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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


sexta-feira, abril 30, 2004

COMUM SEXTA-FEIRA...



Cá estamos, numa nova sexta-feira. Sexta-feira pré-fim-de-semana, sexta-feira pré-férias para mim. Uma sexta-feira estranha e um bocadinho aziaga, que me empurrou para as obras dos grandes mestres.

Entre os grandes mestres e as grandes obras, há uma que entesouro e da qual já falei por muitas vezes e longamente: "Secrets of the Beehive", do David Sylvian. É daqueles discos a que vou precisando de voltar, é a banda sonora de muitos dias passados, um reencontro com partes de mim que ficaram a viver noutro tempo. Não eram tempos melhores nem piores, eram só outros.

É um bocado estranho: conheço poucos discos mais melancólicos (ninguém canta "let the hapinness in" com o mesmo ar de desespero contido...) mas talvez nenhum outro me anime tanto. Não é uma questão de me comprazer com o sofrimento alheio, longe disso. É uma questão de "respiração", de tempo, de economia de meios, da gestão do silêncio. É um disco que me retempera - e é disso que eu preciso, nesta semana que se avizinha, preciso de me retemperar.

É uma responsabilidade do caraças, portanto, dar-vos a ler, na língua de Maria Teresa Horta e Orlando Ribeiro, uma pérola, uma preciosíssima pérola da lírica pop contemporânea chamada "Waterfront" - a música que encerra o álbum e nos deixa sem vontade de ouvir outra coisa.

Waterfront

On the banks of a sunset beach
qual foi o mais bonito? Tavira? Carvalhal? Barcelona? Dili?
Messages scratched in sand
devia escrever a classificação de cada pôr-do-sol na areia
Beneath a roaming home of stars
numa memória tão fugaz como o momento em que as estrelas fazem sentido
Young boys try their hand
meio-dia de validade até ser esmagada pelos pés de crianças a quem os pais prometem tareia
A spanish harbouring of sorts
ao pé do mar há sítios onde aportam almas do mesmo calibre
In Catalonian bars
não importa qual o mar, importa a reverência
They were pulled from a sinking ship
qualquer vastidão é propícia a uma ou outra forma de naufrágio
And saved for last
em qualquer espaço, mesmo acanhado, queremos ser salvos

On the waterfront the rain
cala-nos o mar - como nos cala a cidade
Is pouring in my heart
mas o que calamos ao pé do mar ganha humidade e verdete
Here the memories come in waves
até que cada onda venha por dizer
Raking in the lost and found of years
e o passado se encripte em água e sal
And though I'd like to laugh
depois rimos - do código, mais que do conteúdo
At all the things that led me on
os motivos, quaisquer motivos, fazem-se areia
Somehow the stigma still remains
mas os seus espectros têm peso de âncoras

Watch the train steam full ahead
pode-se escolher a partida na mais veloz das vertigens
As it takes the bend
sem pensar se o caminho é limpo ou tem escolhos
Empty carriages lose their tracks
é legítima a vontade de largar o peso e subir
And tumble to their end
subir ou partir ou fugir mas sem o passado nos olhos
So the world shrinks drop by drop
só que o mundo apouca-se e encolhe a cada passo
As the wine goes to your head
sem olhar ao teor de açúcar dos anseios
Swollen angels point and laugh
há um dia, tarde ou cedo, que relembra todos os outros dias
"This time your god is dead"
os dias todos, os mais belos e os mais feios

On the waterfront the rain
ao pé do mar não há lugar para vidas estanques
Is pouring in my heart
nem para ilusões de impermeabilidade
Here the memories come in waves
há um exacto livro de razão
Raking in the lost and found of years
com uma coluna facultativa para o que "devia ter havido"
And though I'd like to laugh
há risos, sim, mas nem sempre despreocupados
At all the things that led me on
algumas gargalhadas têm sal à mistura
Somehow the stigma still remains
ao pé do mar há o peso todo de uma fronteira entre nós e a grandeza

Is our love strong enough?
nunca algo é suficiente se não soubermos para que o queremos

David Sylvian, Secrets of the Beehive

Percebem? Esta tradução é um exercício de coerência. Compreendem a mossa na minha auto-estima: um gajo anuncia o Verão e apanha com uma soturna sexta-feira nas trombas... O que é que eu ia fazer? Pedir desculpa? Dizer que me enganei? NÃO! Exorto-vos a rumarem à praia, ainda com roupa de meia-estação mas com o Verão no espírito.

Bom fim-de-semana. Boa semana. Vou de férias. Para o interior.

terça-feira, abril 27, 2004

OS ESPIRROS



Hoje acordei - a hora é um pormenor irrelevante - e pouco depois espirrei. Duas vezes. Uma logo a seguir à outra. Espirrei. Assoei-me. E fiquei feliz porque eram espirros de Verão.

É oficial, portanto. O meu corpo entrou no Verão. Aqueles dois espirros foram a prova. Parece-vos estranho? A mim também. Tenho estas percepções, que não chegam para fazer de mim um Professor Karamba mas que me vão distraindo. Um espirro de Inverno é uma coisa densa, pesada, tristemente forte e inconveniente. Um espirro de Verão é ligeiro, animado, quase feliz e com aquele exotismo de "fruta fora de época". E nisto dos espirros não há meias estações, por isso não há qualquer margem para equívocos. Hoje dei dois espirros de Verão. Souberam-me bem.

Há três fases de esplendor nos meus Verões. O início, estes primeiros dias quentes em que toda a gente parece feliz sem saber porquê. Os dias de férias propriamente ditos, em que eu estou feliz e sei porquê. E os dias do fim do Verão, em que toda a gente parece feliz por regressar ao conforto de uma camisola de lã. Pelo meio, há alguns dias menos bons: os de calor insuportável, em que não se consegue pensar nem trabalhar nem estar em casa nem andar na rua, mas em que se tem que pensar e trabalhar e estar em casa e andar na rua. Tudo somado, é uma estação do ano perfeita, tão perfeita como as outras três.

