quinta-feira, março 31, 2005 |
PARABÉNS!
quarta-feira, março 30, 2005 |
PARABÉNS VARETA!
Tudo o que se pudesse escrever seria pouco para ti que mereces tudo.
Tudo o que se pudesse escrever seria pouco para ti que mereces tudo.
segunda-feira, março 28, 2005 |
Se estivesse sol e as gotas não tivessem esgotado nada disto acontecia. Juro.
Tenho um brinquedo novo
Tenho um dicionário que rima
Estou a ver se o promovo
Para ver se isto anima
Não é que eu tenha jeito
O especialista é o fininh0
Entre todos o eleito
Só quando espirra é santinho
O Super também arranha
Nesta coisa de versejar
Eu tento mas sou tacanha
O tempo está a acinzentar
Se canto esganiço
Se desatino é um rebuliço
Se escrevo enguiço
Mas gosto do chOURIÇO
Quando o puto aqui chegou
Aguentou-se que nem um valente
Toda a gente o adjectivou
Eu acho-o excelente
Desde o tempo que andava aflita
Que o meu coração pela Anita palpita
Entre ela e a Saltita
Não sei qual é a favorita
O meu afecto pelo Vareta
No início foi uma barafunda
Agora que ele faz gazeta
Fico como uma corcunda iracunda que circunda furibunda na rotunda que afunda
Também há o benfiquista abichanado
Ilustre e amigo advogado
Aparece sempre apressado
Talvez por não ser baptizado
Em Coimbra há um arquitonto
Com a amizade dele conto
Pela ausência dou-lhe o desconto
Gosto dele e pronto
Mr. Green é mais tacadas
Mas também dá umas cantadas
Grande parelha forma com o AdaS
Moms e grandes camaradas
A ausência dele é crueldade
Do nosso fotógrafo sinto saudade
Por sentir afinidade com a sua actividade
E pela autenticidade da sua personalidade
Alguns foram poupados
Desta doida iniciativa
A causa de não serem nomeados
É a minha falta de saliva.
Por favor não façam chacota
Ai, esqueci-me da gaivota!
Deve ser de já ser cota
E um pouco idiota e já lá não vai nem à gota
Devia falar da Nena, da Chimeer e da Violeta
Do Manuel, do Nymomanomazinho e do Mestre
Da tt, do Confúcio, do Papo-seco e do Poeta
Do gaita e do lindinho, de todos porque os estimo, mas já não vai ser este semestre.
Tenho um brinquedo novo
Tenho um dicionário que rima
Estou a ver se o promovo
Para ver se isto anima
Não é que eu tenha jeito
O especialista é o fininh0
Entre todos o eleito
Só quando espirra é santinho
O Super também arranha
Nesta coisa de versejar
Eu tento mas sou tacanha
O tempo está a acinzentar
Se canto esganiço
Se desatino é um rebuliço
Se escrevo enguiço
Mas gosto do chOURIÇO
Quando o puto aqui chegou
Aguentou-se que nem um valente
Toda a gente o adjectivou
Eu acho-o excelente
Desde o tempo que andava aflita
Que o meu coração pela Anita palpita
Entre ela e a Saltita
Não sei qual é a favorita
O meu afecto pelo Vareta
No início foi uma barafunda
Agora que ele faz gazeta
Fico como uma corcunda iracunda que circunda furibunda na rotunda que afunda
Também há o benfiquista abichanado
Ilustre e amigo advogado
Aparece sempre apressado
Talvez por não ser baptizado
Em Coimbra há um arquitonto
Com a amizade dele conto
Pela ausência dou-lhe o desconto
Gosto dele e pronto
Mr. Green é mais tacadas
Mas também dá umas cantadas
Grande parelha forma com o AdaS
Moms e grandes camaradas
A ausência dele é crueldade
Do nosso fotógrafo sinto saudade
Por sentir afinidade com a sua actividade
E pela autenticidade da sua personalidade
Alguns foram poupados
Desta doida iniciativa
A causa de não serem nomeados
É a minha falta de saliva.
Por favor não façam chacota
Ai, esqueci-me da gaivota!
Deve ser de já ser cota
E um pouco idiota e já lá não vai nem à gota
Devia falar da Nena, da Chimeer e da Violeta
Do Manuel, do Nymomanomazinho e do Mestre
Da tt, do Confúcio, do Papo-seco e do Poeta
Do gaita e do lindinho, de todos porque os estimo, mas já não vai ser este semestre.
quinta-feira, março 24, 2005 |
UM FETICHE DE PÀSCOA
Em 1963 o realizador, dramaturgo, peoeta e escritor Pier Paolo Pasolini, para a obra colectiva Rogopag , que consta de curtas metragens de Rossellini, Godard, Pasolini e Gregoretti (produtor), fez “La Ricotta” (O requeijão). O filme é um pseudo-“making of” de um filme abstruso e barroco sobre a vida de Cristo em que o personagem do realizador famoso é Orson Welles (com um ar super-estiloso de óculos de massa fininhos, tipo Bairro Alto), que hesita e repete ad nauseam a cena da crucificação. Basicamente, tenta compor um quadro de descimento da cruz próximo da estética maneirista do pintor Jacoppo Pontormo [é um fresco que está em Florença na Igreja se Sta. Felicitá, a seguir à Ponte Vechio, a dos ourives. Paga-se um euro para acender as luzes mas vale a pena. Lindo de morrer – (comentário abichanado) - Durante as filmagens, um figurante que é um operário desempregado e faz de um dos ladrões crucificados com Jesus, tenta em vão comer (um requeijão) durante toda a filmagem. Primeiro dá a sua ração, distribuída pela produção do filme, à família esfomeada que come em silêncio no meio de um campo florido (Lindo de morrer- novo comentário abichanado). Depois obtém outro requeijão que tenta, em vão, comer. A filmagem da cena da crucificação é repetida vezes sem conta e o figurante fica atado a uma cruz - e esquecido - e sempre com fome. Uma rapariga – também figurante do filme- dança semi-nua durante um intervalo causado por uma visita do presidente da câmara ás filmagens e o figurante-ladrão entusiasma-se sexualmente, ejaculando enquanto está preso á cruz (não se vê, mas percebe-se muito bem).
Finalmente consegue refugiar-se para comer. Membros da equipa de produção, espantados com a sua fome (crónica, de pobreza) dão-lhe toda a comida que ele consegue comer e gozam ostensivamente come ele (e a sua fome). O figurante empanturrado é novamente içado para a cruz para nova filmagem e morre de congestão. O facto de ter ejaculado preso a uma cruz e a sugestão de Pasolini de que o verdadeiro Cristo é ele e não o do filme, esfomeado e humano, mereceu-lhe uma queixa do Vaticano e uma prisão de quatro meses. No ano seguinte, 1964, Pasolini fez o Vangelo Secondo Mateo, um dos mais belos filmes de todos os tempos (preto e branco, 8 mm). O texto é ipsis verbis o do Evangelho, a banda sonora – Missa Congolesa – batuques cantados em latim, Blues, Gospel, Bach e a mais bela fotografia que já se tinha alguma visto no cinema (cada fotograma é de parar em still image no DVD e apreciar com um nó na garganta). Maria, mãe de Jesus, é Marguerita Caruso de 13 anos e tem um olhos pretos enormes; Jesus é um jovem estudante espanhol de 19 anos, de sobrancelhas unidas e o cabelo curto, penteado para trás, que vocifera de raiva todo o filme- Enrique Irazoqui. (Actualmente é economista e professor universitário, um grande especialista mundial em inteligência artificial).
Na Páscoa, tentem ver estes filmes. Se já viram, sabem que ambos são profundamente emocionantes e muito belos.
Enrique Irazoqui – Cristo
Marguerita Caruso (Maria) e Pasolini
Fotograma de La Ricotta.
P.S. Este post tem os seus laivos vagamente abichanados, mas pronto. São as fraquezas humanas.
