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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


segunda-feira, março 29, 2004

O ENTERTAINER, parte V e última


O artista domina a técnica milenar da pirotecnia de interior...


- Então? Não é mais bonito isto que virem a contar anedotas porcas ao microfone na camioneta da excursão?

Uma das bailarinas chega-se ao microfone e pede: “Ó Doutor Funda, conte-nos uma anedota...”

- Bom. Vocês ouviram o que esta serigaita pediu... E o Artista respeita a vontade das assalariadas que trabalham para ele! Vamos lá à anedota, que isto é ALTA DESBUNDA COM VARETA FUNDA!! Conhecem aquela do velho que vai à farmácia e diz: “Senhor Farmacêutico, diz qu’agora que há uns comprimidos que dão força na verga. Avie-me aí uma caixinha disso para eu experimentar”. O farmacêutico lá lhe vende o material. Passada uma semana, lá volta o raio do velho à farmácia e o farmacêutico pergunta-lhe: “Então, ó tarado de merda! Aquilo deu resultado?” E sabem o que é que o filha da puta do velho responde, sabem? “Ó Shôr Farmacêutico, a idade é uma coisa tramada... Aqui em baixo não notei nada mas já não dobro os dedos das mãos há uma semana!” Ah! Ah! Ah! Ah! E outra, esperem... Outra anedota... Sabem aquela da velha que era casada com um gajo vinte anos mais novo? Então a cabra da velha vai fazer uma plástica ao rosto, ao peito e à anca. A cirurgia corre bem, a velha lá recupera e lá se mostra ao galifão do marido, vinte anos mais novo. O gajo anima-se, “Estás gira!”, lá lhe dá a vontade e pimbas!, deita a velha na cama e penetra-a. De repente fica parado e a doidivanas da velha pergunta-lhe: “Então o que foi?”. E sabem o que é que o marido responde, sabem? “Em vez de fazeres obras por fora mais valia teres rebocado as paredes por dentro!” Ah! Ah! Ah! Ah! Aquela senhora ali ao fundo não se está a rir... Estava a pôr o dinheirinho de lado para uma plástica, era? Benza-a Deus, minha senhora! Na sua idade, o melhor que lhe acontecia era ficar parecida com a Casa dos Bicos! Ah! Ah! Ah! Ah! É escusado tentar sair que as portas estão fechadas até ao final do espectáculo! Ai a merda! Bom. Vamos lá animar isto com mais uma cantiguinha de minha autoria. Preparem-se qu’isto é assim um bocado a dar para o rock. Chama-se “O Pecado Original da Segurança Social” e aposto que vão gostar.

“De manhãzinha vais p’rà fila dos correios
“Vinha cobrar o chequezinho da pensão”
P’ra subsistir tu não dispões de outros meios
Vai tudo p’rà farmácia e alimentação

Queixas-te ao balcão que a reforma é uma miséria
Tens hipertensão e a tua filha é uma galdéria
Nem descontaste p’rà Segurança Social
Desconto eu p’ra ti, é o Pecado Original

Senhora e Senhor Reformado
Vão carpir as mágoas p’ra outro lado
Vocês comem do meu ordenado
E nem tão pouco dizem “obrigado”

Com o pé-de-meia bem escondido no colchão
Queixas-te que a pensão não dá para viver
Faz castings para anúncios de televisão
E um cheque da Neoblanc tu vais receber

Deixa-te de ronha e vê se fazes pela vida
É bom estar à mama com a reforma garantida
Não és mais que um peso no bolso de quem trabalha
Vai dar serventia na garagem do Farfalha!

(entram as bailarinas, com coletes à Zé Povinho, numa rebuscada coreografia que tem por motivo base o manguito)

Senhora e Senhor Reformado
Vão carpir as mágoas p’ra outro lado
Vocês comem do meu ordenado
E nem tão pouco dizem “obrigado”

Senhora e Senhor Reformado
O vosso lugar é no passado
Suportar-vos é fardo pesado
E não tão pouco dizem “obrigado”...
Vai trabalhar, ó velho danado!”

- Hiiiiiii Ahhhhhhhh! Altamente, não? Para aproveitar o clima emocional criado por esta poderosa cantiga, uma das minhas bailarinas vai passar por vocês, estimado público, com um saquinho onde poderão depositar a vossa generosa contribuição para a Fundação Vareta Amiga, uma IPSS em fase embrionária que pretende ajudar quem precisa. O meu obrigado desde já por qualquer donativo que possam fazer. Bom... Estimado público, tudo tem um fim. Isto tanto vale para as vossas vidas como para este espectáculo. É verdade. Estamos a chegar ao fim da ALTA DESBUNDA COM VARETA FUNDA!! Mas não poderíamos finalizar o espectáculo sem uma mensagem de esperança no porvir. (entram as bailarinas, com túnica branca e segurando velas) Foi um dever actuar para vocês, é como eu ganho o meu pãozinho, mas nem me custou muito. Deixo-vos com “A Luz”, um longo número musical de minha autoria, e desejo-vos uma boa viagem de regresso aos pardieiros onde vivem. Boa noite!

“Dá um passo sereno
Um simples passo sereno
Afasta-te de tudo quanto é terreno

É só um passo em frente
Um mínimo passo em frente
Acontece o mesmo a toda a gente
Acontece o mesmo a toda a geeeente! (bem gritado, à Jim Morrison)

(spoken word cavernoso, à Adolfo Luxúria Canibal)
Os sonhos que tens à noite
Os sonhos negros que tens à noite
São vislumbres do desconhecido
À mistura com o que podia ter sido
Se outro caminho tivesses seguido
É um bocadinho tarde para estares arrependido,
Sabes? Pois é, é fodido...
Terás o fim que tiveres merecido
Tenhas sido bom ou bandido
Os sonhos que tens à noite
Esses dependem de ti na cor
Se são negros, em negro te avalias
Se são brancos, alimentas-te de fantasias
Se pudesses, que cor escolhias?
Se pudesses, que sonhos construías?
Se pudesses, podias...
MAS NÃO PODES!
Os sonhos que tens à noite
Misturam-se com o teu dia nestes teus dias do fim
Sempre soubeste que ia ser assim
A angústia de pressentir o “jardim”
Se pudesses escolher, vivias?
Achas que era isso que merecias?
Julgando friamente o que foi o fio dos teus dias?
Achas que era isso que escolhias?
Olha bem os sonhos que tens à noite
São o espelho daquilo por que optaste – e do outro lado
São o espelho daquilo que conquistaste – e do outro lado
O lado que deixaste por viver
O lado que agora deves esquecer
Tens mais uma viagem para fazer
Uma viagem que os sonhos que tens à noite te deixam antever
É só mais uma viagem que tens para fazer...
Sabes o que lhe chamam?