Eu sei que talvez vos pareça precipitado. Eu sei que em Maio ainda podem vir trovoadas. Eu sei que em Junho ainda pode chover. Mas o meu estado físico de veraneante convicto, diagnosticado hoje de manhã, é irreversível e só se vai alterar com os primeiros sinais do Outono. Para mim, a partir de hoje é Verão. Cada dia que vier será bonito e quente e feliz. Chegou de repente, como um espirro. Mas ainda bem que já cá está. E ainda bem que eu ainda cá estou.


sexta-feira, abril 23, 2004

SEXTA-FEIRA COM SOL E POP...



Laivos de autismo? Talvez. Medo do mundo não devia ser, já que escolhi algo que é quase o oposto. A verdade é que sempre sonhei ser faroleiro. Nem mais. Faroleiro. Podia ser no Farol do Penedo da Saudade, em São Pedro de Moel. Ou no Cabo Sardão. Ou no Finisterra. A minha vida ficava "fechada" ao pé do mar. O meu cuidado evitaria que outros se perdessem. E o tempo e o espaço seriam imensos.

Não sei nadar. Nunca aprendi. Sou do interior. Sou um bocado tanso, porventura. E, ouso afirmá-lo, terei pouca coordenação motora. Não sei nadar mas isso não interessaria nada, num farol. Um faroleiro não é um nadador-salvador, um faroleiro ajuda a que quem anda no mar só regresse a terra quando quiser. Seria faroleiro e o caminho dos outros seria mais fácil, seria o deles, o que quisessem. E o meu seria o meu, uma quase imobilidade encantatória, chapadas de beleza a cada instante e uma liberdade enorme.

Pois. Mas não sou faroleiro. Nunca o serei, certamente. Escolhi outra coisa, de que também gosto muito, e que despeja pessoas e pessoas na minha vida, me obriga a uma mobilidade constante e me deve condenar a qualquer coisa próxima do desenraízamento. Em vez de mostrar caminhos, tenho que os procurar ou, às vezes, tornar-me um caminho. Sou feliz assim, com esta escolha cheia de outros, porque também seria feliz como faroleiro, comigo.

Será talvez por ser feliz que gosto de pop. E de dias de sol. E de dias sem trabalhar. E das pessoas. E de mim - ainda que modestamente.

E, claro, gosto de partilhar com vocês, na língua de António Quadros e Almada Negreiros, algumas pérolas da lírica pop contemporânea. A escolha de hoje não podia ser outra: os Saint Etienne. A Sarah Cracknell é linda. Canta o que é preciso, sem exageros, sem pretensões. Tem uma voz doce e feliz. Escreve bem. A dupla Stanley e Wiggs faz música pop como ninguém - ou melhor, como todos os grandes autores pop fizeram na segunda metade do século XX. E fizeram este monumento de "spoken word" a que chamaram "Finisterre" - canções destas são faróis, para mim.

Finisterre

I loved to draw when I was a little girl
É uma capacidade única da infância
It helped me see the world as I wanted it to be
A de moldarmos o mundo como queremos que ele seja
Sometimes I walk home through a network of car parks
Garante o fascínio de descobrir, quando o percorremos,
Just because i can
Que ele não é como o víamos
I love the feeling of being slightly lost
A surpresa de um espaço novo, sem referências
To find new spaces, new routes, new areas
Outro território organizado por outras vidas
I love the lack of logic
A vitória da organicidade sobre a lógica
I love the feeling of being slightly lost
O frémito de sermos estranhos a um lugar

I believe that music in the long run can straighten out most things
Às vezes falta-nos grandeza de espírito na forma como fazemos as pequenas coisas
There are too many bands that act lame
Os grandes nomes nem sempre valem mais
Sound tame
Que uma mediocridade apaixonada
I believe In Electrelane
Eu acredito na procura pelo novo
Over here it's new, it's now, it's you, it's clean
Em cada dia, em cada coisa, em cada espaço, em cada um
The beard and lipstick scene
Sem necessidade de estéreis movimentos estéticos
So look beyond reality shows, gossip culture,
O espaço grande de uma cidade não se pode submeter a uma sala com televisor
So bored of stupidity
Cansa-me a ideia de "gosto dominante"
The myth of common sense
O senso comum não pode corroer o senso de cada um
I believe in Donovan over Dylan
Acredito que a ligeireza pode tocar mais que uma seriedade depressiva
In love over cynicism
Não é preciso perceber de engenharia para gostar de arquitectura...


Finisterre, to tear it down and start again
Fazer e desfazer, tentativa e erro, acabar e recomeçar
Think about the love back in Finisterre
Quando chegamos a Finisterra a terra não acaba: ela está só atrás de nós outra vez

Five miles north there's a town
Há sempre outros lugares, a Norte ou a Sul
of silver birches
Onde se criaram espaços diferentes dos nossos
Twenty-seven churches
Com mais ou menos passado
A look of horror if you drop a H
A eterna possibilidade de ser estrangeiro
Around here its hoods up and heads down
Haverá menos humanidade numa torre que numa casa térrea?
Got it the wrong way around
Perder-se-á "poesia" quando se condensa em altura o espírito de um burgo medieval?
When things get turned around
Na arte como na função pública: acho que às vezes se confunde mérito com perenidade...
I slow down
Queria ter tempo para voltar a passear devagar
Dream about the notion of the perfect city
Sonhar com a possibilidade de ver nascer uma Milton Keynes
Imagine the 19th century never happened
Eliminar os vestígios de alguns períodos
Just a straight run from Beau Brummell to Bauhaus
Traçar contínuos de modernidade
Dreams never end
Posso sonhar com isso, não posso?
This house believes in skyscrapers
Afinal, o Farol de Alexandria era um arranha-céus...

Finisterre, to tear it down and start again
Em Finisterra não há um fim, há caminhos por refazer
Think about the love back in Finisterre
Gostar do que se tem é o fermento para se gostar da ideia do que se pode fazer

Saint Etienne, Finisterre

E cá está a sugestão para o fim-de-semana. Façam o que gostam de fazer, pensem em maneiras melhores para o fazer, façam-no de novo.


quarta-feira, abril 21, 2004

25 de ABRIL - 30 ANOS (III)



GUERRA COLONIAL 1961-1974

8.000 MORTOS
112.205 FERIDOS E DOENTES
4.000 DEFICIENTES FÍSICOS
100.000 COM STRESS DE GUERRA.

terça-feira, abril 20, 2004

25 DE ABRIL - 30 ANOS (II)



Albertina Diogo, a primeira mulher a sofrer a tortura do sono pela PIDE/DGS, presa em 1960 com 28 anos.