Em 1963 o realizador, dramaturgo, peoeta e escritor Pier Paolo Pasolini, para a obra colectiva Rogopag , que consta de curtas metragens de Rossellini, Godard, Pasolini e Gregoretti (produtor), fez “La Ricotta” (O requeijão). O filme é um pseudo-“making of” de um filme abstruso e barroco sobre a vida de Cristo em que o personagem do realizador famoso é Orson Welles (com um ar super-estiloso de óculos de massa fininhos, tipo Bairro Alto), que hesita e repete ad nauseam a cena da crucificação. Basicamente, tenta compor um quadro de descimento da cruz próximo da estética maneirista do pintor Jacoppo Pontormo [é um fresco que está em Florença na Igreja se Sta. Felicitá, a seguir à Ponte Vechio, a dos ourives. Paga-se um euro para acender as luzes mas vale a pena. Lindo de morrer – (comentário abichanado) - Durante as filmagens, um figurante que é um operário desempregado e faz de um dos ladrões crucificados com Jesus, tenta em vão comer (um requeijão) durante toda a filmagem. Primeiro dá a sua ração, distribuída pela produção do filme, à família esfomeada que come em silêncio no meio de um campo florido (Lindo de morrer- novo comentário abichanado). Depois obtém outro requeijão que tenta, em vão, comer. A filmagem da cena da crucificação é repetida vezes sem conta e o figurante fica atado a uma cruz - e esquecido - e sempre com fome. Uma rapariga – também figurante do filme- dança semi-nua durante um intervalo causado por uma visita do presidente da câmara ás filmagens e o figurante-ladrão entusiasma-se sexualmente, ejaculando enquanto está preso á cruz (não se vê, mas percebe-se muito bem).
Finalmente consegue refugiar-se para comer. Membros da equipa de produção, espantados com a sua fome (crónica, de pobreza) dão-lhe toda a comida que ele consegue comer e gozam ostensivamente come ele (e a sua fome). O figurante empanturrado é novamente içado para a cruz para nova filmagem e morre de congestão. O facto de ter ejaculado preso a uma cruz e a sugestão de Pasolini de que o verdadeiro Cristo é ele e não o do filme, esfomeado e humano, mereceu-lhe uma queixa do Vaticano e uma prisão de quatro meses. No ano seguinte, 1964, Pasolini fez o Vangelo Secondo Mateo, um dos mais belos filmes de todos os tempos (preto e branco, 8 mm). O texto é ipsis verbis o do Evangelho, a banda sonora – Missa Congolesa – batuques cantados em latim, Blues, Gospel, Bach e a mais bela fotografia que já se tinha alguma visto no cinema (cada fotograma é de parar em still image no DVD e apreciar com um nó na garganta). Maria, mãe de Jesus, é Marguerita Caruso de 13 anos e tem um olhos pretos enormes; Jesus é um jovem estudante espanhol de 19 anos, de sobrancelhas unidas e o cabelo curto, penteado para trás, que vocifera de raiva todo o filme- Enrique Irazoqui. (Actualmente é economista e professor universitário, um grande especialista mundial em inteligência artificial).
Na Páscoa, tentem ver estes filmes. Se já viram, sabem que ambos são profundamente emocionantes e muito belos.
Enrique Irazoqui – Cristo
Marguerita Caruso (Maria) e Pasolini
Fotograma de La Ricotta.
P.S. Este post tem os seus laivos vagamente abichanados, mas pronto. São as fraquezas humanas.
PÁSCOA FELIZ
Época Pascal, muita conversa sobre cordeiros. Aqui fica uma memória de um texto sobre ovelhas. Sim, é reciclagem mas não vejo nenhum problema nisso. Já vamos chegando, neste blog, ao estatuto de "Best Of". Boa Páscoa.
VAMOS JOGAR AO SCRAPIE?
Um texto dramático em um acto para três ovelhas e um carneiro, de Vareta Funda
CENA 1
Três ovelhas em descanso, num pasto, conversam enquanto debicam uma ervita ou outra
Clara – Mééeee?
Cynthia – Mééeee.
Suzele – ‘Bora lá!
CENA 2
Três ovelhas em descanso, num outro local do mesmo pasto mas com mais sombra, conversam enquanto debicam uma ervita ou outra
Cynthia - ...só vos digo que já me passou pela cabeça. É qu’isto tam’ém não é vida. Andar para aqui e para ali, ordenha, ordenha, ordenha, cresce lã, corta lã, lá vamos ao carneiro uma vez por outra... Não, eu não nasci p’ra isto. Lembro-me como se fosse hoje da minha mãezinha me dizer: “Cynthia, filha, tu és do Sr. Alberto, mas se isto der uma volta o teu futuro ainda poderá vir a estar nas tuas patas.”
Suzele – Eu cá num sei. Eu cá descunfio sempre. Mais bale...
Clara e Cynthia – Mééeee.... Hi hi hi!
Suzele – E lá estão bocês a guzarem cumigo! E pronto! Já num digo mai nada!
Clara – Também dizes sempre o mesmo... “Eu cá num me meto nissu! Eu cá prefiro estar do meu cãotinho!”. Que diabo, Suzele! Tens cinco anos, já não estás na flor da idade! Nem todas temos a sorte de ser como a Dolly e ficarmos famosas à nascença. Se não arriscarmos agora...
Suzele – Quem bos oubisse!... Bejam lá as senhoras dâutoras, parece que já são algúeim! Nunca biram mais nada senão esta quinta! Eu ó menos bim...
Cynthia – Sim, já sabemos, foste comprada na Ovibeja. E depois?... Vais ficar eternamente à sombra desse momento de glória? Lembras-te da Marisa? A tia dela também teve os seus quinze minutos de fama quando apareceu no autocolante da Ovibeja de 97. E onde é que elas estão agora, uma e outra?
Clara (cantarolando) – “No bandulho do Alberto/É o que tens de mais certo/Em costeleta ou ensopado/O teu futuro é cozinhado”...
Cynthia – Disfarça que vem aí o Orlando... Mééeee.
Clara e Suzele – Mééeee.
CENA 3
Três ovelhas em descanso, no mesmo local, conversam enquanto debicam uma ervita ou outra. Entretanto aproxima-se Orlando, o carneiro. As ovelhinhas ajeitam-se e exibem o ventre. A cada fala, o actor chega-se à boca do palco e depois recua, na melhor tradição do Parque Mayer. Se for fisicamente possível às ovelhas, sugere-se que façam manguitos.
Orlando – E então, people? Vai uma?
Clara – Deves estar, deves...
Orlando – ‘Tar até ‘tou. Cheio de tesão, ó, queres ver?
Cynthia – Deves de ‘tar é chei’da sorte, se pensas que levas daqui alguma coisa.
Orlando – Iá. Não levo nem trago, môr. Já sabes que p’ra ti é sempre à borliú, eh eh eh! (se o povo ainda é povo, deve rir aqui:____)
Suzele – Ó filhas, bamos-lhe cantar a canção da minha terra?!
(As luzes incidem apenas sobre as ovelhas e segue-se um bonito quadro musical...)
Clara, Cynthia e Suzele (cantando) – Ó carneiro arremelgado / Tu aqui não te governas / Queres-nos ver de ventre inchado? / Vai c’o Portas p’rás casernas! (que diabo, é revista! tem que ter uma boca política, básica, de preferência)
Tu tens fraco material / E o mais certo é qualquer dia / Apareceres no jornal / A falar da Casa Pia (também se percebe, ou não?... hum? uma piada circunstancial?...)
Lá por te chamares Orlando / E cheirares a coentro / Achas que é só ir entrando / Pelas ovelhas adentro (e a carga lúbrica, senhores? que seria da revista sem a carga lúbrica?)
Vê se te pões nas canetas / Nem te queremos ver por perto / Guardamos as nossas tetas / P’rás maõzinhas do Alberto
Orlando – Iá, people. É como quiserem. Mais tarde ou mais cedo hão-de cá vir parar, eh eh eh. (Orlando fica cinco segundos com um sorriso estúpido no focinho, faz “eh eh eh” outra vez, vê que não tem resposta e sai de cena).
CENA 4
Três ovelhas em descanso, no mesmo local, conversam enquanto debicam uma ervita ou outra
Cynthia – Estou farta disto. Já é altura das ovelhas combaterem os estereótipos de animal pacato e estúpido, que dá leite e lã e carne... E o espírito? Quem é que nos aprecia pelo espírito?
Suzele – Olhó Orlando, esse é que num nus aprecia por o espírito! Fuôsga-se! Quando me lembro da primeira bez... Chiça! Mas no fim até gustei...
Clara – Olham para nós e só vêem camisolas, cachecóis, queijo da serra... E ainda fazem anúncios a gozar connosco, como se ficássemos umas loucas quando chupamos rebuçados de mentol... Eu cá bem sei o que é que lhes chupava!
Cynthia – Ó Clara, que horror! Não me digas que és dessas?!
Clara – Era o tutano dos ossos, minha desavergonhada.
Suzele – Eu ó Orlando estibe quase capaz... Ele bem mo pediu, mas tibe bergonha...
Clara – O ideal era uma fibromialgia... Aparecíamos nos jornais, íamos para Londres, viagens, repórteres, festas...