MORREEEEEEEER!

(retoma a melodia, bright and beautiful)
O outro lado não te pode assustar
Seja tarde ou cedo tu vais lá chegar
No caminho não te vais enganar
Há uma luz para te guiar
Olha bem p’rà luz
Olha bem como ela seduz
Olha bem p’rà luz
Está à tua porta, a fazer truz truz
Segue aquela luz
Olha bem como ela seduz
Segue aquela luz
Abre a porta à luz que bate truz truz...

(a produção acciona os meios de pirotecnia)
Olha bem p’rà... FODA-SE!


Ou talvez não dominasse...

Aqui repousa eternamente o meu sonho de abraçar uma carreira como entertainer.

FIM.

sexta-feira, março 26, 2004

O ENTERTAINER, parte IV


O artista passa as emoções ao público...

- Então? Gostaram? Parece-me que vejo uma senhora a chorar, ali ao fundo... Diga lá, minha senhora. Isso são lágrimas? Ou cataratas? Ou rinite?

Entram de novo as bailarinas, cada uma queimando o seu pauzinho de incenso.

- Bom. Estimado público, isto é ALTA DESBUNDA COM VARETA FUNDA, sim... Mas eu sei que a vertigem do fim vos faz abraçar alguma forma de misticismo. Vocês não se conformam com o facto de a morte ser o fim, não é? E quando já sentem o seu bafo quente e pútrido no pescoço (a produção liga o aquecimento da sala no máximo), tentam divisar qualquer esperança de outra vida no fim desta... Pobres papalvos... NÂO HÁ NADA, PERCEBEM?! NADA!! Só a decomposição dos vossos corpos flácidos e abjectos... Mas não quero ser eu a dar-vos as más notícias. Pelo contrário! Vamos alimentar a ilusão com um faduncho animadinho que eu escrevi para vocês e a que chamei “Fado do Outro Lado”. É um típico fado meia noite. Espero que gostem. Anda, Pacheco!

“Queria encontrar o bruxedo
Que me desse garantia
Queria encontrar o bruxedo
Que me desse garantia
De enfrentar o fim sem medo
Que depois da morte vivia
De enfrentaaaar o fim sem medo
Que depois da morte vivia

A São Pedro e a Lucifer
Eu já pedi por ajuda
A São Pedro e a Lucifer
Eu já pedi por ajuda aaaaaaaai
Acuda-me quem puder
Seja Jesus Cristo ou Buda
Acuuuda-me quem pudeeer
Seja Jesus Cristo ou Buda

Não me conformo em morrer
Ter a existência acabada
Não me conformo em morrer, não
Ter a existência acabada
Nunca mais comer nem beber
Cair nos braços do nada
Ai nunca mais comer nem beber
Cair nos braços do nada

Seja eu alma penada
Ou reencarne num boi
Seja eu alma penaaaaaaada
Ou reencarne num boi
Não quero sofrer mais nada
Nem lembrar-me do que foi
Não quero sofrer mais naaada
Nem lembrar-me do que foi

Dizem que o que lá vai, lá vai
Eu quero saber é se volto
Dizem que o que lá vai, lá vai
Eu quero saber é se volto
Se no Céu eu encontro o Pai
Em nuvens de anjos envolto
Se no Céu eu encontro o Paaaaaai
Em nuvens de anjos envolto

Que morrer sem um sinal
De que vou ter continuação
Que morrer sem um sinaaaaaaaaal
De que vou ter continuação
Ai p’ra quê sofrer então
Com hérnias e hemorroidal
Ai p’ra quê sofrer ENTÃÃÃOOO
COM HÉRNIAS E HEMORROIDAL

Prlong Prlong”

- Então? É bonito. Eu adivinho nos vossos rostos que este fado vos tocou. Cá o Vareta bem sabe de que é que gostam os velhadas! Gostam duns fadunchos, gostam de folclore, gostam da Tonicha... “Arre burra qu’amanhã é sexta!”... Palhaços! Gostam do Manuel Luís Goucha. Gostam d’As Lições do Tonecas... “Então ó Menino Tonecas, sabe-me dizer em quantas partes se divide o estômago da vaca? É em duas, Senhor Professor! Duas?! Sim, é o estômago e a cona. Ó Menino Tonecas!! Mas o que é que está a dizer?!! Então, a minha mãe é que diz que a vaca da vizinha tem tal fome de homem que deve ter a cona no estômago...” Acham graça, não é? Palhaços!... Enfim... Mas isto é ALTA DESBUNDA COM VARETA FUNDA, e o espectáculo não pode parar! Dizem que burro velho não aprende línguas, não é? Aquela senhora está-se a rir... Cá para mim o seu marido nunca aprendeu foi a usar a língua dele, não? Hum? Conte lá. A senhora também o ensinou a brincar ao Calippo? Hum? Lambe à volta para não desperdiçar o que vai derretendo? Devias ser fresca, devias... Galdéria! Bom. Como este espectáculo também é educativo, vamos avançar para uma aula de língua estrangeira. É verdade. Vou interpretar uma canção em estrangeiro, mas tendo o cuidado de traduzir cada verso. Assim, vocês, burros velhos, poderão associar a fonética do estrangeiro ao seu significado em português. Quem é amigo, quem é? A música chama-se “Forever Young”, que quer dizer “Viver p’ra quê?” e era de um agrupamento musical da Alemanha chamado Alphaville, que quer dizer “Albergaria-a-Velha”. Vamos lá a isto.