"Mal abri encostaram o pé de cabra. Já não fechei a porta. 'Minha senhora não se aflija, está bem acompanhada.' Eram só oito, oito homens pela casa dentro! Pareciam uns algozes! A correr pela casa toda, a ver se estava mais alguém que não eu. Não tive tempo de queimar nada. A gente, quando tem tempo, queima e safa. Apanharam a casa toda, toda. Levaram os materiais todos, todos."

“Estive 40 dias numa cela, sem recreio, sem ninguém, sem visitas, sem lanche e só levava a roupa que tinha no corpo. Fazia assim, eu tirava uma peça, lavava e punha na janela, depois tirava outra peça, lavava e punha na janela. A roupa que eu trouxe retiveram-na toda na secretaria."

"Custa muito. Eu digo, eu preferia que eles me batessem, a sofrer a tortura do sono, é uma coisa horrível. Ninguém queira saber o que é. Sentada e de pé. Não havia mais nada. Uma cadeira no meio da sala. A fazerem-me perguntas: 'Onde é que a senhora estava a trabalhar? Quem é o pai dos seus filhos? O que é que a senhora fazia?' Estou a responder à senhora? Nadinha."

"Eles funcionavam por turnos, de quatro em quatro horas, os pides saíam e entravam outros e a pessoa é sempre a mesma. Havia um, o Sardinha, que pegava na cadeira e andava à roda da pessoa. Eu virava a cara e ele ia atrás, para me obrigar a falar. Aquilo era uma coisa muito cansativa."

"Às tantas, ela pegou-me assim na cabeça e bumba, bate-me contra a parede. Fiquei atordoada. E depois a outra deu-me assim umas bofetadas que ainda hoje não ouço bem deste ouvido, por causa das torturas que me fizeram. Fiquei logo com os ouvidos muito esquisitos e atordoada."
Mantida sem dormir, Albertina começa a sofrer alucinações.
"Depois comecei a ouvir vozes. No fim do quinto dia. Eu olhava assim para o cantinho e via muitos bichinhos. Olhava para a parede e via desenhos muito bonitos. Eu dizia para mim, 'ai estou maluca'. Mas a fazer-me forte para a PIDE não perceber que eu não estava bem. Não queria dar parte fraca. Queria fazer das minhas fraquezas forças. Mas eles percebiam que eu não estava bem. Na noite de sexta-feira, o Barata mandou pôr um colchão para eu me deitar, porque comecei a vomitar. Conforme comia, deitava tudo fora. Então descansei um bocadinho e trouxeram-me para Caxias."
Excertos da entrevista a SÃO JOSÉ ALMEIDA
Público online


Ó VALHA-ME DEUS!



Diz que o Major Valentim Loureiro e mais 14 maduros foram detidos pela Judiciária, no âmbito da operação "Apito Dourado" que há mais de um ano vem investigando o suposto tráfico de influências na arbitragem portuguesa...

Ele há gente capaz de tudo. O que é que eles vão inventar a seguir?...


segunda-feira, abril 19, 2004

25 DE ABRIL - 30 ANOS (I)

Lista dos Presos Políticos Libertados em 25 de Abril 1974

CAXIAS: Hermínio da Palma Inácio, José Manuel Tengarrinha, Maria Helena Vidal, Marcos Rolo Antunes, Mário Ventura Henriques, Nuno Teotónio Pereira, Figueiredo Filipe, António Luís Cotri, José Alberto Costa Carvalho, Mateus Branco, Fernando Pinheiro Correia, Maria Helena Neves, Victor Manuel Caetano Dias, Joaquim Gorjão Duarte, José Manuel Martins Estima, Pedro Mendes Fernandes Rodrigues Filipe, Orlando Bernardino Gonçalves, José Pereira Fernandes, Norberto Vilaverde Isaac, Manuel Luís Judas, Albano Pedro Gonçalves Lima, Victor Serra Lopes, José Rebelo dos Reis Lamego, Carlos Manuel Simões Manso, Horácio Crespo Pedrosa Faustino, António Pinheiro Monteiro, Maria Elvira Barreira Ferreira Maril, Armando Mendes, Liliana de São José Teles Palhinhas, António Manso Pinheiro, João Duarte Pereira, Eugénio Manuel Ruivo, Maria Rosa Pereira Marques Penim Redondo, Fernando José Penim Redondo, Fernando Domingos Sanches, Manuel Gomes Serrano, Ezequiel de Castro e Silva, Carlos Manuel Oliveira Santos, José Adelino da Conceição Duarte, Acácio Farajono Justo, Rafael dos Santos Galego, Ramiro Antunes Raimundo, Margarida Alpoim Aranha, Luís Manuel Victor dos Santos Moita, Maria Vítor Moita, Manuel Policarpo Guerreiro, Maria Fernanda Dâmaso de Almeida M. de Figueiredo, Manuel Martins Felizardo, João Filipe Brás Frade, Joaquim Brandão Osório de Castro, Fernando da Piedade Carvalho, Carlos Alberto da Silva Coutinho, Maria de Fátima Pereira Bastos, Maria Rodrigues Morgado, Carlos Biló Pereira, Fernando Nunes Pereira, Ernesto Carlos da Conceição Pereira, António Manuel, Gomes Da Rocha, António Vieira Pinto, José Casimiro Martins Ribeiro, Henrique Manuel P. Sanches, Mário Abrantes da Silva, José Oliveira da Silva, Amado Jesus Ventura Silva, Manuel José Coelho Abraços, Manuel dos Santos Guerreiro, Maria Manuela Soares Gil, Luís Filipe Rodrigues Guerra, João Boitout de Resende, Álvaro Monteiro Rodrigues Pato, Ramiro Gregório Amendoeira, Vítor Manuel Jesus Rodrigues, Abel Henriques Ferreira, Ivo Bravo Brainovic, José Alves Tavares Magro, António Diasa Lourenço, Rogério Dias de carvalho e Miguel Camilo.
PENICHE: Francisco Manuel Rodrigues, Rui d'Espinay, João Pulido Valente, João Eurico Bernardo Fernandes, José Brasido Palma, Carlos Cardoso Gonçalves, Licínio Pereira da Silva, Raul Domingues Caixinhas, António Cândido Coutinho, Rui Benigno Paulo da Cruz, José Manuel Caneira Iglésias, Sebastião Lima Rego, Carlos António Gonçalves Tomás, Rui Teives Henriques, Pedro Campos Alves, Luís Filipe Fraga da Silva, Luis Miguel Vilã, João Pedro Mendes da Ponte, João Duarte de Carvalho, António Metelo Perez, Nelson Rosário dos Anjos, Carlos Saraiva da Costa, Ângelo Veloso, Dinis Miranda, Manuel Pedro, António Gervásio, Manuel Drago, Carlos Domingues Soares da Costa, Horácio Rufino, José Pedro Correia Soares, Filipe Viegas Aleixo, Francisco Manuel Cardoso Braga Viegas, José Simões de Sousa, Garcia Neto e Joaquim Duarte.