Cynthia – E quem é o veterinário que te diagnostica uma fibromialgia? Já sabes como é que é essa corja... Queres baixa? Paga! (o povo, o verdadeiro povo, também se deve sentir identificado com esta piada e dar umas gargalhaditas... uma palminha ou outra não ficaria mal)
Suzele – Eu cu Orlando é que quaise ficaba de baixa. Aquilo foi uma tarde inteira... Sacana do carneiro num se cansaba... E nim eu, eh eh eh... (reparem... é revista, isto no fundo é revista... tem que haver uma figura assim, que fale de forma engraçada, que tenha comentários despropositados... enfim, há que estabelecer empatia com o povo)
(Orlando reentra pela esquerda baixa)
Orlando – People, não dêem nas vistas, pá. Cheguem-se aqui.
(as ovelhas aproximam-se)
Orlando – Um primo meu que está em Amsterdão arranjou-me uma cena altamente, pá. Isto dá uma moca!...
Cynthia – Se for como a outra merda que arranjaste... Não dava pica nenhuma e até o leite me saía verde...
Orlando – Nã nã nã nã nã. Isto é mesmo altamente. Chama-se scrapie...
Clara – Fixe, pá. Orienta aí.
(Orlando mija na erva e as ovelhinhas comem sofregamente, dando origem a um novo quadro musical)
Clara, Cynthia, Orlando e Suzele (cantando) – (refrão – sim, o refrão está em estrangeiro porque esta merda vai ser um hit, pá!) London, Paris, Rome, New York or New Delhi / Nothing is impossible for a sheep with scrapie / x2
(solo da Cynthia) Sou uma ovelha algo inconformada / Adeus aos pastos eu quero ir ver o mundo (coro: io! io! io!) / Com uma doença um bocado marada (esta rima é de uma fineza...) / Falam de mim até no país profundo (refrão x2)
(solo da Clara) Nós as ovelhas merecemos respeito / Não queremos mais estar junto à carneirada (coro: io! io! io!) / Já chega de nos espremerem o peito / Eu tenho scrapie eu sou sofisticada (refrão x2)
(solo do Orlando) Nunca pensei em armar tal confusão / Eu só queria passar um bom bocado (coro: io! io! io!) / Mas esta merda lá de Amsterdão / Deixou o ‘tuga algo preocupado ( eh pá! até eu me espanto comigo! esta do ‘tuga para encaixar na métrica...) (refrão x2)
(solo da Suzele) Eu sou uma obelha algo acarneirada (é a terceira vez que uso “algo”, mas estou-me a cagar) / Não me chateiem qu’eu estâou no meu cãotinho (coro: io! io! io!) / Mas c’o Orlando eu fico meio aluada / O que eu não faço pelo meu carneirinho
(coro final, glorioso, alegre, vivo, muita cor, muita dança, muita palma) London, Paris, Rome, New York or New Delhi / Nothing is impossible for a sheep with scrapie
(repetir até a paciência do público se esgotar)
FIM
(E pronto. Não me ocorreu nada melhor como fim. Foi por isso que lhe chamei texto dramático e não revista ou comédia. É que o fim é triste, perceberam? Scrapie é a doença, uma variante espongiforme... Eh pá, pronto... Uns dias corre melhor, outros pior.)
Época Pascal, muita conversa sobre cordeiros. Aqui fica uma memória de um texto sobre ovelhas. Sim, é reciclagem mas não vejo nenhum problema nisso. Já vamos chegando, neste blog, ao estatuto de "Best Of". Boa Páscoa.
VAMOS JOGAR AO SCRAPIE?
Um texto dramático em um acto para três ovelhas e um carneiro, de Vareta Funda
CENA 1
Três ovelhas em descanso, num pasto, conversam enquanto debicam uma ervita ou outra
Clara – Mééeee?
Cynthia – Mééeee.
Suzele – ‘Bora lá!
CENA 2
Três ovelhas em descanso, num outro local do mesmo pasto mas com mais sombra, conversam enquanto debicam uma ervita ou outra
Cynthia - ...só vos digo que já me passou pela cabeça. É qu’isto tam’ém não é vida. Andar para aqui e para ali, ordenha, ordenha, ordenha, cresce lã, corta lã, lá vamos ao carneiro uma vez por outra... Não, eu não nasci p’ra isto. Lembro-me como se fosse hoje da minha mãezinha me dizer: “Cynthia, filha, tu és do Sr. Alberto, mas se isto der uma volta o teu futuro ainda poderá vir a estar nas tuas patas.”
Suzele – Eu cá num sei. Eu cá descunfio sempre. Mais bale...
Clara e Cynthia – Mééeee.... Hi hi hi!
Suzele – E lá estão bocês a guzarem cumigo! E pronto! Já num digo mai nada!
Clara – Também dizes sempre o mesmo... “Eu cá num me meto nissu! Eu cá prefiro estar do meu cãotinho!”. Que diabo, Suzele! Tens cinco anos, já não estás na flor da idade! Nem todas temos a sorte de ser como a Dolly e ficarmos famosas à nascença. Se não arriscarmos agora...
Suzele – Quem bos oubisse!... Bejam lá as senhoras dâutoras, parece que já são algúeim! Nunca biram mais nada senão esta quinta! Eu ó menos bim...
Cynthia – Sim, já sabemos, foste comprada na Ovibeja. E depois?... Vais ficar eternamente à sombra desse momento de glória? Lembras-te da Marisa? A tia dela também teve os seus quinze minutos de fama quando apareceu no autocolante da Ovibeja de 97. E onde é que elas estão agora, uma e outra?
Clara (cantarolando) – “No bandulho do Alberto/É o que tens de mais certo/Em costeleta ou ensopado/O teu futuro é cozinhado”...
Cynthia – Disfarça que vem aí o Orlando... Mééeee.
Clara e Suzele – Mééeee.
CENA 3
Três ovelhas em descanso, no mesmo local, conversam enquanto debicam uma ervita ou outra. Entretanto aproxima-se Orlando, o carneiro. As ovelhinhas ajeitam-se e exibem o ventre. A cada fala, o actor chega-se à boca do palco e depois recua, na melhor tradição do Parque Mayer. Se for fisicamente possível às ovelhas, sugere-se que façam manguitos.
Orlando – E então, people? Vai uma?
Clara – Deves estar, deves...
Orlando – ‘Tar até ‘tou. Cheio de tesão, ó, queres ver?
Cynthia – Deves de ‘tar é chei’da sorte, se pensas que levas daqui alguma coisa.
Orlando – Iá. Não levo nem trago, môr. Já sabes que p’ra ti é sempre à borliú, eh eh eh! (se o povo ainda é povo, deve rir aqui:____)
Suzele – Ó filhas, bamos-lhe cantar a canção da minha terra?!
(As luzes incidem apenas sobre as ovelhas e segue-se um bonito quadro musical...)
Clara, Cynthia e Suzele (cantando) – Ó carneiro arremelgado / Tu aqui não te governas / Queres-nos ver de ventre inchado? / Vai c’o Portas p’rás casernas! (que diabo, é revista! tem que ter uma boca política, básica, de preferência)
Tu tens fraco material / E o mais certo é qualquer dia / Apareceres no jornal / A falar da Casa Pia (também se percebe, ou não?... hum? uma piada circunstancial?...)
Lá por te chamares Orlando / E cheirares a coentro / Achas que é só ir entrando / Pelas ovelhas adentro (e a carga lúbrica, senhores? que seria da revista sem a carga lúbrica?)
Vê se te pões nas canetas / Nem te queremos ver por perto / Guardamos as nossas tetas / P’rás maõzinhas do Alberto
Orlando – Iá, people. É como quiserem. Mais tarde ou mais cedo hão-de cá vir parar, eh eh eh. (Orlando fica cinco segundos com um sorriso estúpido no focinho, faz “eh eh eh” outra vez, vê que não tem resposta e sai de cena).
CENA 4
Três ovelhas em descanso, no mesmo local, conversam enquanto debicam uma ervita ou outra
Cynthia – Estou farta disto. Já é altura das ovelhas combaterem os estereótipos de animal pacato e estúpido, que dá leite e lã e carne... E o espírito? Quem é que nos aprecia pelo espírito?
Suzele – Olhó Orlando, esse é que num nus aprecia por o espírito! Fuôsga-se! Quando me lembro da primeira bez... Chiça! Mas no fim até gustei...
Clara – Olham para nós e só vêem camisolas, cachecóis, queijo da serra... E ainda fazem anúncios a gozar connosco, como se ficássemos umas loucas quando chupamos rebuçados de mentol... Eu cá bem sei o que é que lhes chupava!
Cynthia – Ó Clara, que horror! Não me digas que és dessas?!