“let's dance in style, lets dance for a while
Não tenho dentes, não posso comer
heaven can wait we're only watching the skies
Não tenho gengivas para a placa dentária
hoping for the best but expecting the worst
Uso meias de descanso p’ra apertar as varizes
are you going to drop the bomb or not?
Ó Cruel Ceifeira, quando vens?
let us die young or let us live forever
Os filhos acham que devo anos à cova
we don't have the power but we never say never
Olham p’ra mim e já so vêem partilhas
sitting in a sandpit, life is a short trip
No Centro do Dia ou na Geriatria
the music's for the sad men
É onde eu vou acabar
can you imagine when this race is won
A andropausa há muito chegou
turn our golden faces into the sun
Foi-se a reacção e ninguém m’avisou
praising our leaders we're getting in tune
Mulher e putedo, tudo se acabou
the music's played by the madmen
Vocês agora querem é rock
forever young, i want to be forever young
Viver p’ra quê? Aos oitenta e três, viver p’ra quê?
do you really want to live forever, forever and ever
Acham que vão ficar p’ra semente? Ó gente demente
some are like water, some are like the heat
O médico não me deixa beber vinho
some are a melody and some are the beat
O coração não bate sem o aparelhinho
sooner or later they all will be gone
Volta e meia tenho que levar soro
why don't they stay young
E mudar a algália
it's so hard to get old without a cause
Se há dez anos soubesse o que sei hoje
i don't want to perish like a fading horse
Não ia permitir chegar a este nojo
youth is like diamonds in the sun
Não reagi bem à viuvez
and diamonds are forever
E a viuvez é fodida
so many adventures couldn't happen today
Perdoa-me esposa o quanto eu te encornei
so many songs we forgot to play
Todas as gajas com quem me deitei
so many dreams are swinging out of the blue
Hoje a enfermeira trata-me como tu
we let them come true
E lava-me o cu
forever young, i want to be forever young
Viver p’ra quê? Aos oitenta e três, viver p’ra quê?
do you really want to live forever, forever and ever
Acham que vão ficar p’ra semente? Ó gente demente
forever young, i want to be forever young
Viver p’ra quê? Aos oitenta e três, viver p’ra quê?
do you really want to live forever, forever and ever
Acham que vão ficar p’ra semente? Ó gente demente

- Então? Não é mais bonito isto que virem a contar anedotas porcas ao microfone na camioneta da excursão?

(continua, mas só mais uma vez)


quarta-feira, março 24, 2004

O ENTERTAINER, parte III


Uma produção modesta... à imagem do autor.


- FODA-SE! Vocês são um público difícil, caralho! Parece que não acham piada a nada...

Solto a cadelinha de peluche da cintura e lanço-a para a audiência. As velhinhas esgadanham-se a ver quem a agarra. Mal elas sabem que a produção teve o cuidado de espalhar mayonnaise pela zona do baixo ventre da bicha...

- Bom. Estimado público, espero que isto não esteja a ser demasiado intenso para vocês. Acedi a este convite do INATEL com o maior prazer. Sempre achei que a velhice não tem que ser sinónimo de tristeza. Claro que vocês sofrem na pele e sabem que existem todas as razões do mundo para se sentirem tristes. Mas se conseguirem conformar-se com esse cenário negro, podem abraçar uma semi-existência de felicidade medíocre. Foi isso que tentei explicar à minha avó, para a qual compus esta canção, com a qual sei que muitos de vós se vão identificar. Chama-se “Incontinência” e estou a contar com as vossas palminhas no refrão!

“Rir
Rir! (gritam as bailarinas em coro, vestidas com o mesmo body e fraldões)
Tossir
Cof Cof (coro)
Espirrar
Atchum (coro)
Brincaaaaaaaaar
Tudo isto é motivo p’rá urina se entornar
Ping Ping Ping Ping Ping Ping Ping Ping (coro, vivace, o último ping coincide com a primeira nota do próximo verso)

Se o mau cheiro queres evitar
Então o fraldão tu vais ter que usar
A Ausonia pode ajudar
E uma amostra grátis te enviaaaar
Ping Ping Ping Ping

Se com os teus netos queres brincar
Pegar-lhes ao colo sem urinar
Se queres dormir sem a cama molhar
Ou pões o fraldão ou vais-te operaaaaaaar
Ping Ping Ping Ping

Rir
Rir!
Tossir
Cof Cof
Espirrar
Atchum
Brincaaaaaaaaar
Tudo isto é motivo p’rá urina se entornar
Ping Ping Ping Ping Ping Ping Ping Ping
Vamos lá outra vez!!
Rir
Rir!
Tossir
Cof Cof
Espirrar
Atchum
Brincaaaaaaaaar
Tudo isto é motivo p’rá urina se entornar
Ping Ping Ping Ping Ping Ping Ping Ping

(ponte calma e melódica)
Longe vão os tempos em que te sabias controla-aar
O fluxo urinário é algo que não consegues domina-aaaar
São tantos os problemas que já tens que enfrenta-aaar
E a incontinência é só mais um p’ra atrapalha-aaaar

Rir
Rir!
Tossir
Cof Cof
Espirrar
Atchum
Brincaaaaaaaaar
Tudo isto é motivo p’rá urina se entornar
Ping Ping Ping Ping Ping Ping Ping Ping

(falso refrão do coro)
Tens problemas na coronária
E incontinência urinária
Tens as mãos com urticária
E incontinência urinária

Rir
Rir!
Tossir
Cof Cof
Espirrar
Atchum
Brincaaaaaaaaar
Tudo isto é motivo p’rá urina se entornar
Fschhhhhhhh!!!!!!!

- Então, gostaram? Já vos vejo mais animaditos... Aquela senhora ali ao fundo é que está muito corada! Não me diga que de tanto bater palminhas não se conseguiu segurar, ih ih ih ih! Bom. Mas por mais que queiram mijar, isto não pode parar! Isto é ALTA DESBUNDA COM VARETA FUNDA!!! Agora um momento romântico. Os senhores podem dançar com as senhoras, mas poupem-me àquele espectáculo deprimente de duas senhoras a dançar juntas. Este é um slow, bem bonito, bem terno, bem carinhoso. Escrevi-o para vocês e chama-se “Amor no Outono da Vida”. E tenho uma surpresa na manga!!! Uma convidada muito especial! Vamos lá a isto, então...

“Foi no Centro de Dia que te conheci
Vias a reposição do Levanta-te e Ri
Esqueci o galão e o pão com manteiga
Só queria olhar a tua face tão meiga

Perguntei aos outros se sabiam quem eras
Só sabiam que tinhas oitenta primaveras
E lá estavas sentada co’as mãos no regaço
Pus um copo nas calças a fingir um chumaço

(refrão)
Dirigi-me a ti, não sei o que me deu
Sem sangue no membro que há muito morreu
Vem sentar-te à lareira, disse eu

(entra Cristina Caras Lindas, que entoa a última frase do refrão)
“Só se empurrares a cadeira, Romeu”

(parte de spoken word, cortesia Cristina...)
O Outono da Vida. Os anos do fim de pessoas que deram tudo pelos outros. Pessoas. Velhinhos. Reformados do Regime Geral. Lares. Centros de Dia. Depósitos de pessoas. Pessoas que têm muito para dar. Sonhos. Esperanças. Uma vida inteira para contar. O momento bonito em que duas solidões... er... solidãos?... er... O momento bonito em que duas pessoas sozinhas se encontram. Se juntam. Se gostam. Duas histórias de vida que se entroncam. Num só caminho. Numa só vida. A dois. Um sentimento sem idade. Duas pessoas. Juntas. Felizes. Apesar de tudo. Apesar dos anos. Pessoas. Gente bonita e interessante. Como vocês...

Foi ao pé da lareira que eu te beijei
Não foi fácil, eu sei, e até corei
A trombose deixou-me com a boca franzida
Mas encontrei o amor no Outono da vidaaa...

Dirigi-me a ti, não sei o que me deu
Sem sangue no membro que há muito morreu
Empurrar a cadeira não é dificuldade
Estás a mexer num copo, essa é que é a verdade

Dirigi-me a ti, não sei o que me deu
Sem sangue no membro que há muito morreu
(e entra a Cristina)
“Ainda bem que tens força p’ra empurrar a cadeira
Mas o teste final é o da arrastadeira”

(a duas vozes, para o final glorioso)
Boca franzida
Perna tolhida
Centro de dia
Paraplegia
Incontinência
Triste impotência
A saúde fodida
No Outono da Viiiiiiiiidaaaaaaaa

Dirigi-me a ti, não sei o que me deu
Sem sangue no membro que há muito morreu
Mas não vale chorar pela força perdida
Encontrámos amor no Outono da Viiiiii-i-daaa”

- Obrigado! Obrigado! O vosso aplauso para Cristina Caras Lindas... Já chega, pronto! O espectáculo é meu! Vai-te lá embora, ó vaca leiteira!

As bailarinas agarram na Cristina Caras Lindas de cera – sim, ou pensavam que era verdadeira? Eu é que fazia a voz dela, em falsete. – e levam-na para fora do palco.

- Então? Gostaram? Parece-me que vejo uma senhora a chorar, ali ao fundo... Diga lá, minha senhora. Isso são lágrimas? Ou cataratas? Ou rinite?

(continua)

terça-feira, março 23, 2004

O ENTERTAINER, parte II



- Bom. Vamos lá continuar com isto.

Uma das bailarinas limpa-me o rosto com uma pequena toalha de algodão turco. Dou-lhe uma sonora palmada no traseiro e agradeço-lhe:

- Obrigado, minha linda. Devias aproveitar para limpar a baba aos gajos da audiência... Ao menos com estes estás a vontade, que já sabes que aquilo não dá nada. Por falar nisso, deixem-me contar-vos uma piada muita gira. Sabem o que é pode acontecer de mais parecido com uma erecção a um tipo com mais de sessenta anos? Não? Uma cãibra! E sabem porquê? É a única hipótese que têm de um músculo ficar duro!! Ah ah ah ah! Obrigado, obrigado... Eu sabia que iam gostar. Também há quem faça a mesma piada com trombose, mas acho que é de mau gosto, não é? Bom... O espectáculo não pode parar porque isto é ALTA DESBUNDA COM VARETA FUNDA!!

Toco uma série de acordes dissonantes e gemo e grunho por cima.

- UAU! Ray Charles on acid!! O Ray Charles já era ceguinho quando eu nasci. Sim, vou-vos falar da minha infância. Vocês já não se lembram da vossa, pois não? Pode ser que as memórias da minha vos enterneçam. Eu podia ser cínico e dizer que nasci numa família muito pobre, que ia descalço para a escola, que dividia uma sardinha ao almoço com a minha irmã e que os pais me obrigaram a deixar de estudar para os ajudar no campo. Era fácil, não era? Copiava umas coisas do Soeiro Pereira Gomes e punha-vos a chorar e a atirar moedas para o palco. MAS NÃO! Vou-vos falar da minha infância próspera e estragada com mimo. Ouçam bem esta canção, que compus para vocês e a que chamei “Aprende comigo, ó pobrezinho”.

“Usas as roupas que eram do teu irmão
Não tens brinquedos, só jogas ao pião
Não tens conduto p’ra acompanhar o pão
Tu és pobre e eu não

Que queres que te diga o mundo é mesmo assim
Por mais que tu faças tens inveja de mim
Tu não tomas banho eu lavo-me em jasmim
Tu és pobre até ao fim

Meto-te nojo e achas injusto
Consigo tudo sem qualquer custo
Alimento-me bem, sou forte e robusto
Tu és seco como um arbuuuuuu-sto

Aprende comigo, ó pobrezinho
Se queres uma gaja no teu ninho
Tens que ter no bolso o dinheiriiiiiiii-nhooooo

Aprende comigo, ó pobrezinho
Enquanto fores pobre estás sozinho
Eu fico com a rosa e tu com o espiiiiii-nhoooo

Saíste da escola e não tens instrução
És assalariado, eu nasci p’ra patrão
Eu bebo champanhe, tu bebes carrascão
Tu és pobre e eu não

Eu tenho o dinheiro que tu querias ter
Tu matas o corpo eu acumulo poder
No fim do mês há juros a vencer
Tu és pobre até morrer

Aprende comigo, ó pobrezinho
Se queres uma gaja no teu ninho
Não basta ofereceres muito cariiiiii-nhoooooo

(Desvario instrumental. Aparece uma bailarina vestida de “pobrezinho” e as outras escarnecem dela enquanto gritam “Adeus pobrezinho/Segue o teu caminho/P’ra sempre sozinho/Adeus pobrezinho” até que voltamos ao refrão)

Aprende comigo, ó pobrezinho
Enquanto fores pobre estás sozinho
Só tens uma mão por buraquiiiiiiii-nhoooo

Aprende comigo, ó pobrezinho
Não há volta a dar neste caminho
Eu fico com a rosa e tu com o espiiiiiiii-nhoooooo

- Então?! Altamente, não? O que eu atazanava a cabeça aos filhos da criadagem com esta canção... Bons tempos! Mas mesmo sendo rico e bem nascido, eu carregava em mim uma semente de revolta. Uma revolta cuidadosamente medida: apenas o suficiente para poder viver dos rendimentos, por um lado, e cultivar um ar gauché e artístico, por outro. Essa revolta eclodiu aos meus 12 anos, num chá que a mãe tinha organizado lá em casa para as amigas. Pediram-me para cantar e eu apresentei o meu número: “Queridas senhoras”, sim, porque eram senhoras, não eram umas pelintrosas como vocês; “Queridas senhoras, vou interpretar uma canção da minha autoria a que chamei O Glorioso Mundo Animal”. Era assim, a canção...

(as bailarinas sentam-se à minha volta, no chão, preparando-se para esta balada psicadélica)

“Os meus cãezinhos ternurentos
Fazem muita companhia
Nos bons e nos maus momentos
Quer de noite quer de dia

O meu cão é o Tobias
A cadela é a Béquinhas
Sempre em grandes tropelias
E eu a fazer-lhes festinhas

Estes meus dois amiguinhos
Nem precisam de falar
Basta ver os seus olhinhos
Sempre por mim a chamar

Eles brincam os dois juntos
Brincam comigo também
Eu desfio-lhes os presuntos
Das galinhas da minha mãe

(começo a atacar uns acordes menores, mais negros e mais tensos)

Mas nem tudo vai bem neste mundo animal
Eles querem fazer o que faz um casal
O Tobias exibe o órgão sexual
E a Béquinhas vai ficar prenhe com o líquido seminaaaaaaaa-aaaaal

(e ataco o refrão doce e retemperador..)
Tal como o meu pai e a minha mãe
Os cães querem brincar e foder também
O glorioso mundo animal
Também é regido pela pulsão sexual
Nada nos meus cães é inocente
Só querem foder, como toda a gente
Nunca pensei que isto fosse assim
Tenho que ter uma cadela para mim

Muito me perturba esta descoberta
Anda cá Béquinhas não armes em esperta
Assim como assim até já estás aberta

(levanto-me do piano, entra um playback instrumental, e começo a perseguir uma das bailarinas que vai fugindo de mim, de gatas, ganindo. Apanho-a, simulo que a tomo por trás, ela uiva e eu arfo. As outras bailarinas vão-se envolvendo em carícias e cantando “Também no glorioso mundo animal/O orgasmo é o momento fundamental”. E é isso mesmo, o orgasmo, que eu e a bailarina fingimos, gritando assustadoramente. As luzes apagam-se. Silêncio, por uns momentos. As luzes acendem-se e eu tenho uma cadelinha de peluche amarrada à cintura.)

- FODA-SE! Vocês são um público difícil, caralho! Parece que não acham piada a nada...

(continua)


segunda-feira, março 22, 2004

O ENTERTAINER, parte I



Queria estar sozinho, no palco de um Casino decadente, apenas com um microfone, um Fender Rhodes – não necessariamente igual ao da imagem – e um corpo de bailarinas recrutadas após rigoroso processo de selecção. Queria actuar para excursões de idosos associados do INATEL. Queria ser Vareta, the one and only, o “ol’ brown eyes” português. Queria oferecer a essa franja imunda da populaça um grande espectáculo musical a que chamaria “Alta desbunda com Vareta Funda!!” – os dois pontos de exclamação são essenciais, explicou-me um técnico de marketing...

Seria um espectáculo com cenário minimalista, cuidadosamente preparado, concebido para que as pessoas se sentissem bem com a ideia de ganhar idade, com a ideia do Outono da vida. Um misto de La Féria e IURD, com uns laivos de Ricardo Pais e Olga Roriz (a ver se me calhava algum prémiozinho...)

O início daria o mote. A sala escura. Entra um bandalho qualquer que anuncia que se irá iniciar o espectáculo e se agradece silêncio absoluto. O bandalho desaparece. A sala continua escura mas ao fundo ouve-se já a minha distinta e cristalina voz, num diálogo ensaiado com o gerente:

- Ouça lá, ó seu borra-botas! Eu estou-me a cagar para isso! Já lhe disse que só actuo se as cadeiras tiverem resguardos de plásticos! Farto de actuar para velhos ando eu e sei muito bem que à terceira noite já não se aguenta o cheiro a mijo cediço que se desprende dos estofos!
- Mas ó Shô Vareta, eu...
- Shô Vareta o caralho! Ou me trata por Doutor Funda ou não temos espectáculo! Ou quer ir o senhor entreter esta chusma de papalvos que ainda cheira a vomitado dos enjoos na camioneta da excursão?!
- Não, não... eu... ó Shôtôr, é só esta noite. Amanhã tratamos dos resguardos. Juro-lhe pela minha santa mãezinha! Mas agora já estão à sua espera...
- Bom. Se estão à minha espera é melhor eu ir actuar, senão aqueles trastes começam a roncar que parecem o motor de um cacilheiro... Foda-se! Deus me dê paciência p’a esta merda! Bom. Vareta, filho, cá vai disto!

E pumbas! Entro de rompante no palco, com o meu casaco de lamé dourado e o cabelo cuidadosamente puxado para trás com Brylcreme, atravessando as espessas cortinas de veludo carmim. Finjo que o pó das cortinas me afecta a garganta e vou tossindo e escarrando. Dirijo-me ao público:

- Pensam que só os velhos é que têm doenças, não?

A cabine de som está avisada e dispara a fita com aplausos e gargalhadas, que fica temporizada para tocar de 30 em 30 segundos. Sento-me ao piano, toco uma escala, paro. Encosto a cabeça às mãos e confidencio:

- Caralhos m’a fodam se me lembro como é que se toca esta merda... Não há-de ser nada... Bom. Boa noite, estimado público! O meu nome é o que os meus pais me deram e vocês têm tanto a ver com isso como eu tenho com o vosso hemorroidal. Estou aqui para vos dar a exacta medida de entretenimento por que vocês pagaram e nem mais um cêntimo! Ponham cola na placa, verifiquem o elástico dos fraldões, e carreguem as pilhas dos pace-makers! Agarrem-se bem porque isto vai ser ALTA DESBUNDA COM VARETA FUNDA!!!!

Ataco dó e sol a um ritmo vertiginoso e não saio de dó e sol durante três minutos. Há que testar a disponibilidade mental do público... É então que entoo a primeira canção da noite:

- Esta é uma canção jazzy e upbeat. Espero que gostem. Chama-se “Formol” e gostava de a dedicar a todos aqueles de vós que já estão mais perto do fim...

