segunda-feira, março 22, 2004 |
O ENTERTAINER, parte I
Queria estar sozinho, no palco de um Casino decadente, apenas com um microfone, um Fender Rhodes – não necessariamente igual ao da imagem – e um corpo de bailarinas recrutadas após rigoroso processo de selecção. Queria actuar para excursões de idosos associados do INATEL. Queria ser Vareta, the one and only, o “ol’ brown eyes” português. Queria oferecer a essa franja imunda da populaça um grande espectáculo musical a que chamaria “Alta desbunda com Vareta Funda!!” – os dois pontos de exclamação são essenciais, explicou-me um técnico de marketing...
Seria um espectáculo com cenário minimalista, cuidadosamente preparado, concebido para que as pessoas se sentissem bem com a ideia de ganhar idade, com a ideia do Outono da vida. Um misto de La Féria e IURD, com uns laivos de Ricardo Pais e Olga Roriz (a ver se me calhava algum prémiozinho...)
O início daria o mote. A sala escura. Entra um bandalho qualquer que anuncia que se irá iniciar o espectáculo e se agradece silêncio absoluto. O bandalho desaparece. A sala continua escura mas ao fundo ouve-se já a minha distinta e cristalina voz, num diálogo ensaiado com o gerente:
- Ouça lá, ó seu borra-botas! Eu estou-me a cagar para isso! Já lhe disse que só actuo se as cadeiras tiverem resguardos de plásticos! Farto de actuar para velhos ando eu e sei muito bem que à terceira noite já não se aguenta o cheiro a mijo cediço que se desprende dos estofos!
- Mas ó Shô Vareta, eu...
- Shô Vareta o caralho! Ou me trata por Doutor Funda ou não temos espectáculo! Ou quer ir o senhor entreter esta chusma de papalvos que ainda cheira a vomitado dos enjoos na camioneta da excursão?!
- Não, não... eu... ó Shôtôr, é só esta noite. Amanhã tratamos dos resguardos. Juro-lhe pela minha santa mãezinha! Mas agora já estão à sua espera...
- Bom. Se estão à minha espera é melhor eu ir actuar, senão aqueles trastes começam a roncar que parecem o motor de um cacilheiro... Foda-se! Deus me dê paciência p’a esta merda! Bom. Vareta, filho, cá vai disto!
E pumbas! Entro de rompante no palco, com o meu casaco de lamé dourado e o cabelo cuidadosamente puxado para trás com Brylcreme, atravessando as espessas cortinas de veludo carmim. Finjo que o pó das cortinas me afecta a garganta e vou tossindo e escarrando. Dirijo-me ao público:
- Pensam que só os velhos é que têm doenças, não?
A cabine de som está avisada e dispara a fita com aplausos e gargalhadas, que fica temporizada para tocar de 30 em 30 segundos. Sento-me ao piano, toco uma escala, paro. Encosto a cabeça às mãos e confidencio:
- Caralhos m’a fodam se me lembro como é que se toca esta merda... Não há-de ser nada... Bom. Boa noite, estimado público! O meu nome é o que os meus pais me deram e vocês têm tanto a ver com isso como eu tenho com o vosso hemorroidal. Estou aqui para vos dar a exacta medida de entretenimento por que vocês pagaram e nem mais um cêntimo! Ponham cola na placa, verifiquem o elástico dos fraldões, e carreguem as pilhas dos pace-makers! Agarrem-se bem porque isto vai ser ALTA DESBUNDA COM VARETA FUNDA!!!!
Ataco dó e sol a um ritmo vertiginoso e não saio de dó e sol durante três minutos. Há que testar a disponibilidade mental do público... É então que entoo a primeira canção da noite:
- Esta é uma canção jazzy e upbeat. Espero que gostem. Chama-se “Formol” e gostava de a dedicar a todos aqueles de vós que já estão mais perto do fim...
“Já passaste por quanto havia a passar
E o que há-de ser já nada tem p’ra te oferecer
Sim tu sabes que o fim está chega-a-ar
Que o teu corpo em pó se vai desfazer
Escolhe a parte de ti que gostas mais
E escreve nas disposições finais
“Esta parte não há-de ir a enterrar
Em formol a quero conserva-a-ar”
Formol Formol Formo-o-ol
Quando a minha alma ruma ao sol
Algo de mim vai cá ficar
Em formol me vou conservar
Todos!! (entram as bailarinas, em body de lantejoulas, segurando frascos com conteúdos suspeitos)
Formol Formol Formo-o-ol
Com umas gotas de Sonasol
Em formol um órgão vou deixar
P’ra mais tarde recorda-a-ar
Formol Formol Formo-o-ol
Shubyduba dubadu dubydo-ol
Formol Formol Formo-o-ol
Quando a minha alma ruma ao sol
Ao morrer ainda vou pensar
Que alguém de mim se vai lembra-a-aaaaaaaaar”
- Podem aplaudir, caralho! Ou as artroses não vos deixam bater palminhas?!... Bom. Vamos lá continuar com isto.