sexta-feira, abril 16, 2004

SEXTA-FEIRA...



Hoje arrefeceu. Tive frio quando voltava do almoço. E lembrei-me de músicas que me arrefeciam e assustavam, antigamente. Havia o Rebel Waltz, dos Clash; o All Roads Lead to Rome, dos Stranglers; o Down in the Park, do Gary Numan... E havia uma, por excelência. A música mais fria e mais bonita do álbum mais gélido de todos os tempos: o Metamatic, do John Foxx, o seu primeiro álbum a solo, em 1980, depois dos Ultravox. Uma dieta de sintetizadores analógicos, caixas de ritmos e um baixo que só se ouve quando é preciso. E a voz, distante e monocórdica, longe do fascínio "bowie-esco" dos primeiros álbuns dos Ultravox.

A primeira cópia em vinil que comprei do Metamatic teve um triste fim: nunca a cheguei a ouvir. Comprei-a em Lisboa e levei-a para Tomar no comboio, num saco que decidi pôr no chão, ao lado do aquecimento... que ia ligado. Resultado: o disco deformou-se com o calor... Mas pouco tempo depois consegui comprar outra, que ainda tenho e ainda ouço.

Neste início de fim-de-semana que se anuncia pouco radioso, dou-vos a ler, na língua de Gervásio Lobato e Sampaio Bruno, não uma pérola mas um iceberg da lírica pop contemporânea. Chama-se "A Blurred Girl" e é linda naquela forma tortuosa em que os dias mais desoladores do Inverno também conseguem ser lindos.



A Blurred Girl

I'm taking nothing
Não levo nada que não eu
It's not my way
Não me construo de coisas palpáveis
It's almost summer now
Já há mais luz nestes dias
This bed's been made
E quero que a luz incida sobre uma espécie de ordem
Some time ago a figure strolled
Há tempos uma figura percorria
Along the esplanade
Um caminho onde me sentava
Changing in the mist and light
Os contornos esfumavam-se na névoa e na pouca luz
Underneath the green arcades
Na sombra verde dos néons das arcadas
A blurred girl
Uma mancha perfeita
A blurred girl
Difusa e perfeita
Are we running still?
Ainda corremos atrás de nós?
Or are we standing still?
Ou nunca nos chegámos a mover?
Are we running still?
Houve pressa em nos cumprirmos?
Or are we standing still?
Ou houve passos a menos?
Standing so close
Encontrámo-nos
Never quite touching
Mas não fomos um do outro
Standing so close
Mesmo com corpos por cima dos corpos
Never quite touching
As duas peles eram sacos de memórias diferentes
Wounded in sleep again
O sono salga-me as feridas
The sequences move by me
Não faço parte do que vivo
A million miles across the room
Vindo do longe onde tu estás
A tearing sound of smiling
Rasga-me os ouvidos o som de um sorriso
We're fixing distances on maps
Cartografei os dias da ausência
And echo paths in crowds
Há gente a passar por onde ainda ecoam outros passos
The light from other windows
Já há mais luz nestes dias - e mesmo de noite
Falls across me now
Há janelas que entornam luz sobre a ordem de mim que construo
Standing so close
Mesmo com corpos por cima dos corpos
Never quite touching
Não somos um do outro

John Foxx, Metamatic

E pronto. Mais do que pela "poesia", as letras de John Foxx - e de outros, poucos, valores da cold wave - distinguiam-se por este imaginário do isolamento, do frio, da imprecisão humana... Em 77, o moço tinha escrito uma canção chamada "I Want To Be A Machine". Em 79, o Gary Numan perguntava "Are 'Friends' Electric?". Hoje em dia, só o extraordinário Contos do Assento da Sanita parece lembrar-se do que era sonhar com amantes andróides... ou ovelhas eléctricas. Bom fim-de-semana.

quinta-feira, abril 15, 2004

EXTREMO



Chega-se ao Largo da Capela de Salvaterra do Extremo, segue-se por uma rua à esquerda, vira-se à esquerda na primeira e depois à direita e novamente à esquerda, se bem me recordo. Depois, o caminho murado não tem nada que enganar: é o passeio mais bonito que se pode fazer nesta Primavera, até ao miradouro da Caseta, que nos dá uma vista única do Erges e de um castelo espanhol cujo nome nem quis reter.

A brevíssima visita que fiz a Salvaterra do Extremo levou-me de volta aos tempos em que eu visitava com frequência a terra dos meus avós. Era invariavelmente ao Sábado. Levava “roupa para estragar” e costumava cumprir à letra esse desígnio. Às vezes tinha companhia para brincar. Às vezes não. Tinha a clara percepção de que me aborrecia de morte, na maior parte dos Sábados. A não sei quantos anos de distância, esses dias parecem-me encantadores. Brincava com paus, atirava pedras, tirava água do poço para inundar formigueiros. À noite imitava o piar dos mochos e ficava naquele inocente onanismo infantil durante bastante tempo, encantado porque eles respondiam. Passei horas sentado no muro da eira do meu avô. Inventava melodias e pensava em histórias que podia escrever. E lia, lia muito, enxotando as moscas e as formigas.