“Já passaste por quanto havia a passar
E o que há-de ser já nada tem p’ra te oferecer
Sim tu sabes que o fim está chega-a-ar
Que o teu corpo em pó se vai desfazer

Escolhe a parte de ti que gostas mais
E escreve nas disposições finais
“Esta parte não há-de ir a enterrar
Em formol a quero conserva-a-ar”

Formol Formol Formo-o-ol
Quando a minha alma ruma ao sol
Algo de mim vai cá ficar
Em formol me vou conservar

Todos!! (entram as bailarinas, em body de lantejoulas, segurando frascos com conteúdos suspeitos)

Formol Formol Formo-o-ol
Com umas gotas de Sonasol
Em formol um órgão vou deixar
P’ra mais tarde recorda-a-ar

Formol Formol Formo-o-ol
Shubyduba dubadu dubydo-ol

Formol Formol Formo-o-ol
Quando a minha alma ruma ao sol
Ao morrer ainda vou pensar
Que alguém de mim se vai lembra-a-aaaaaaaaar”

- Podem aplaudir, caralho! Ou as artroses não vos deixam bater palminhas?!... Bom. Vamos lá continuar com isto.

(continua)

domingo, março 21, 2004

Hoje fui visitar a família



sexta-feira, março 19, 2004

SEXTA-FEIRA E DIA DO PAI... NADA MAU

O Dia do Pai é um dia do meu pai. Cada um de nós pensará o mesmo, certamente. A primeira memória que eu tenho do meu pai é dos meus 2 anos. Lembro-me de estarmos numa loja de brinquedos, em Ayamonte, e do meu pai me pegar ao colo para eu escolher o carrinho que queria. Escolhi um Renault 16 de tracção. Ainda só vou no primeiro parágrafo e já escrevi três vezes "meu pai" - quatro, agora. Que se foda o estilo: o pai é meu e eu amo-o.

Não há grandes canções sobre o pai - isto porque eu ainda não escrevi uma, claro. E numa sexta-feira tão marcada, sinto-me na obrigação de vos dar a ler, na língua de Bocage, Maria Roma e Margarida Rebelo Pinto, uma pérola da lírica pop contemporânea que tenha algo a ver com o tema.

Escolhi - e escolhi muito bem, quaisquer opiniões contrárias serão ignoradas - um autor que é o protótipo do filho em quem os pais terão um orgulho rarefeito. Julian Cope. Esse mesmo, o freak, o drogado, o psicótico, o louco, o génio que esteve nos Crucial 3, nos Teardrop Explodes e a solo.

Este "Tiny Children" não fala directamente num pai. Ainda assim, transmite uma sensação de angústia e desorientação infantil - uma daquelas sensações que um pai, como ninguém, tem o condão de apagar.

Tiny Children


Half the time
Uma vez por outra, na adolescência, eu ficava horas no quarto
As I sit in disarray
A sentir pena de mim
I am thinking of a dream I never had
Que seria daquela idade sem uma ou outra crise de amargura?...
Then I awake
Mas evitava mostrar-te
And for awhile
Tu merecias um filho feliz
I call your name in Colin's House
Eu digeria a angústia em poucas horas
But tiny children have a way of falling down
E tu davas-me espaço para ir crescendo

Oh I could make a meal
Poucas coisas me martirizavam mais
Of that wonderful despair I feel
Que as muito poucas incompreensões que fomos tendo
But waking up I turn and face the wall
A culpa é tua, de eu ter sido um jovem atípico, sem problemas com a tutela...

The car arrives and takes me back again
Lembras-te quando eu ía partindo o eixo da carrinha de serviço num lancil do Mercado?
Drifting through imaginary plays
Estavas a ensinar-me a conduzir. E só sorriste.
And fighting men aboard a raft
Não me lembro da última vez que discutimos.
A sailing ship has run aground
Nem mesmo quando à nossa volta algumas coisas ameaçavam ruir.
And confidence is valued in these days
É um entendimento tácito, alimentado a confiança.

But each character
Acho que herdei de ti, esta devoção pelos "nossos".
Is plundering my home
Somos actores secundários que ajudam os outros a brilhar.
And taking everything that is my own
Comprazemo-nos nas mais pequenas alegrias e transformamos as tristezas em úlceras.

Oh no I'm not sure about
Tenho cada vez menos certezas - e isso é bom, parece-me.
These things that I care about
A importância de quase tudo tem sido relativizada.
Oh no I'm not sure, not anymore
Mas, e que se lixe a fidelidade ao original, tu és uma certeza já há quase 28 anos.

Teardrop Explodes, Wilder


quinta-feira, março 18, 2004

Alambridatia, 9

- Tu tens outra.
- O quê?
- Tu tens outra.
- De onde é que te veio essa ideia?
- Já não me desejas.
- Que parvoíce!
- É? Então porque é que já não fazemos amor com a mesma frequência com que fazíamos?
- Não?
- Claro que não. Dantes era sempre que podíamos. Agora passam dias sem que me procures.
- Bem, a novidade tem um efeito afrodisíaco que se perde...
- Ah, queres então dizer que agora estou usada?
- Nada disso! Mas sabes que a atracção sexual funda-se muito na novidade, no desejo não satisfeito. Após algum tempo de convivência desvanece-se esse efeito e fica o afecto pela tua companhia, pela tua inteligência, a tua perspicácia, a tua capacidade de análise, o teu humor, etc...
- Queres dizer que só a minha personalidade te atrai, neste momento?
- Claro que não. Mas, a prazo, é essa que vai segurar a nossa relação. Eu amo-te pelo que tu és, não pelo que me fazes ou pelo que eu te posso fazer na cama.
- Então o sexo não entra nessa tua contabilidade?
- Entra, mas não é fundamental. O resto é muito mais importante.
- Agora percebo como me enganei.
- Claro que te enganaste.
- Tu não tens outra. Tu és paneleiro e nem sabes.

terça-feira, março 16, 2004

HE AIN'T HEAVY, HE'S MY BROTHER



O meu irmão mais velho tinha 14 anos quando eu nasci. 14 anos! Já era muito grande. Era uma espécie de entidade intermédia entre o meu outro irmão e os meus pais. Deu para perceber desde pequeno que era "naquilo" que as crianças se tornavam quando cresciam: pessoas com uma vontade própria que lutavam para conseguir o que queriam.

Enquanto eu ía crescendo, ele ía estando obrigatoriamente menos presente. Mas estava lá. E era muito importante tê-lo lá. Lembro-me de algumas coisas. Melhor: lembro-me de muitas, mas só vou falar de algumas.

Lembro-me do fascínio pelos discos dele. Por causa disso, aos 4 anos eu era o fã mais empedernido dos Kiss. A minha aspiração era ser o baterista dos Kiss e sarrazinava a paciência da minha mãe improvisando baterias com talheres e tampas de Tofina. Por causa disso, quando o meu pai um dia, aí pelos meus 6 anos, me perguntou se eu queria ouvir algum disco, eu fui logo escolher o "New Golddream" dos Simple Minds, deixando para trás os singles da Amália com que o meu pai me acenava.

Lembro-me de algumas namoradas dele. A Lena, que uma vez foi lá a casa. A Teresa, que estava uma vez na esplanada d'A Severa - creio que foi a primeira vez que me sentei num café. A Geni, que foi comigo e com ele comprar livros escolares à Raíz. E a mulher dele. A minha cunhada. A minha "irmã-de-lei", traduzindo o estrangeirismo, que é muito mais do que de lei. Lembro-me da primeira vez que ela foi lá a casa. Foi em Maio e chuviscava. A minha mãe disse-lhe que "a chuva de Maio faz as raparigas bonitas" e eu retorqui "então esperemos que não haja seca". E ela riu-se. Eu era muito novo, ainda. 10, 11 anos, se não me engano. E ela riu-se. Fiquei feliz por isso, por conseguir fazer rir os adultos (e se calhar a culpa é dela, de eu achar que tenho piada...).

Lembro-me dos postais de aniversário delirantes que ele me escrevia. Lembro-me que me ofereceu os Diários de Adrian Mole. Lembro-me que me oferceu o "Secrets of the Beehive" do David Sylvian - conseguem imaginar a importância disto? Aí pelos meus 13 anos eu ficava proprietário de um disco magnífico, que me terá marcado mais que nenhum outro. Lembro-me que me ofereceu o meu primeiro perfume.

Ajudou-me com um projecto de "jornal de turma", no meu 7º ano, que nunca chegou a surgir. Escreve como pouca gente que eu conheça. Mostrava-lhe alguns dos meus contos e ele fazia notas à margem. Tinha paciência para isso. E tinha e tem paciência para me ouvir falar de discos - é um daqueles temas em que, admito, consigo ser muito maçador.

Como se tudo isto não bastasse, ele é o pai dos meus sobrinhos. Ser tio foi das coisas mais preciosas que me aconteceu. Fez-me perceber que o tempo não acabava em mim (é uma tentação, quando se é o mais novo da família) e que todos os sacrifícios valem a pena quando são em favor daqueles que vivem a seguir e que são "nossos".

O meu irmão faz hoje anos. Não quero tornar este blog num placard de mensagens de aniversário, mas esta é uma dívida que há muito clamava por promissória - uma promissória que só poderá dizer que esta dívida não há como pagar (e nem isso é requerido). Enquanto criança, eu pude ver de perto como se passava da adolescência à idade adulta, como se ganhavam e honravam as responsabilidades. Sem ter deixado de ser uma criança (quase) normal e feliz, sempre tive um bocado da idade dos meus irmãos. Estes vislumbres do futuro não tinham preço. Obrigado. Parabéns.

segunda-feira, março 15, 2004


De orelhas em pé - XII

...e o impossível aconteceu. O PP espanhol, ainda assombrado pelo espírito de José Maria Aznar, perdeu as eleições em Espanha. Variadíssimas coisas se podem extrapolar, louvar e deplorar deste Domingo, como por exemplo...

- O PSOE tem dois berbicachos em mãos para resolver. Em primeiro lugar, conquistar uma opinião pública que não lhe ofereceu a vitória por se ter deixado seduzir pelo seu programa eleitoral. Mais que votar com a cabeça ou o coração, os espanhóis votaram com o estômago e contra a repugnância que lhes causou a tentativa de instrumentalização dos atentados de 11 de Março. O Governo agora cessante já antes mostrara a facilidade com que recorre ao golpe baixo, à desinformação e à irresponsabilidade, com o caso Prestige, e tratou de o confirmar agora. Assacar as responsabilidades do atentado à ETA escassas horas após o acontecimento, transformar esta tese em versão oficial e contra toda a informação que ia sendo disponibilizada acabou por condenar irremediavelmente o PP. Foi, claramente, esta manipulação que penalizou o PP, e não a condenação do envolvimento espanhol na 2ª Guerra do Iraque (como, provavelmente, alguma esquerda aproveitará para proclamar). O segundo problema (embora menor) será o de conciliar a promessa eleitoral de retirar as tropas espanholas do Iraque com a nova realidade surgida depois dos atentados. Cumprir a promessa é dar uma vitória dolorosa aos terroristas. Presumo, porém, que o novo Governo irá (e bem) argumentar que a situação mudou e manter a sua presença no terreno, embora possa reformular as bases em que ela se processa.

- O PP tem a sua imagem irremediavelmente manchada. Não só a sua nova direcção, cuidadosamente preparada para suceder a Aznar, levou uma tareia memorável nas urnas, como o próprio Aznar sai fortemente diminuído no seu prestígio. Afinal, foi o seu governo que tratou com os pés a memória das vítimas dos atentados...

- A participação eleitoral subiu 8% em relação ao último acto. Os espanhóis, colocados perante uma situação que consideraram inadmissível (a tentativa de manipulação e instrumentalização de uma situação humana dolorosíssima), exerceram o seu dever cívico e usaram-no para expressar de forma inequívoca o que sentiam a este respeito. Uma lição para os portugueses que, há uns anos atrás, preferiram a praia ou a esplanada quando foram chamados a pronunciar-se sobre uma questão humana igualmente grave (e que assim se mantem): a do aborto.

sexta-feira, março 05, 2004

TRADUÇÃO ENFERMIÇA

Mais uma semana que se despede. Mais uma sexta-feira. Mais cinco dias de trabalho para esquecer. Ou para lembrar, caso me leia algum daqueles espécimes raros que gosta de trabalhar...

Hoje ainda não tive espírito para me deixar permear pela balsâmica sensação de fim-de-semana. Só lá mais para a noitinha. Daí que me tenha lembrado de homenagear um grande - graaaaaaaande mesmo - senhor da música pop contemporânea, reproduzindo o seu desejo na língua de Agustina e Espanca de que a noite me traga outros vôos.

Scott Walker, nascido Scott Engel, é uma referência incontornável para quem gosta de música pop - de grande música pop. Que o digam David Bowie, Neil Hannon, Marc Almond, Sean O'Haggan e muitos outros. Este "Nite Flights" que hoje vos deixo é mais uma pérola, uma pequena e brilhante pérola, que merece mais atenção que quaisquer palavras que eu possa usar para lhe captar o sentido.