(continua)
Queria estar sozinho, no palco de um Casino decadente, apenas com um microfone, um Fender Rhodes – não necessariamente igual ao da imagem – e um corpo de bailarinas recrutadas após rigoroso processo de selecção. Queria actuar para excursões de idosos associados do INATEL. Queria ser Vareta, the one and only, o “ol’ brown eyes” português. Queria oferecer a essa franja imunda da populaça um grande espectáculo musical a que chamaria “Alta desbunda com Vareta Funda!!” – os dois pontos de exclamação são essenciais, explicou-me um técnico de marketing...
Seria um espectáculo com cenário minimalista, cuidadosamente preparado, concebido para que as pessoas se sentissem bem com a ideia de ganhar idade, com a ideia do Outono da vida. Um misto de La Féria e IURD, com uns laivos de Ricardo Pais e Olga Roriz (a ver se me calhava algum prémiozinho...)
O início daria o mote. A sala escura. Entra um bandalho qualquer que anuncia que se irá iniciar o espectáculo e se agradece silêncio absoluto. O bandalho desaparece. A sala continua escura mas ao fundo ouve-se já a minha distinta e cristalina voz, num diálogo ensaiado com o gerente:
- Ouça lá, ó seu borra-botas! Eu estou-me a cagar para isso! Já lhe disse que só actuo se as cadeiras tiverem resguardos de plásticos! Farto de actuar para velhos ando eu e sei muito bem que à terceira noite já não se aguenta o cheiro a mijo cediço que se desprende dos estofos!
- Mas ó Shô Vareta, eu...
- Shô Vareta o caralho! Ou me trata por Doutor Funda ou não temos espectáculo! Ou quer ir o senhor entreter esta chusma de papalvos que ainda cheira a vomitado dos enjoos na camioneta da excursão?!
- Não, não... eu... ó Shôtôr, é só esta noite. Amanhã tratamos dos resguardos. Juro-lhe pela minha santa mãezinha! Mas agora já estão à sua espera...
- Bom. Se estão à minha espera é melhor eu ir actuar, senão aqueles trastes começam a roncar que parecem o motor de um cacilheiro... Foda-se! Deus me dê paciência p’a esta merda! Bom. Vareta, filho, cá vai disto!
E pumbas! Entro de rompante no palco, com o meu casaco de lamé dourado e o cabelo cuidadosamente puxado para trás com Brylcreme, atravessando as espessas cortinas de veludo carmim. Finjo que o pó das cortinas me afecta a garganta e vou tossindo e escarrando. Dirijo-me ao público:
- Pensam que só os velhos é que têm doenças, não?
A cabine de som está avisada e dispara a fita com aplausos e gargalhadas, que fica temporizada para tocar de 30 em 30 segundos. Sento-me ao piano, toco uma escala, paro. Encosto a cabeça às mãos e confidencio:
- Caralhos m’a fodam se me lembro como é que se toca esta merda... Não há-de ser nada... Bom. Boa noite, estimado público! O meu nome é o que os meus pais me deram e vocês têm tanto a ver com isso como eu tenho com o vosso hemorroidal. Estou aqui para vos dar a exacta medida de entretenimento por que vocês pagaram e nem mais um cêntimo! Ponham cola na placa, verifiquem o elástico dos fraldões, e carreguem as pilhas dos pace-makers! Agarrem-se bem porque isto vai ser ALTA DESBUNDA COM VARETA FUNDA!!!!
Ataco dó e sol a um ritmo vertiginoso e não saio de dó e sol durante três minutos. Há que testar a disponibilidade mental do público... É então que entoo a primeira canção da noite:
- Esta é uma canção jazzy e upbeat. Espero que gostem. Chama-se “Formol” e gostava de a dedicar a todos aqueles de vós que já estão mais perto do fim...
“Já passaste por quanto havia a passar
E o que há-de ser já nada tem p’ra te oferecer
Sim tu sabes que o fim está chega-a-ar
Que o teu corpo em pó se vai desfazer
Escolhe a parte de ti que gostas mais
E escreve nas disposições finais
“Esta parte não há-de ir a enterrar
Em formol a quero conserva-a-ar”
Formol Formol Formo-o-ol
Quando a minha alma ruma ao sol
Algo de mim vai cá ficar
Em formol me vou conservar
Todos!! (entram as bailarinas, em body de lantejoulas, segurando frascos com conteúdos suspeitos)
Formol Formol Formo-o-ol
Com umas gotas de Sonasol
Em formol um órgão vou deixar
P’ra mais tarde recorda-a-ar
Formol Formol Formo-o-ol
Shubyduba dubadu dubydo-ol
Formol Formol Formo-o-ol
Quando a minha alma ruma ao sol
Ao morrer ainda vou pensar
Que alguém de mim se vai lembra-a-aaaaaaaaar”
- Podem aplaudir, caralho! Ou as artroses não vos deixam bater palminhas?!... Bom. Vamos lá continuar com isto.
(continua)
Arrotos do Porco: