doente e chovia muito e eu á janela a ver cascatas de água lamacenta a jorrar de buracos nos muros de pedra para lá da quinta em frente; no caminho por baixo do castelo. Sempre gostei de chuva e dias cinzentos e vento também. O meu avô era guarda de uma obra e essa vez vi pernadas de árvores deitadas ao chão pelo vento; a caminho; pela mão da minha avó; ia-mos ter com ele com uma marmita com comida. A obra ficava ao lado da estância que também era um ferro-velho. O velho Mercedes do meu vizinho foi para lá. Outra vez, apanhei lá um ratinho.

FIM

Arrotos do Porco:


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