Clara – Era o tutano dos ossos, minha desavergonhada.
Suzele – Eu ó Orlando estibe quase capaz... Ele bem mo pediu, mas tibe bergonha...
Clara – O ideal era uma fibromialgia... Aparecíamos nos jornais, íamos para Londres, viagens, repórteres, festas...
Cynthia – E quem é o veterinário que te diagnostica uma fibromialgia? Já sabes como é que é essa corja... Queres baixa? Paga! (o povo, o verdadeiro povo, também se deve sentir identificado com esta piada e dar umas gargalhaditas... uma palminha ou outra não ficaria mal)
Suzele – Eu cu Orlando é que quaise ficaba de baixa. Aquilo foi uma tarde inteira... Sacana do carneiro num se cansaba... E nim eu, eh eh eh... (reparem... é revista, isto no fundo é revista... tem que haver uma figura assim, que fale de forma engraçada, que tenha comentários despropositados... enfim, há que estabelecer empatia com o povo)
(Orlando reentra pela esquerda baixa)
Orlando – People, não dêem nas vistas, pá. Cheguem-se aqui.
(as ovelhas aproximam-se)
Orlando – Um primo meu que está em Amsterdão arranjou-me uma cena altamente, pá. Isto dá uma moca!...
Cynthia – Se for como a outra merda que arranjaste... Não dava pica nenhuma e até o leite me saía verde...
Orlando – Nã nã nã nã nã. Isto é mesmo altamente. Chama-se scrapie...
Clara – Fixe, pá. Orienta aí.
(Orlando mija na erva e as ovelhinhas comem sofregamente, dando origem a um novo quadro musical)
Clara, Cynthia, Orlando e Suzele (cantando) – (refrão – sim, o refrão está em estrangeiro porque esta merda vai ser um hit, pá!) London, Paris, Rome, New York or New Delhi / Nothing is impossible for a sheep with scrapie / x2
(solo da Cynthia) Sou uma ovelha algo inconformada / Adeus aos pastos eu quero ir ver o mundo (coro: io! io! io!) / Com uma doença um bocado marada (esta rima é de uma fineza...) / Falam de mim até no país profundo (refrão x2)
(solo da Clara) Nós as ovelhas merecemos respeito / Não queremos mais estar junto à carneirada (coro: io! io! io!) / Já chega de nos espremerem o peito / Eu tenho scrapie eu sou sofisticada (refrão x2)
(solo do Orlando) Nunca pensei em armar tal confusão / Eu só queria passar um bom bocado (coro: io! io! io!) / Mas esta merda lá de Amsterdão / Deixou o ‘tuga algo preocupado ( eh pá! até eu me espanto comigo! esta do ‘tuga para encaixar na métrica...) (refrão x2)
(solo da Suzele) Eu sou uma obelha algo acarneirada (é a terceira vez que uso “algo”, mas estou-me a cagar) / Não me chateiem qu’eu estâou no meu cãotinho (coro: io! io! io!) / Mas c’o Orlando eu fico meio aluada / O que eu não faço pelo meu carneirinho
(coro final, glorioso, alegre, vivo, muita cor, muita dança, muita palma) London, Paris, Rome, New York or New Delhi / Nothing is impossible for a sheep with scrapie
(repetir até a paciência do público se esgotar)
FIM
(E pronto. Não me ocorreu nada melhor como fim. Foi por isso que lhe chamei texto dramático e não revista ou comédia. É que o fim é triste, perceberam? Scrapie é a doença, uma variante espongiforme... Eh pá, pronto... Uns dias corre melhor, outros pior.)
quarta-feira, março 23, 2005 |
Curtes gajas?
- o mega-festival musical para Portugal
Promotores e produtores de concertos deste país, escutai-me!
Ele há festivais de Verão, uns mais manhosos que outros, e todos nós, que já fomos ou vamos regularmente, sabemos que mais de metade está lá por causa do festival (acho que é isso que se chama aos engates de Verão e à produção de charros em série, não é?), mais do que por causa da música. Assim, parece-me que todos teriam a ganhar se nos deixássemos de cinismos. A minha proposta é esta:
O nome do Festival terá que ser apelativo. Nada melhor do que aquele desafio a que poucos terão coragem de dizer não: “Curtes Gajas?”. Mais ainda: as próximas edições do evento (Curtes Gajas? 2; Curtes Gajas? 3, A Paródia Continua; Curtes Gajas? 4, The Babes are back in town, e por aí fora) teriam a vantagem de parecer uma colecção de dvd’s suspeitos, o que me parece garantia de sucesso.
O verdadeiro Festival devia ser no Algarve – qualquer gajo que curte gajas sabe que aquilo é uma merda mas que as gajas estão lá – e limitado a três dias: não se deve confundir um Festival com um pacote de viagens da Agência Abreu; não é o “5 dias de sonho com tudo incluído” que interessa, o que interessa é as gajas e as gajas impacientam-se com facilidade quando têm que usar balneários provisórios durante muitos dias. Três chegam muito bem, sexta, sábado e domingo que é o que manda a lei.
O que mais tornaria este Festival diferente dos outros? Ó meus amigos, tudo! Tudo nele seria diferente!
Antes de mais, a capitalização dos tempos mortos: um protocolo generoso a celebrar entre a produtora do evento e um clube de strip de renome poderia fazer com que as mudanças de palco deixassem de ser uma estucha de 40 minutos para passarem a ser um dos pontos altos do Festival. Em vez de termos aqueles barrigudos invariavelmente de t-shirt preta e rabo-de-cavalo a arrastarem instrumentos e amplificadores e a ajustarem focos de luz e o diabo, teríamos esbeltas moçoilas nos mesmos afazeres mas agora devidamente coreografados e com (ou sem) uma indumentária mais apropriada aos calores de Verão.
Depois, a descapitalização dos tempos dos mortos: a tarde serve para ressacar. Para ressacar e para mais nada, a menos que se proporcione um… uma… ehr… isso. Não vale a pena ter actividades à tarde. À tarde há gajas para ver na praia – elas não ressacam por temerem o adágio popular “Se tua mulher ressaca, dormes ao lado duma vaca” – e há que começar a construir a bebedeira da noite, o que se faz muito melhor numa esplanada que no espaço inóspito de um festival.
Também a divulgação do evento teria que ser feita noutros moldes e deixo aqui algumas sugestões para slogans: “Gajas de sonho – não despem o corpo mas mostram a alma”; “Curtes Gajas? – O Festival de Verão para quem tem tesão!”; “Qualquer gaja é mais hardcore que o mariquinhas do Manson!”; “Mamas, sol e róquénróle!” ou outras sabujices congéneres.
Percebem a receita para o sucesso? Com este hype hormonal à volta ninguém teria coragem de dizer que não tinha gostado de um Festival chamado “Curtes Gajas?” e assim o cartaz poderia ser marcadamente feminino mas cheio de qualidade. Mais propostas neste domínio:
Dia 1 – Anda cá, portuguesa bonita!
- Margarida Pinto
- Raquel Ralha
- Anabela Duarte
- Anamar
- Lena d’Água
Dia 2 – Venham as loiras!
- Cardigans (ou no dia seguinte, se a Nina Persson ainda viesse com o cabelo preto)
- Saint Etienne
- Kylie Minogue
- Laura Veirs
- Goldfrapp
Dia 3 – Tragam as chocas ou os bois não se vão embora!
- Keren Ann Ziedler
- P.J.Harvey
- Anita Lane
- Ladytron
- Björk
E pronto. Eu olho para estas ideias e só não percebo é porque é que ainda tenho que trabalhar para comer…
- o mega-festival musical para Portugal
Promotores e produtores de concertos deste país, escutai-me!
Ele há festivais de Verão, uns mais manhosos que outros, e todos nós, que já fomos ou vamos regularmente, sabemos que mais de metade está lá por causa do festival (acho que é isso que se chama aos engates de Verão e à produção de charros em série, não é?), mais do que por causa da música. Assim, parece-me que todos teriam a ganhar se nos deixássemos de cinismos. A minha proposta é esta:
O nome do Festival terá que ser apelativo. Nada melhor do que aquele desafio a que poucos terão coragem de dizer não: “Curtes Gajas?”. Mais ainda: as próximas edições do evento (Curtes Gajas? 2; Curtes Gajas? 3, A Paródia Continua; Curtes Gajas? 4, The Babes are back in town, e por aí fora) teriam a vantagem de parecer uma colecção de dvd’s suspeitos, o que me parece garantia de sucesso.
O verdadeiro Festival devia ser no Algarve – qualquer gajo que curte gajas sabe que aquilo é uma merda mas que as gajas estão lá – e limitado a três dias: não se deve confundir um Festival com um pacote de viagens da Agência Abreu; não é o “5 dias de sonho com tudo incluído” que interessa, o que interessa é as gajas e as gajas impacientam-se com facilidade quando têm que usar balneários provisórios durante muitos dias. Três chegam muito bem, sexta, sábado e domingo que é o que manda a lei.
O que mais tornaria este Festival diferente dos outros? Ó meus amigos, tudo! Tudo nele seria diferente!
Antes de mais, a capitalização dos tempos mortos: um protocolo generoso a celebrar entre a produtora do evento e um clube de strip de renome poderia fazer com que as mudanças de palco deixassem de ser uma estucha de 40 minutos para passarem a ser um dos pontos altos do Festival. Em vez de termos aqueles barrigudos invariavelmente de t-shirt preta e rabo-de-cavalo a arrastarem instrumentos e amplificadores e a ajustarem focos de luz e o diabo, teríamos esbeltas moçoilas nos mesmos afazeres mas agora devidamente coreografados e com (ou sem) uma indumentária mais apropriada aos calores de Verão.
Depois, a descapitalização dos tempos dos mortos: a tarde serve para ressacar. Para ressacar e para mais nada, a menos que se proporcione um… uma… ehr… isso. Não vale a pena ter actividades à tarde. À tarde há gajas para ver na praia – elas não ressacam por temerem o adágio popular “Se tua mulher ressaca, dormes ao lado duma vaca” – e há que começar a construir a bebedeira da noite, o que se faz muito melhor numa esplanada que no espaço inóspito de um festival.
Também a divulgação do evento teria que ser feita noutros moldes e deixo aqui algumas sugestões para slogans: “Gajas de sonho – não despem o corpo mas mostram a alma”; “Curtes Gajas? – O Festival de Verão para quem tem tesão!”; “Qualquer gaja é mais hardcore que o mariquinhas do Manson!”; “Mamas, sol e róquénróle!” ou outras sabujices congéneres.
Percebem a receita para o sucesso? Com este hype hormonal à volta ninguém teria coragem de dizer que não tinha gostado de um Festival chamado “Curtes Gajas?” e assim o cartaz poderia ser marcadamente feminino mas cheio de qualidade. Mais propostas neste domínio:
Dia 1 – Anda cá, portuguesa bonita!
- Margarida Pinto
- Raquel Ralha
- Anabela Duarte
- Anamar
- Lena d’Água
Dia 2 – Venham as loiras!
- Cardigans (ou no dia seguinte, se a Nina Persson ainda viesse com o cabelo preto)
- Saint Etienne
- Kylie Minogue
- Laura Veirs
- Goldfrapp
Dia 3 – Tragam as chocas ou os bois não se vão embora!
- Keren Ann Ziedler
- P.J.Harvey
- Anita Lane
- Ladytron
- Björk
E pronto. Eu olho para estas ideias e só não percebo é porque é que ainda tenho que trabalhar para comer…
segunda-feira, março 21, 2005 |
Microfábulas - XII
Havia, certa vez, uma mulher desempoeirada e dinâmica que, no limiar dos 60 anos, ainda carpia a “queda do Império”. “Lá vai a retornada linguaruda!”, diriam uns; “Lá vai a Gracinda!”, diriam os mais educados. Gracinda lá ia, num virote diário que tinha início às 6 de manhã: fazia limpezas numa instituição pública até às 10 da manhã; ajudava a filha com as refeições do seu snack-bar; às 15h ia para o lar de idosos onde era auxiliar e de onde saía às 21h, pronta para se dedicar à lida da casa onde o marido a esperava – esperava-a o dia inteiro, diga-se, gozando a aposentação sem fazer nenhum.
Minto: o marido de Gracinda tinha a seu cargo tomar conta da caturra, único traço de exotismo colonial no modesto e anódino T2 da zona menos nobre do Alto de Santo Amaro, ali pertinho da Rua dos Lusíadas. Entre uma cristaleira despropositada e um bar de canto comprado nuns saldos da Moviflor em 1984, lá estava a gaiola de pé onde a caturra (Soraya de seu nome) passava os dias, reciprocando o olhar do dono. E assim era que, quando Gracinda voltava a casa, pouco falava do que fora o seu dia antes ouvindo os extensos relatórios que lhe fazia o marido sobre as venturas e desventuras de Soraya: as penas que caíam, o que comia ou não comia, se estivera enérgica ou prostrada.
A Gracinda tudo isto parecia uma estranha lei de compensações. Desde o regresso de Angola, em 74, nunca pensara no seu marido como “homem de família” – era trabalhador e diligente e correcto mas o negócio das tintas e o convívio com os “amigos de Angola” tomavam-lhe o tempo de que mulher e filhos poderiam beneficiar. Ficava então Gracinda com a incumbência de conciliar o trabalho (menos horas, nessa altura) com a digna função de ser “o lar”. Os filhos – um casal, “pela Graça de Deus!” – haviam sido criados no meio da nostalgia pelo “paraíso perdido”, uma realidade de que mal se lembravam mas que era revisitada diariamente nas conversas da mãe com amigas e vizinhas:
“- Lembro-me tão bem… Quando estava grávida do meu Rui inchavam-me muito os pés. Não fazia mais nada: sentava-me no sofá e mandava um dos pretos ficar de gatas para descansar as pernas nas costas dele…
- E eu? Uma vez danei-me com um e dei-lhe com um martelo na cabeça que aquilo até zunia! Isso é que eram tempos…”
Claro: também falavam de festas e de bailes e de passeios mas as imagens da violência e do despotismo agradavam muito mais à criançada, que lá ia crescendo entre o burburinho da metrópole e a consciência de que “Angola é nossa!”. O filho fora para Londres com um amigo tentar a sorte num call-center de uma empresa qualquer e a filha casara com um rapazinho asseado do Fundão que tinha um snack-bar em Algés.
E agora restavam Gracinda, o marido e Soraya no T2 que, de repente, se tornara espaçoso. Sensivelmente pela mesma altura em que o marido trespassou o negócio das tintas e declarou que “já chegava” e que era altura de parar, Gracinda descobriu que não era mulher para estar parada e lá se inverteram os papéis: Gracinda esfalfando-se em várias ocupações e o marido vigiando Soraya com um carinho mais extremoso que o que devotara até aí a qualquer outro ser vivo.
Num dado dia, as coisas não correram de feição a Gracinda: nas limpezas escorregou no chão encerado e magoou-se no ombro; no snack-bar queimou-se numa sertã e no lar foi destratada por uma velha insossa. Mal abriu a porta de casa, deparou-se com o marido num visível estado de preocupação: “A Sorayazita hoje está muito derrubada… mal comeu… quase não dá por mim quando ponho o dedo na gaiola… não a achas mortiça?”. Entre a vontade de explodir e gritar “Quero lá saber da puta da caturra!” e a nota mental de que o napperon da mesa da sala precisava de ser lavado, Gracinda passou-se para a cozinha dizendo apenas “Isso passa…”. Na cozinha, enquanto estufava um bocado de alcatra com batatas e ervilhas, Gracinda ia matutando nessa situação ingrata de se ver relegada para segundo plano em favor de uma caturra e ia congeminando um plano para inverter a situação.
No dia seguinte, antes de sair de casa para as limpezas, Gracinda misturou veneno para ratos na comida de Soraya. Passou o dia entre a exaltação do “dever cumprido” e a culpa pelo pobre do animal. Quando viu os pratos de codornizes no snack-bar da filha mal pôde conter uma lágrima mas, quando se acercou de casa, já ia mais animada pela expectativa de encontrar o marido privado da sua distracção. Pelo sim pelo não, benzeu-se antes de meter a chave à porta.
Nisto, vzzzzzzzzzzzzzzt!
Moral 1: o aconselhamento matrimonial pode evitar que fases de crise desemboquem em situações de ruptura.
Moral 2: a PSP tem-se substituído às antigas redes de vizinhança no papel de evitar que as situações de ruptura num matrimónio se transformem em situações de violência conjugal declarada.
Havia, certa vez, uma mulher desempoeirada e dinâmica que, no limiar dos 60 anos, ainda carpia a “queda do Império”. “Lá vai a retornada linguaruda!”, diriam uns; “Lá vai a Gracinda!”, diriam os mais educados. Gracinda lá ia, num virote diário que tinha início às 6 de manhã: fazia limpezas numa instituição pública até às 10 da manhã; ajudava a filha com as refeições do seu snack-bar; às 15h ia para o lar de idosos onde era auxiliar e de onde saía às 21h, pronta para se dedicar à lida da casa onde o marido a esperava – esperava-a o dia inteiro, diga-se, gozando a aposentação sem fazer nenhum.
Minto: o marido de Gracinda tinha a seu cargo tomar conta da caturra, único traço de exotismo colonial no modesto e anódino T2 da zona menos nobre do Alto de Santo Amaro, ali pertinho da Rua dos Lusíadas. Entre uma cristaleira despropositada e um bar de canto comprado nuns saldos da Moviflor em 1984, lá estava a gaiola de pé onde a caturra (Soraya de seu nome) passava os dias, reciprocando o olhar do dono. E assim era que, quando Gracinda voltava a casa, pouco falava do que fora o seu dia antes ouvindo os extensos relatórios que lhe fazia o marido sobre as venturas e desventuras de Soraya: as penas que caíam, o que comia ou não comia, se estivera enérgica ou prostrada.
A Gracinda tudo isto parecia uma estranha lei de compensações. Desde o regresso de Angola, em 74, nunca pensara no seu marido como “homem de família” – era trabalhador e diligente e correcto mas o negócio das tintas e o convívio com os “amigos de Angola” tomavam-lhe o tempo de que mulher e filhos poderiam beneficiar. Ficava então Gracinda com a incumbência de conciliar o trabalho (menos horas, nessa altura) com a digna função de ser “o lar”. Os filhos – um casal, “pela Graça de Deus!” – haviam sido criados no meio da nostalgia pelo “paraíso perdido”, uma realidade de que mal se lembravam mas que era revisitada diariamente nas conversas da mãe com amigas e vizinhas:
“- Lembro-me tão bem… Quando estava grávida do meu Rui inchavam-me muito os pés. Não fazia mais nada: sentava-me no sofá e mandava um dos pretos ficar de gatas para descansar as pernas nas costas dele…
- E eu? Uma vez danei-me com um e dei-lhe com um martelo na cabeça que aquilo até zunia! Isso é que eram tempos…”
Claro: também falavam de festas e de bailes e de passeios mas as imagens da violência e do despotismo agradavam muito mais à criançada, que lá ia crescendo entre o burburinho da metrópole e a consciência de que “Angola é nossa!”. O filho fora para Londres com um amigo tentar a sorte num call-center de uma empresa qualquer e a filha casara com um rapazinho asseado do Fundão que tinha um snack-bar em Algés.
E agora restavam Gracinda, o marido e Soraya no T2 que, de repente, se tornara espaçoso. Sensivelmente pela mesma altura em que o marido trespassou o negócio das tintas e declarou que “já chegava” e que era altura de parar, Gracinda descobriu que não era mulher para estar parada e lá se inverteram os papéis: Gracinda esfalfando-se em várias ocupações e o marido vigiando Soraya com um carinho mais extremoso que o que devotara até aí a qualquer outro ser vivo.
Num dado dia, as coisas não correram de feição a Gracinda: nas limpezas escorregou no chão encerado e magoou-se no ombro; no snack-bar queimou-se numa sertã e no lar foi destratada por uma velha insossa. Mal abriu a porta de casa, deparou-se com o marido num visível estado de preocupação: “A Sorayazita hoje está muito derrubada… mal comeu… quase não dá por mim quando ponho o dedo na gaiola… não a achas mortiça?”. Entre a vontade de explodir e gritar “Quero lá saber da puta da caturra!” e a nota mental de que o napperon da mesa da sala precisava de ser lavado, Gracinda passou-se para a cozinha dizendo apenas “Isso passa…”. Na cozinha, enquanto estufava um bocado de alcatra com batatas e ervilhas, Gracinda ia matutando nessa situação ingrata de se ver relegada para segundo plano em favor de uma caturra e ia congeminando um plano para inverter a situação.
No dia seguinte, antes de sair de casa para as limpezas, Gracinda misturou veneno para ratos na comida de Soraya. Passou o dia entre a exaltação do “dever cumprido” e a culpa pelo pobre do animal. Quando viu os pratos de codornizes no snack-bar da filha mal pôde conter uma lágrima mas, quando se acercou de casa, já ia mais animada pela expectativa de encontrar o marido privado da sua distracção. Pelo sim pelo não, benzeu-se antes de meter a chave à porta.
Nisto, vzzzzzzzzzzzzzzt!
Moral 1: o aconselhamento matrimonial pode evitar que fases de crise desemboquem em situações de ruptura.
Moral 2: a PSP tem-se substituído às antigas redes de vizinhança no papel de evitar que as situações de ruptura num matrimónio se transformem em situações de violência conjugal declarada.
quarta-feira, março 16, 2005 |
YOPLALIS – Do Lactobacillus dream of transgenic lactose?
Palmer Eldrich estava na ressaca de uma longa história de abuso de drogas ilegais e fora agora forçado a encetar uma vida regrada, da qual faziam parte visitas diárias ao Centro de Medicina Aeroespacial Lunar, para desintoxicação. A alimentação racional fazia parte do processo e o iogurte tomado de manhã tinha sido recomendado pelo médico, o Dr. William Sweetscent. A grande toxicidade hepática e o elevado potencial adictivo da droga JJ-180 tinha sido mal avaliada por Palmer. Isto apesar dos efeitos da droga terem servido os seus intentos de melhor classificação social junto do Quizzmaster. Palmer Eldritch era um renomado bioquímico 8-8 e a JJ-180 tinha a capacidade de efectivamente transportar no tempo, aleatoriamente decerto, quem a tomava. Palmer regressara ao passado e viajara ao futuro, por via da droga, alterando os acontecimentos passados e também obtendo conhecimento valioso acerca dos futuros alternativos para seu uso vantajoso, no presente. Nomeadamente, pôde manipular o resultados da Lotaria, que sorteava poder e prestígio em todo o Império Solar. Assim, obtivera o seu estauto elevado de 8-8. Não previra, no entanto, que o seu sistema nervoso se degradasse tanto. Agora tinha que fazer uma pausa. Colocou a massa de levedura, que lhe tinha fornecido Sweetscent, num recipiente com leite morno e tapou-o. – "Flôr-de-iogurte" é um nome idota"- pensou. No entanto, lembrava-se da sua avó, maníaca da alimentação saudável, fazer deste iogurte e também do seu travo ácido, quando lho dava a provar. Contudo, essas recordações das primeiras décadas do terceiro milénio também lhe eram agradáveis. Também por isso, aceitou resignadamente a dieta de iogurte caseiro de Sweetscent. Foi para o quarto e olhou as luzes da grande cidade lunar e o gigantesco edifício da Corporação Planetária. Um vai-vêm de carga, provavelmente vindo das colónias de Io ou Europa, fazia a aproximação à pista do espaçoporto. Palmer bocejou. Sentado numa cadeira do quarto, olhou distraidamente os anúncios da televisão. A maior parte eram a marcas populares de orgãos artificiais, clonados de células estaminais e destinados para manter a longevidade do corpo à medida que os naturais iam falhando. Estes dispendiosos orgãos sobressalentes levavam os cidadãos a empenharem-se toda uma vida aos bancos, mas eram um negócio lucrativo. Palmer estava exausto. Sob a semi-imponderabilidade da Lua, o copo de sumo de uva caiu lentamente da mão de Palmer quando este adormeceu.
Na cozinha, a flôr-de-iogurte transgénica afadigava-se na transformação do leite. No recipiente, a massa branca agitava-se e começava a borbulhar. Uma ligeira luminescência invadiu o interior do frigorífico. Uma massa informe de protoplasma branco estravasava o recipiente Tupperware e começava a formar uma espécie de tentáculo titubeante. A massa de iogurte transgénico absorvia, como uma amiba gigante, os alimentos do frigorífico: os cubos de tofu, o seitan, o amasake de arroz, a ameixa salgada kombu, o miso, o molho de gergelim, as lentilhas, os restos de arroz integral e o chá Três Anos. Forçava agora a porta do frigorífico e rastejava pelo chão da cozinha. Vários tentáculos e uma cavidade que lembrava uma boca informe prescrutavam os vários armários em busca de comida. Uma parte da massa protoplásmica entrava pelo sifão da sanita e introduzia-se no esgoto do bloco de apartamentos alveolares.