Quando fui a Salvaterra do Extremo fui com bastante gente. Fui com gente demais. Queria ter ficado lá sozinho, durante umas horas. Só umas horas. Sim, que ali e agora não teria a certeza de que a minha mãe me ia chamar para o lanche, para comer pão com queijo fresco feito pela minha avó. Queria ter ficado lá sozinho. Queria ter “bebido” aquilo tudo para depois, quando me apetecesse, mostrar a quem eu quisesse. Queria ter enxotado os outros, como dantes enxotava as moscas. No fundo, acho que quis ter outra vez 11 anos e estar com umas calças de fato-de-treino velhas e saltar no caminho de pedra em pedra e fingir que um qualquer cavaco era uma espada e correr e cair e sentar-me e cantar como cantava antes, arranjando “palavras” numa “língua” foneticamente próxima do inglês (isto antes de saber que a Elisabeth Fraser fazia o mesmo nos Cocteau Twins...).

Nunca vou conseguir mostrar a ninguém o que eu vi em Salvaterra do Extremo. Se for lá amanhã, vai estar outra luz, os campos vão estar diferentes, o rio vai ter outra cor. E os outros, mesmo que tivessem passado muitos Sábados nos Matos, não têm as mesmas imagens que eu tenho guardadas atrás dos olhos. Ali na Caseta, eu vi-me como eu fui: um puto que se podia dar ao luxo de gostar de estar sozinho porque tinha sempre para quem voltar, tinha sempre quem o chamasse de volta. Foram uns 20 anos de vida, às arrecuas, que a beleza daquele sítio fez tombar sobre mim. Apanhei na cara com a futilidade das minha angústias presentes e passadas, com a felicidade espessa e palpável que tem envolvido os meus dias, os meus dias quase todos. E fiquei grato – não sei bem a quê nem a quem, mas fiquei tão grato...

Nesta minha breve existência de meias vocações, talentos entupidos e fraudulentos e alguma volatilidade sentimental, tudo ou quase tudo o que poderia ter corrido mal, não correu. A “salgadeira mental” onde, à cautela, vou guardando os momentos piores ou indizíveis, está bem trancada. A visita a Salvaterra do Extremo foi mais uma volta na fechadura.

Hei-de mostrar aquela vista do Erges a algumas pessoas. Nunca a vão ver como eu e eu nunca a vou ver como elas – todos temos os olhos extremados no nosso passado. Mas às vezes é tão gratificante trocar imagens como o é trocar fluidos. Não sou capaz de guardar a beleza para mim, nunca o fui. A minha felicidade sempre se alimentou da felicidade dos outros. A minha tranquilidade, essa, alimentou-se em devida altura de NervoVitamine Granulado e agora é auto-suficiente. Já a minha esperança funde-se com a falta de urgência. Espero que cada dia novo não venha cedo demais porque gosto da minha vida. E só quero uma coisa, que engloba as outras todas: não desmerecer o que tenho tido.



quarta-feira, abril 14, 2004

DO NASCIMENTO ou ESTE BLOG TEVE UM FILHO



Ver qualquer coisa nascer, seja o que for, é um momento inesquecível. Nunca "vi" nascer uma criança, mas acompanhei esse processo - mágico e sempre misterioso para qualquer homem não-obstetra - por duas vezes, quando nasceram os meus sobrinhos.

Neste fim-de-semana nasceu o Alexandre. O Cutivinho. Não é meu sobrinho de sangue, mas é sobrinho do blog. Acompanhámos o nascituro desde que se soube que ele aí vinha. Feitas as contas, a harmonização de vontades que deu origem ao pimpolho anda próxima da data da criação deste nosso porquinho. Chamem-me o que quiserem (sim, hoje podem...) mas a verdade é que isto me enternece. Há mais uma vida. O Alexandre pode vir a ser capaz de fazer tudo aquilo que não conseguirmos fazer. O Alexandre pode mudar o mundo. O Alexandre pode ser só uma criança feliz, um cidadão normal, daqueles que são esquecidos pela toponímia e pelas efemérides do 24 Horas. Mas ele vive e a história do que vai ser a vida dele interessa-me. Interessa-me porque o pai dele é meu amigo e a mãe dele é minha amiga porque é casada com o meu amigo e eu sou amigo do Alexandre até que ele tenha idade para escolher se me quer por tal ou não.

O Alexandre vive porque a mãe e o pai assim o desejam. Pondo de parte a estranheza que me causa o facto de um tripeiro malcriadão ser capaz de um gesto tão grande e bonito, tenho que confessar que os compreendo e os invejo. Os meus orgulhos na vida foram sempre os meus "outros", as pessoas de quem gosto - e acho que nunca deixei de gostar de ninguém. Se/quando tiver um filho, devo ficar insuportável e aposto que a minha tão justamente celebrada modéstia conhecerá nesse dia a certidão de óbito. O Zé Cutivo não, esse atura-se bem: vai irradiando a felicidade mais tranquila e mais genuína, daquela que contagia. Tem um filho, um bébé pequenino que é muito maior que ele, para ele.

Neste fim-de-semana nasceu o Alexandre e nasceram outros bébés e nasceram muitas coisas bonitas, materiais ou imateriais. Floriram giestas, rosmaninho e rosas albardeiras. Houve pessoas que se apaixonaram. Houve, certamente, pessoas que deram origem a outras vidas. Fizeram-se canções. Escreveram-se páginas. Criaram-se amizades. E nasceu o Alexandre, que é o resultado de muitos momentos destes, de confluência de vontades naturais e humanas. Nasceu na Primavera, em plena "explosão de vida". E é lindo, de certeza que é lindo porque vive e tem quem o ame e é filho do meu amigo.

