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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


quinta-feira, abril 15, 2004

EXTREMO



Chega-se ao Largo da Capela de Salvaterra do Extremo, segue-se por uma rua à esquerda, vira-se à esquerda na primeira e depois à direita e novamente à esquerda, se bem me recordo. Depois, o caminho murado não tem nada que enganar: é o passeio mais bonito que se pode fazer nesta Primavera, até ao miradouro da Caseta, que nos dá uma vista única do Erges e de um castelo espanhol cujo nome nem quis reter.

A brevíssima visita que fiz a Salvaterra do Extremo levou-me de volta aos tempos em que eu visitava com frequência a terra dos meus avós. Era invariavelmente ao Sábado. Levava “roupa para estragar” e costumava cumprir à letra esse desígnio. Às vezes tinha companhia para brincar. Às vezes não. Tinha a clara percepção de que me aborrecia de morte, na maior parte dos Sábados. A não sei quantos anos de distância, esses dias parecem-me encantadores. Brincava com paus, atirava pedras, tirava água do poço para inundar formigueiros. À noite imitava o piar dos mochos e ficava naquele inocente onanismo infantil durante bastante tempo, encantado porque eles respondiam. Passei horas sentado no muro da eira do meu avô. Inventava melodias e pensava em histórias que podia escrever. E lia, lia muito, enxotando as moscas e as formigas.

Quando fui a Salvaterra do Extremo fui com bastante gente. Fui com gente demais. Queria ter ficado lá sozinho, durante umas horas. Só umas horas. Sim, que ali e agora não teria a certeza de que a minha mãe me ia chamar para o lanche, para comer pão com queijo fresco feito pela minha avó. Queria ter ficado lá sozinho. Queria ter “bebido” aquilo tudo para depois, quando me apetecesse, mostrar a quem eu quisesse. Queria ter enxotado os outros, como dantes enxotava as moscas. No fundo, acho que quis ter outra vez 11 anos e estar com umas calças de fato-de-treino velhas e saltar no caminho de pedra em pedra e fingir que um qualquer cavaco era uma espada e correr e cair e sentar-me e cantar como cantava antes, arranjando “palavras” numa “língua” foneticamente próxima do inglês (isto antes de saber que a Elisabeth Fraser fazia o mesmo nos Cocteau Twins...).

Nunca vou conseguir mostrar a ninguém o que eu vi em Salvaterra do Extremo. Se for lá amanhã, vai estar outra luz, os campos vão estar diferentes, o rio vai ter outra cor. E os outros, mesmo que tivessem passado muitos Sábados nos Matos, não têm as mesmas imagens que eu tenho guardadas atrás dos olhos. Ali na Caseta, eu vi-me como eu fui: um puto que se podia dar ao luxo de gostar de estar sozinho porque tinha sempre para quem voltar, tinha sempre quem o chamasse de volta. Foram uns 20 anos de vida, às arrecuas, que a beleza daquele sítio fez tombar sobre mim. Apanhei na cara com a futilidade das minha angústias presentes e passadas, com a felicidade espessa e palpável que tem envolvido os meus dias, os meus dias quase todos. E fiquei grato – não sei bem a quê nem a quem, mas fiquei tão grato...

Nesta minha breve existência de meias vocações, talentos entupidos e fraudulentos e alguma volatilidade sentimental, tudo ou quase tudo o que poderia ter corrido mal, não correu. A “salgadeira mental” onde, à cautela, vou guardando os momentos piores ou indizíveis, está bem trancada. A visita a Salvaterra do Extremo foi mais uma volta na fechadura.

Hei-de mostrar aquela vista do Erges a algumas pessoas. Nunca a vão ver como eu e eu nunca a vou ver como elas – todos temos os olhos extremados no nosso passado. Mas às vezes é tão gratificante trocar imagens como o é trocar fluidos. Não sou capaz de guardar a beleza para mim, nunca o fui. A minha felicidade sempre se alimentou da felicidade dos outros. A minha tranquilidade, essa, alimentou-se em devida altura de NervoVitamine Granulado e agora é auto-suficiente. Já a minha esperança funde-se com a falta de urgência. Espero que cada dia novo não venha cedo demais porque gosto da minha vida. E só quero uma coisa, que engloba as outras todas: não desmerecer o que tenho tido.



Arrotos do Porco:


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