Palmer revirava-se no sofá em inquietos pesadelos, revivendo algumas das alucinações da droga Alfa-Soma-45, que consumira profusamente durante o ano anterior. O efeito psicotrópico principal era a projecção do Si-mesmo do consumidor para o interior de figurinhas de plástico que ocupavam um pequeno cenário miniatura. Tinha sido uma droga muito popular nas colónias áridas de Marte entre os trabalhadores das minas de zircónio. Podia assim viver-se virtualmente uma qualquer situação escolhida previamente, em função do cenário construído. Podia ser uma estância tropical na Terra ou a vida de um nababo da Índia do século XVII, rodeado de luxo e concubinas. Palmer gostava especialmente dum cenário em que montara uma miniatura perfeita dum serralho Joviano em que cyber-moças-de-cama lascivas lhe lambiam o corpo apolíneo e musculado. O negócio da droga Alfa-Soma-45 era particularmente rendível sobretudo porque os mini-adereços para os cenários tinham de ser muito perfeitos para serem convincentes. Caso contrário, as imperfeições interferiam com a alucinação por forma a que o drogado as percebia com inconsistências no tecido da realidade virtual e ficava num estado de confusão até o efeito da droga se desvanecer na circulação sanguínea. O negócio das miniaturas perfeitas estendeu-se de tal modo que passou a ser mais atractivo para os investidores, que o tráfico da própria droga. O objectivo de muitas famílias de colonos, foi durante muito tempo, adquirir a maior quantidade possível de boas miniaturas. E endividaram-se por isso. Palmer enriqueceu com esse negócio, pois montara uma fábrica onde os artesãos micro-oleiros de Ganímedes produziam as miniaturas mais procuradas. Agora tudo isto voltava, em pesadelos, numa amálgama de experiências incoerentes durante o sono. Uma consequência do uso da droga por Palmer, que caíra na tentação de experimentar o seu próprio produto.
A massa protoplásmica carnívora de flôr-de- iogurte avançava agora pelos alvéolos modulares hexagonais que formavam o dormitório dos cientistas da cidade lunar Selenis IV. O iogurte faminto devorava os incautos adormecidos, que muitas vezes não tinham tempo sequer de emitir um grito. Palmer Eldrich, sacudido por um espasmo, acordou muito inquieto. Os ruídos gorgolejantes vindos da cozinha atrairam-lhe a atenção. Estacou e acendeu um cigarro. Tirou uma fumaça e avançou decidido. Num esgar de horror e incredulidade viu a massa de iogurte carnívora. Atirou-se pela janela e correu pela sacada que unia as janelas dos álvéolos-quarto. Na cozinha, o iogurte gritava numa voz cava – “QUERO COMER!...ARGH…COMIDA!...COMIDA!” – Palmer não hesitou e chamou dali mesmo um cyber-táxi que sobrevoava o bairro. – “Estranho sítio para chamar um táxi”. – Disse o táxi. – Palmer não lhe respondeu, acendeu um cigarro e olhou alguns sinais de agitação e pânico no bairro dos cientistas que já se notavam. Chegou ao laboratório, abriu o armário classificado com uma passagem da sua mão direita. “Dr. Palmer Eldritch. Autorizado” – Disse uma voz sintética. A porta abriu-se. Palmer abriu o frasco de JJ-180 e engoliu duas cápsulas sem água. Enquanto a droga não fazia efeito lembrou-se que tinha havido já notícia de acidentes com outros transgénicos caseiros. Sobretudo quando as donas de casa começaram a usar PCRs[polymerase chain reaction] e sequenciadores de DNA de cozinha, tornados baratos pela Taurus. Entretanto, sob o efeito da droga, Palmer voltara para trás no tempo umas vinte quatro horas, pois olhou o calendário na parede do laboratório e tudo batia certo. – “Perfeito” – Pensou. Meteu-se noutro táxi e voou rapidamente para o consultório de Sweetscent no Complexo de Medicina Aeroespacial Lunar.
- “Então, Palmer, meu grande cabrão?”- Disse o médico a apagar a beata.
O Palmer do seu passado estava de calças em baixo reclinado na marquesa olhou o médico e o Palmer-do-futuro algo perplexo. O médico olhou os dois e disse: - Pôrra, Palmer, andaste outra vez a meter daquela merda! Foda-se! Assim, volta tudo à estaca zero, filho da mãe! Que raio…” Palmer Eldritch acalmou-o e disse- “ É um risco que corro.E é por uma boa causa, Bill”. Pegou no frasco da levedura que estava em cima da secretária, despejou-o num recipiente aberto, meteu-o no micro-ondas, rodou para grill no máximo e pressionou o botão. A levedura ferveu até ficar amarela e ressequida. O médico acendeu um cigarro. – “Deu merda, o iogurte, foi?” – “Foi.- Disse Palmer. O médico tirou uma fumaça, abriu a garrafa de J&B e serviu três copos. – “Foi a parva da mulher-a-dias que me deu…Bom, deixa lá isso. Amanhã já sabes. Leite de soja.” Palmer suspirou e olhou para Palmer-do-passado, que já tragava o seu whisky de uma vez.
FIM
Palmer Eldrich estava na ressaca de uma longa história de abuso de drogas ilegais e fora agora forçado a encetar uma vida regrada, da qual faziam parte visitas diárias ao Centro de Medicina Aeroespacial Lunar, para desintoxicação. A alimentação racional fazia parte do processo e o iogurte tomado de manhã tinha sido recomendado pelo médico, o Dr. William Sweetscent. A grande toxicidade hepática e o elevado potencial adictivo da droga JJ-180 tinha sido mal avaliada por Palmer. Isto apesar dos efeitos da droga terem servido os seus intentos de melhor classificação social junto do Quizzmaster. Palmer Eldritch era um renomado bioquímico 8-8 e a JJ-180 tinha a capacidade de efectivamente transportar no tempo, aleatoriamente decerto, quem a tomava. Palmer regressara ao passado e viajara ao futuro, por via da droga, alterando os acontecimentos passados e também obtendo conhecimento valioso acerca dos futuros alternativos para seu uso vantajoso, no presente. Nomeadamente, pôde manipular o resultados da Lotaria, que sorteava poder e prestígio em todo o Império Solar. Assim, obtivera o seu estauto elevado de 8-8. Não previra, no entanto, que o seu sistema nervoso se degradasse tanto. Agora tinha que fazer uma pausa. Colocou a massa de levedura, que lhe tinha fornecido Sweetscent, num recipiente com leite morno e tapou-o. – "Flôr-de-iogurte" é um nome idota"- pensou. No entanto, lembrava-se da sua avó, maníaca da alimentação saudável, fazer deste iogurte e também do seu travo ácido, quando lho dava a provar. Contudo, essas recordações das primeiras décadas do terceiro milénio também lhe eram agradáveis. Também por isso, aceitou resignadamente a dieta de iogurte caseiro de Sweetscent. Foi para o quarto e olhou as luzes da grande cidade lunar e o gigantesco edifício da Corporação Planetária. Um vai-vêm de carga, provavelmente vindo das colónias de Io ou Europa, fazia a aproximação à pista do espaçoporto. Palmer bocejou. Sentado numa cadeira do quarto, olhou distraidamente os anúncios da televisão. A maior parte eram a marcas populares de orgãos artificiais, clonados de células estaminais e destinados para manter a longevidade do corpo à medida que os naturais iam falhando. Estes dispendiosos orgãos sobressalentes levavam os cidadãos a empenharem-se toda uma vida aos bancos, mas eram um negócio lucrativo. Palmer estava exausto. Sob a semi-imponderabilidade da Lua, o copo de sumo de uva caiu lentamente da mão de Palmer quando este adormeceu.
Na cozinha, a flôr-de-iogurte transgénica afadigava-se na transformação do leite. No recipiente, a massa branca agitava-se e começava a borbulhar. Uma ligeira luminescência invadiu o interior do frigorífico. Uma massa informe de protoplasma branco estravasava o recipiente Tupperware e começava a formar uma espécie de tentáculo titubeante. A massa de iogurte transgénico absorvia, como uma amiba gigante, os alimentos do frigorífico: os cubos de tofu, o seitan, o amasake de arroz, a ameixa salgada kombu, o miso, o molho de gergelim, as lentilhas, os restos de arroz integral e o chá Três Anos. Forçava agora a porta do frigorífico e rastejava pelo chão da cozinha. Vários tentáculos e uma cavidade que lembrava uma boca informe prescrutavam os vários armários em busca de comida. Uma parte da massa protoplásmica entrava pelo sifão da sanita e introduzia-se no esgoto do bloco de apartamentos alveolares.