Se alguém acha que a vida não vale a pena é porque com certeza perdeu essa capacidade fascinante de ficar feliz pelos outros. Eu ainda não a perdi. Fiquei feliz, feliz mesmo e agradeço ao Zé Cutivo por ter partilhado connosco esta boa nova. Da próxima vez que a condição de solteiro sem descendência me empurrar para os copos irei brindar ao Alexandre. A vida dele entrou no índice remissivo da minha na noite de Domingo de Páscoa. Agora é deixar adicionar as referências. Parabéns. Obrigado.


terça-feira, abril 13, 2004

Homenagem ao Cutivinho


quinta-feira, abril 08, 2004

SEXTA-FEIRA... EHR... POIS... QUINTA-FEIRA, MAS FAZ AS MESMAS VEZES...
ao Zé, a única pessoa (a modéstia impede-me de ajuntar "para além de mim") que até hoje eu gostei de ouvir a fazer sing-along com The Divine Comedy




Os Marillion, já sem o Fish, têm uma música chamada "Easter". Eu quero que os Marillion esfreguem as mãos à parede. A Páscoa não interessa quando à Paixão de Cristo se sobrepõe, no meu robusto coração, a Paixão pela mais bela canção do ano.

O novo álbum dos The Divine Comedy (e já vão ver que ainda faz sentido falar no plural), "Absent Friends", é excelente. Está muito acima do que foi o anterior "Regeneration". São dez canções e um instrumental, daquelas que só Neil Hannon tem a lata e o talento de fazer hoje em dia. Canções bonitas, despretensiosas, intensas e inteligentes.

Mas há uma que me levou a estar a pé até às 3 da manhã, ontem, e que hoje me fez programar o leitor de cd's para a manter no repeat durante uma hora. Chama-se "Our Mutual Friend". É um épico orquestral, uma canção "larger than life", com uma interpretação contida de Neil Hannon - o que não o impede de mostrar que tem uma das melhores vozes da música pop actual - e com uma letra que mistura um lado cândido e inocente com o humor corrosivo e com o único sentimento que podia justificar uma música assim.

Três quartos do meu amor por esta canção justificam-se pelo arranjo de orquestra de Jobi Talbot. O conceito de perfeição é qualquer coisa que tento gerir com parcimónia, mas este arranjo cabe lá dentro como nenhum outro. As cordas são atacadas com veemência enquanto os sopros arrastam lentamente a sua entrada, e a percurssão é discreta mas viva e marcante, seguindo a linha dos baixos mas com suficiente diferença de timbre para não soar "quadrado".

São 5 minutos e 57 segundos de beleza no seu estado mais puro. Quando a música acaba e começa a seguinte, "The Happy Goth", sinto uma revolta extraordinária, um desamor totalmente injusto pela música seguinte, e sou compelido a reouvir e reouvir e reouvir "Our Mutual Friend". Serei esquizóide?...

De qualquer forma, farei o melhor que puder para vos dar a conhecer, na língua de Ruben A. e de Maria Ondina Braga, mais uma pérola, e que pérola, esta, da lírica pop contemporânea.


Our Mutual Friend

No matter how I try,
É daquelas coisas inescapáveis
I just can't get her out of my mind,
Uma parte qualquer do cérebro que é auto-determinada
And when I sleep,
Uma parte que não dorme
I visualize her,
E que projecta imagens dela o tempo todo

I saw her in the pub,
Já a tinha visto num café
I met her later at the nightclub,
E encontrei-a depois numa discoteca ali ao pé
A mutual friend introduced us,
Fomos apresentados por um amigo comum

We talked about the noise,
Conversámos - ou melhor, tentámos
And how it's hard to hear your own voice,
Sobre a impossibilidade de conversar num lugar assim
Above the beat and the sub-bass,
Com a aparelhagem Furacão refundida a distorcer os graves

We talked and talked for hours,
Ainda assim conversámos, indiferentes a tudo
We talked in the back of our friend's car,
E continuámos a conversar na Kangoo do amigo comum
As we all went back to his place,
Que nos levou para casa dele prometendo cervejas e sandes de atum

On our friend's settee,
No pardieiro em que vive o nosso amigo
She told me that she really liked me,
Ela disse que lhe agradava estar comigo
And I said "Cool, the feeling's mutual",
E eu respondi "Ainda bem. Eu gosto de estar contigo, também."

We played old 45s,
Tocámos os singles que o nosso amigo lá tinha
I said 'It's like the soundtrack to our lives",
Eu disse "Não achas a voz do Pat Boone igual à minha?"
And she said "True, it's not unusual",
E ela respondeu: "Talvez, mas quem gostava dele era a minha mãe."

And privately we danced,
Dançámos os dois juntos
But couldn't seem to keep our balance,
Mas os tropeções eram mais que muitos
A drunken haze had come upon us,
Os vapores etílicos íam-nos dominando

We sank down to the floor,
Estendemo-nos no chão
And we sang, the song that I can't sing anymore,
E cantámos canções que não me lembro quais são
And then we kissed, and fell unconscious,
Mas lembro-me do beijo e de me sentir afundando

I woke up the next day,
Acordei no outro dia
All alone but for a headache,
Sozinho, e o que a minha cabeça zunia...
I stumbled out, to find the bathroom,
Cambaleei à procura da casa de banho
But all I found was her,
Mas encontrei-a a ela
Wrapped around another lover,
Enrolada na cama com o magricela
No longer then,
E a partir deste dia esse bandalho
Is he our mutual friend.
Que vá chamar amigo ao caralho

The Divine Comedy, Absent Friends


E pronto. Numa leitura pessoal, eu seria o corno, ela seria a canção e o amigo comum o Neil Hannon. Eu dava a unha do dedo mindinho esquerdo para ser capaz de escrever uma canção assim...

Boa Páscoa.


quarta-feira, abril 07, 2004



Conviver com um doente de Alzheimer provoca medo, não da morte mas da vida. Mas até nesta circunstância, procurando bem, existe um lado divertido.


- Olha lá, aquela loira que me costumava vir buscar…nunca mais veio…
- …….
- …nunca mais a vi…aquela….
- Mas quem, Papá?
- Aquela …assim parecida contigo mas com o cabelo loiro…

(Silêncio prolongado e esperançado que o esquecimento resolvesse)

- Havia uma que costumava vir-me buscar…nunca mais veio. Era simpática e ria como tu…e tinha o cabelo loiro.
- Desculpa, Papá, mas não estou a ver.