Nite Flights



theres no hold
há vários mecanismos que não dependem de nós
the moving -
duvidas? pensa na erecção ou na vertigem
has come thru
e todos os que misturam receio e força e falta de força
the danger
pequenos milagres da química que felizmente não compreendo
brushin you
e que pressentes nos outros e às vezes te contagiam
turns its face
coisas que normalmente olhas de lado
into the heat
parecem-te irresistíveis num momento
and runs
e lanças-te
the tunnels
num complicado processo mental em que reavalias o que é bonito e o que é bom e o que é próprio
its so cold
é desconfortável, admite
the dark
olhares a outra luz o que te parece aviltante ou abjecto
dug up
revolveres o teu passado e os teus valores
by dogs
reconduzires-te à condição animal
the stitches
reconheceres a fragilidade dos códigos de conduta
torn and broke
o prazer que te pode dar o rasgares a capa da civilidade
the raw meat fist
o regresso a uma crueza primordial
you choke
que te separa o corpo da mente
has hit
e te mergulha num fascínio sem tempo
the BLOODLITE
pelas ordens que o teu sangue carrega
glass traps
são armadilhas químicas, não concordas?
open and close
buracos que se abrem por instantes no tempo
on nite flights
quando a falta da luz nos deixa pensar melhor
broken necks
são coisas que te agitam o corpo
feather weights
coisas leves que te obrigam
press - the walls
e te esmagam porque não as controlas
be my love
e quando se juntam duas vontades assim
we will be GODS
há um laço indestrutível
on nite flights
pelo menos por uma noite
with
só isso
only one promise
não te prometo mais que isso
only one way
se ao menos hoje
to FALL
condescenderes no sexo anal

The Walker Brothers, Nite Flights

E pronto. É a minha sugestão para este fim-de-semana: sejam persuasivos...



Diálogos de Amizade, 9

- Já sei, já sei...
- Já sabes mas não fazes nada.
- E que queres tu que eu faça? Ele é meu amigo, porra!
- Grande amigo. Eu acho que também era amiga de alguém se vivesse às custas dessa pessoa.
- O tipo separou-se...
- ...há seis meses! E veio logo direitinho cá para casa!
- É mais que natural. Sentiu-se só, desamparado e procurou apoio no melhor amigo.
- Desculpa lá, mas não vejo nada de natural no facto de alguém se mudar para casa de um casal numa situação de crise e, passados seis meses, não ter a mínima intenção de sair. Comigo nunca aconteceu.
- Tu não tens amigos, querida. Lembras-te?
- Pois não. E com exemplos destes, tu admiras-te?

quinta-feira, março 04, 2004

GLUP GLUP DÓI DÓI TRUZ TRUZ PICA PICA



É triste, muito triste, mas é verdade, é mesmo verdade. Dói-me a garganta.

Eu, eu que já fui apodado com todos os nomes - em português e em latim - das mais distintas aves canoras, eu, cuja voz límpida e cristalina já encheu de alegria milhares de corações, eu, que tenho levado a canção portuguesa às sete partidas do mundo, eu estou com dores de garganta.

Não é a primeira vez. É óbvio que não é a primeira vez. Mas não é por ter fodido uma vez que um gajo deixa de querer foder, verdade? Daí que eu me queixe e continue a queixar até que esta porcaria passe.

Ainda tenho amígdalas. E lá vamos coabitando harmoniosamente durante boa parte do ano. Mas lá vem uma altura ou outra em que elas se organizam em jornadas de luta. São umas putas dumas revanchistas! Sempre o foram, não é de hoje nem de ontem. Eu conto-vos...

Só quando comecei a trabalhar é que passei a dar o devido valor a esta coisa de estar doente sem gravidade. Na minha adolescência, a merda das amigdalites era isso mesmo: uma merda. Um ou dois dias em casa, duas ou três noites em que não podia sair, febres altas, delírios... uma trip de mau ácido em pijama e sem gajas. Por isso mesmo, sempre tentei ocultar a minha condição de enfermo dos senhores meus pais e enfermeiros de serviço. Algumas vezes lá tinha sucesso: uma dose industrial de pastilhas e anti-gripais lá me conseguia aguentar durante a provação, sempre com um ar enérgico e sorridente. MAS, portuguesas e portugueses, MAS lá vinha aquela ocasião esporádica em que uma qualquer refeição deitava por terra o meu esforço. Sim, que estas cabras das amígdalas tinham valentes cunhas no estômago. E era certo e sabido que o conluio destes dois órgãos acabava por resultar num "roda-bota-fora" de efeitos impressionantes para quem tinha a sorte de comigo partilhar a mesa da refeição...

Lá ía eu ao médico, naquela idade em que ainda se vai acompanhado pelos pais mas já se sente vergonha por isso mesmo, e era humilhado com aquelas descrições: "Coitadinho, vomitou-se todo e está cheio de febre...". A terapia era invariável: uma injecção de penicilina, daquelas bem espessas, que têm de ser dadas depressa para o líquido não coagular. Invariavelmente também, a enfermeira era gorda e feia e velha e dizia-me: "Relaxe os músculos, relaxe os músculos que isto não custa nada.", enquanto eu pensava para comigo mesmo: "Deve ter sido isso que te disseram da primeira vez que te foram à bufa, cabra do caralho!". E estes pensamentos biliares e demoníacos distraíam-me da dor.

Nunca quis que se preocupassem comigo. O meu espírito, para uns, e o que tenho entre as pernas, para outras, sempre quis que fossem apenas fonte de alegria, bonomia, bons tempos. Estar doente era uma inversão nos papéis a que me acostumara: eu é que me sentia no direito de mimar, de "tomar conta", de tratar. Eu é que me preocupava com os outros e me ignorava. Mas estas putas, estas desprezíveis putas das amígdalas, lá vinham de vez em quando devolver-me a consciência de mim.

Uma dor de garganta é como uma excepção ao sistema de Schengen: habituamo-nos às fronteiras abertas e já não contamos com guardas fronteiriços hirsutos e assanhados. Nada disto é grave, mas incomoda. A decisão política de ir à farmácia deverá ser quanto baste para reconduzir a situação à normalidade. Serve tudo isto, igualmente, como aviso à navegação para os nossos comentadores: o meu estado clínico exime-me hoje a responder a eventuais inquirições sobre se engulo ou não engulo.


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