(Silêncio contemplativo)

-….só que tinha o cabelo loiro…

(Fez-se luz!)

- Sou eu, Papá! Olha lá bem para mim.
Olhou com ar desconfiado.
- Nã….. a outra era loira….
- Sou eu sim, só que fui ao cabeleireiro e escureci o cabelo.




segunda-feira, abril 05, 2004

ELEKTRO KARDIOGRAMM


RALF HÜTTER FLORIAN SCHNEIDER FRITZ HILPERT HENNING SCHMITZ

Foi esmagador. Saí do Coliseu, citando um amigo meu, com o serúmen colado aos tímpanos. Há um grupo norte-americano pouco conhecido que tem como lema "Lowdness is power". Para os Kraftwerk, "Modulation is power". Quando abandonei a sala, os meus ouvidos carpiam de tristeza por deixarem aquele baixo perfeito, rigoroso, corpulento. Um baixo que quase fazia corrente de ar e que testava a solidez das madeiras do chão do Coliseu.

Tudo aquilo foi admirável. Uma sala na penumbra, um ecrã gigantesco, um som perfeito, vídeos fabulosos. Que importância poderia ter o facto de os quatro alemães não estarem propriamente a "tocar"? Nenhuma, claro. O importante era o rigor daquela relação entre o homem e as máquinas. Recordei as declarações de Karl Bartós, quando deixou o grupo: "Era como ter um jacto no quintal e nunca poder descolar". Bartós referia-se aos longos períodos de pretensa "inactividade" dos Kraftwerk, mas a espera vale a pena. Se o novo álbum e esta digressão são o fruto de 17 anos de trabalho, então cada dia valeu a pena.

Estes "musical workers", como eles se definem, que encaram as máquinas não como equipamento mas como colegas, conseguiram edificar nos últimos 30 anos uma obra tão escassa quanto monumental. Partindo da sensação de zero absoluto cultural da Alemanha do pós-IIª Guerra, os Kraftwerk mudaram - sozinhos - a face da música contemporânea. Sem os seus avanços, o hip-hop seria diferente, não teríamos house ou techno, nem o pop ou o rock teriam a mesma face que têm hoje. A revista inglesa UNCUT chamou-lhes os "Beatles do Krautrock", pretendendo indicar o seu grau de relevância - e só pecaram por defeito.

Ralf Hütter garantia, em entrevista recente, que o conceito Kraftwerk nunca estará terminado e que eles continuarão a trabalhar. Espero que sim, espero que regressem à clausura do Estúdio Kling-Klang (que não tem área de recepção, nem telefone, nem fax) e que continuem a mostrar como o cérebro humano pode continuar a trabalhar em conjunto com a tecnologia para dissecar em sons a beleza dos gestos do quotidiano. No panorama da música actual, eles são insubstituíveis, o que não se pode dizer de muita gente. Quem mais poderia pôr um Coliseu cheio como um ovo a vibrar com o conceito de "Elektro Cardiogramm"?

domingo, abril 04, 2004

Big Fish

Não sei que chegue para fazer o que me proponho, mas o receio de fazer má figura em público não avulta entre as coisas que me tiram o sono. Posto isto, vou-vos falar de Big Fish, o último delírio do meu realizador favorito, o inconfundível Tim Burton.
Arrumemos, para começar, a questão da banda sonora; como sempre a cargo de Danny Elfman, como sempre magnífica. A cinematografia de um é indissociável da mestria do outro e a quem duvide dos méritos isolados deste compositor recomendo, apenas, as bandas sonoras de Eduardo Mãos-de-Tesoura ou O estranho mundo de Jack.
A fotografia é um luxo. Dá vontade de pegar em qualquer frame do filme, emoldurar e pendurar na sala, tal é a minúcia de composição e enquadramento. Raras vezes foi tão bem retratado o imaginário prodigioso deste homem, e as subtilezas de tratamento da imagem remetem para referências cinéfilas quase subliminares. Uma delícia.
Os actores são excelentes, a direcção deles seguríssima e podia continuar a debitar superlativos. Acontece que o que torna este filme ainda mais notável na obra de Burton é o seu argumento – em particular, a sua actualidade.
A história roda em torno de um jovem jornalista de uma agência noticiosa (muito pouco inocente esta ocupação, no contexto do filme) que tenta descobrir a verdade sobre a vida do seu pai, incorrigível contador de histórias mirabolantes, nos últimos dias de vida deste. Confrontado com informações que desdizem as histórias que o seu pai contava, julga estar perante um mentiroso compulsivo de que desconhece quase tudo. O filme leva-nos a questionar a relação entre o facto ou a informação e a verdade. Ou, se quiserem dito de outra maneira, sobre a forma como preferimos ver a verdade distorcida: pelo lado frio e cínico do profissional da informação ou pelo imaginário fantasioso do homem generoso. Será que a predominância dada à factualidade no nosso mundo não nos está a esconder mais do que a revelar?

sexta-feira, abril 02, 2004

A SEXTA-FEIRA DO GRANDE BAILE ALEMÃO



Eles estão cá. Eles vão actuar em Lisboa. ELES. Karl, Ralf, Florian e Wolfgang. Os tipos que mais longe levaram (e levam) a ideia de futuro na música - sempre com o toque de humor necessário para não cairem numa seriedade suicida.

A primeira música que ouvi dos Kraftwerk foi o The Model. Era muito novinho, muito novinho mesmo, mas fiquei marcado. Quando em 1983 o single "Tour de France" estourou em todo o lado - até nos programas de Domingo do Luís Pereira de Sousa - fiquei completamente siderado. Em que cidade espacial, cercada por uma campânula de vidro, viveriam estes seres semi-robóticos, capazes de fascinar uma criança naturalmente avessa às coisas da ciência e da tecnologia com os sons criados e processados electronicamente?

Dusseldorf não tem campânulas de vidro, é certo. Mas esse rude golpe na minha fantasia infantil em nada beliscou a minha admiração por estes alemães orgulhosos do seu sotaque, da sua visão, da sua aversão ao erro.

Só aos 16 anos é que consegui comprar o "The Man Machine", esse álbum fundamental de 1978 e que ainda hoje é absolutamente "futurista" quando comparado com qualquer disco de 2004. Foi uma experiência única. O meu pai não partilha - a diferença etária é a principal causa - todos os meus gostos musicais. Nunca soube muito bem se ele gosta dos Kraftwerk. O que é certo é que ele reconheceu o "Neon Lights", que eu passei nos meus célebres tempos como modesto radialista ocasional no éter tomarense, como sendo de um dos discos "lá de casa".

É esse "carimbo indelével Kraftwerk" que eu hoje homenageio, dando-vos a conhecer, na língua de Álamo Oliveira e Isabel Almeida Santos, uma pérola da... bom... da "lírica" dos alemães. Se puderem, vão vê-los. Vai ser um rigorosa estalada de civilidade.

The Hall of Mirrors

The young man stepped into the hall of mirrors
Achas mesmo que causaste boa impressão...
Where he discovered a reflection of himself
Se olhares para o teu reflexo já tens uma ideia de como os outros te vêem
Even the greatest stars discover themselves in the looking glass
Marisa Cruz, Nina Persson, Liv Tyler... todas se redescobrem ao espelho
Even the greatest stars discover themselves in the looking glass
Scarlet Johansson, Sarah Cracknell... nunca se vêem da mesma maneira

Sometimes he saw his real face
Uns dias dás palmadinhas de satisfação na cara enquanto espalhas o after-shave
And sometimes a stranger at his place
Noutros, interrogas-te quem é o mânfio que está a olhar para ti
Even the greatest stars find their face in the looking glass
Nicole Kidman... será que se acha bonita quando se vê ao espelho acabada de acordar?
Even the greatest stars find their face in the looking glass
E a Victoria Principal? Teria mesmo confiança no Sabonete Lux?

He fell in love with the image of himself
Olhas-te ao espelho e pensas: "Foda-se! Deixai vir a mim o gajedo!"
and suddenly the picture was distorted
Mas a primeira rajada de vento pode-te deixar parecido com o Mariano Gago...
Even the greatest stars dislike themselves in the looking glass
É mais do que a puta da tua tromba que tu vês reflectida no espelho
Even the greatest stars dislike themselves in the looking glass
Tem cuidado com isso... o teu olhar faz ricochete e sonda-te por dentro

He made up the person he wanted to be
Achas mesmo que sacas mais gajas se penteares o cabelo como o Ricky Martin?...
And changed into a new personality
Então pelo menos ensaia uns meneios de cintura em frente ao espelho
Even the greatest stars change themselves in the looking glass
E assim teríamos mais um palhaço iconoclasta
Even the greatest stars change themselves in the looking glass
Como tantos outros que se criaram em frente ao espelho

The artist is living in the mirror
A partir do momento em que crias, os outros são o teu espelho
With the echoes of himself
O que tu és deixa de importar ao pé do que os outros pensam que és
Even the greatest stars live their lives in the looking glass
A Madonna será sempre uma vaca
Even the greatest stars live their lives in the looking glass
Os Kraftwerk serão sempre uns autómatos fascizantes

Even the greatest stars fix their face in the looking glass
Até o José Fanha se engana quando põe o nariz de palhaço em frente ao espelho e se acha engraçado
Even the greatest stars fix their face in the looking glass
E o Jorge Gabriel? Treinará as milhentas expressões faciais com que nos atormenta?

Even the greatest stars live their lives in the looking glass
Quando te mostras, os olhos dos outros é que te vêem
Even the greatest stars live their lives in the looking glass
Quando te mostras, as caras dos outros são milhares de espelhos à tua volta

Kraftwerk, Radio Activity

quinta-feira, abril 01, 2004

Alambridatia, 10

- Gostaste?
- Tonto. Claro que gostei.
- Tu sabes que eu não sou muito experiente...
- Mal se notou.
- De certeza que houve algumas coisas que não te agradaram por aí além...
- Deixa-te de parvoíces.
- Estou a falar a sério. Por exemplo, não me pareceu que tivesses gostado muito quando te acariciei o peito.
- Bem... foste um bocadinho bruto...
- Desculpa, foi a excitação.
- Eu sei. Esquece, não tem importância.
- Tem sim! Imensa! E também não gostaste que te beijasse as orelhas.
- O beijar era como o outro... agora, escusavas era de ter enfiado a língua daquela maneira.
- Agora estás-me a deprimir. Ao menos gostaste das dentadas no pescoço?
- Ah, esquece essas merdas...
- Nem isso?
- (suspirando)
- Isto está muito pior do que eu pensava, porra...
- Pára com isso. Queres saber das dentadas? Dá cá o teu pescocinho, para ver se gostas que eu te ferre daquela maneira.
- Está bem, já percebi. Mas dos beijinhos gostaste!
- Claro que gostei.
- Nisso sou bom.
- Bem... na verdade, podias passear um bocadinho mais com a língua. Sempre no mesmo sítio cansa um bocadito, sabes?
- Merda, também não gostaste...
- Não disse isso! Mas ninguém nasce ensinado e leva tempo até que duas pessoas aprendam os truques uma da outra.
- Agora estás a ser condescendente. Não é preciso achincalhar, Ok?
- Irra! Não é nada disso!
- Não me estás a ajudar nada com essa falsa compreensão.
- Grrrrr...
- A honestidade é muito mais importante numa relação que o amor-próprio de um ou do outro.
- Já chega. Já me estás a irritar.
- Tu é que és desonesta e dissimulada.
- Ah, é? Então, escuta bem: sabes que há outras posições além do missionário? E sabes que as mulheres também gostam de ter orgasmos? E mais uma dica: enquanto fodemos, há coisas bem mais agradáveis para fazer com a boca, além de atirar perdigotos para cima da parceira. Porra, nem um linguado sabes dar!
- (abrindo e fechando a boca, com ar incrédulo) Mas afinal, de que é que tu gostaste?
- Que tivesse acabado! Foda-se, que além de não ter jeitinho nenhum é chato!

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