Palmer revirava-se no sofá em inquietos pesadelos, revivendo algumas das alucinações da droga Alfa-Soma-45, que consumira profusamente durante o ano anterior. O efeito psicotrópico principal era a projecção do Si-mesmo do consumidor para o interior de figurinhas de plástico que ocupavam um pequeno cenário miniatura. Tinha sido uma droga muito popular nas colónias áridas de Marte entre os trabalhadores das minas de zircónio. Podia assim viver-se virtualmente uma qualquer situação escolhida previamente, em função do cenário construído. Podia ser uma estância tropical na Terra ou a vida de um nababo da Índia do século XVII, rodeado de luxo e concubinas. Palmer gostava especialmente dum cenário em que montara uma miniatura perfeita dum serralho Joviano em que cyber-moças-de-cama lascivas lhe lambiam o corpo apolíneo e musculado. O negócio da droga Alfa-Soma-45 era particularmente rendível sobretudo porque os mini-adereços para os cenários tinham de ser muito perfeitos para serem convincentes. Caso contrário, as imperfeições interferiam com a alucinação por forma a que o drogado as percebia com inconsistências no tecido da realidade virtual e ficava num estado de confusão até o efeito da droga se desvanecer na circulação sanguínea. O negócio das miniaturas perfeitas estendeu-se de tal modo que passou a ser mais atractivo para os investidores, que o tráfico da própria droga. O objectivo de muitas famílias de colonos, foi durante muito tempo, adquirir a maior quantidade possível de boas miniaturas. E endividaram-se por isso. Palmer enriqueceu com esse negócio, pois montara uma fábrica onde os artesãos micro-oleiros de Ganímedes produziam as miniaturas mais procuradas. Agora tudo isto voltava, em pesadelos, numa amálgama de experiências incoerentes durante o sono. Uma consequência do uso da droga por Palmer, que caíra na tentação de experimentar o seu próprio produto.
A massa protoplásmica carnívora de flôr-de- iogurte avançava agora pelos alvéolos modulares hexagonais que formavam o dormitório dos cientistas da cidade lunar Selenis IV. O iogurte faminto devorava os incautos adormecidos, que muitas vezes não tinham tempo sequer de emitir um grito. Palmer Eldrich, sacudido por um espasmo, acordou muito inquieto. Os ruídos gorgolejantes vindos da cozinha atrairam-lhe a atenção. Estacou e acendeu um cigarro. Tirou uma fumaça e avançou decidido. Num esgar de horror e incredulidade viu a massa de iogurte carnívora. Atirou-se pela janela e correu pela sacada que unia as janelas dos álvéolos-quarto. Na cozinha, o iogurte gritava numa voz cava – “QUERO COMER!...ARGH…COMIDA!...COMIDA!” – Palmer não hesitou e chamou dali mesmo um cyber-táxi que sobrevoava o bairro. – “Estranho sítio para chamar um táxi”. – Disse o táxi. – Palmer não lhe respondeu, acendeu um cigarro e olhou alguns sinais de agitação e pânico no bairro dos cientistas que já se notavam. Chegou ao laboratório, abriu o armário classificado com uma passagem da sua mão direita. “Dr. Palmer Eldritch. Autorizado” – Disse uma voz sintética. A porta abriu-se. Palmer abriu o frasco de JJ-180 e engoliu duas cápsulas sem água. Enquanto a droga não fazia efeito lembrou-se que tinha havido já notícia de acidentes com outros transgénicos caseiros. Sobretudo quando as donas de casa começaram a usar PCRs[polymerase chain reaction] e sequenciadores de DNA de cozinha, tornados baratos pela Taurus. Entretanto, sob o efeito da droga, Palmer voltara para trás no tempo umas vinte quatro horas, pois olhou o calendário na parede do laboratório e tudo batia certo. – “Perfeito” – Pensou. Meteu-se noutro táxi e voou rapidamente para o consultório de Sweetscent no Complexo de Medicina Aeroespacial Lunar.
- “Então, Palmer, meu grande cabrão?”- Disse o médico a apagar a beata.
O Palmer do seu passado estava de calças em baixo reclinado na marquesa olhou o médico e o Palmer-do-futuro algo perplexo. O médico olhou os dois e disse: - Pôrra, Palmer, andaste outra vez a meter daquela merda! Foda-se! Assim, volta tudo à estaca zero, filho da mãe! Que raio…” Palmer Eldritch acalmou-o e disse- “ É um risco que corro.E é por uma boa causa, Bill”. Pegou no frasco da levedura que estava em cima da secretária, despejou-o num recipiente aberto, meteu-o no micro-ondas, rodou para grill no máximo e pressionou o botão. A levedura ferveu até ficar amarela e ressequida. O médico acendeu um cigarro. – “Deu merda, o iogurte, foi?” – “Foi.- Disse Palmer. O médico tirou uma fumaça, abriu a garrafa de J&B e serviu três copos. – “Foi a parva da mulher-a-dias que me deu…Bom, deixa lá isso. Amanhã já sabes. Leite de soja.” Palmer suspirou e olhou para Palmer-do-passado, que já tragava o seu whisky de uma vez.
FIM
quinta-feira, março 10, 2005 |
UMA ESCALA DESCENDENTE DE CHÁS OPEN SOURCE
Pai Mu Tan Imperial
Kong Ming
Fujiama verde
Sencha
Goyku
Tarry Lapsang Souchong
Special Formosa Oolong
Temple du Ciel special Gunpowder
SF TGBOP Namring Darjeeling
Gorreana Hysson verde
Gorreana Orange Pekoe
Chá Licungo
Chá de boldo
Chá de alfavaca-da-cobra
Chá de cebola
Chá de azeitona
Chá Lipton Branco
Chá de esparguete
Chá de Bolicao
Chá de pizza
Chá de pipis de morto com seis meses de cemitério
Água de lavar chávenas de café
Chá de cevada biológica torrada não-irradiada com raios gama nem transgénica
Chá de cigano
Chá de salsichas Knockwürst de perú
Água de depenar galinhas
Chá de óleo Fula usado para fritar 300 kg de filhós e com um cheirinho de Bols licor de ovo
Chá de pêlos das axilas da Winnie Mandela (não desfazendo)
Chá de corrimento
Chá de expectoração do Papa
Chá de quisto hidático da Irmã Lúcia
(...)
Pai Mu Tan Imperial
Kong Ming
Fujiama verde
Sencha
Goyku
Tarry Lapsang Souchong
Special Formosa Oolong
Temple du Ciel special Gunpowder
SF TGBOP Namring Darjeeling
Gorreana Hysson verde
Gorreana Orange Pekoe
Chá Licungo
Chá de boldo
Chá de alfavaca-da-cobra
Chá de cebola
Chá de azeitona
Chá Lipton Branco
Chá de esparguete
Chá de Bolicao
Chá de pizza
Chá de pipis de morto com seis meses de cemitério
Água de lavar chávenas de café
Chá de cevada biológica torrada não-irradiada com raios gama nem transgénica
Chá de cigano
Chá de salsichas Knockwürst de perú
Água de depenar galinhas
Chá de óleo Fula usado para fritar 300 kg de filhós e com um cheirinho de Bols licor de ovo
Chá de pêlos das axilas da Winnie Mandela (não desfazendo)
Chá de corrimento
Chá de expectoração do Papa
Chá de quisto hidático da Irmã Lúcia
(...)
quarta-feira, março 09, 2005 |
FEROMONA RELOADED
Mais uma oportunidade única de assistirem a um grande concerto. Mais uma oportunidade que não devem deixar escapar. Oportunidades assim, hoje em dia, são pouco frequentes.
Os Feromona vão actuar. Os Feromona vão expressar-se em palco. Os Feromona vão dignificar a música feita no nosso país.
Os Feromona são generosos. Os Feromona vão fugir dos grandes centros urbanos. Os Feromona vão deslocalizar-se do caos urbanístico.
Os Feromona vão dar espectáculo. Os Feromona vão iluminar as gentes que rodeiam a Ericeira.
Ide lá espreitar o rock-zoófilo-urbano dos Feromona.
Dia 12, sábado, pelas 23 horas, no Piano Bar - Estação Maria Fumaça.
Não vos arrependereis.
A maneira de lá chegar está aqui.
Mais uma oportunidade única de assistirem a um grande concerto. Mais uma oportunidade que não devem deixar escapar. Oportunidades assim, hoje em dia, são pouco frequentes.
Os Feromona vão actuar. Os Feromona vão expressar-se em palco. Os Feromona vão dignificar a música feita no nosso país.
Os Feromona são generosos. Os Feromona vão fugir dos grandes centros urbanos. Os Feromona vão deslocalizar-se do caos urbanístico.
Os Feromona vão dar espectáculo. Os Feromona vão iluminar as gentes que rodeiam a Ericeira.
Ide lá espreitar o rock-zoófilo-urbano dos Feromona.
Dia 12, sábado, pelas 23 horas, no Piano Bar - Estação Maria Fumaça.
Não vos arrependereis.
A maneira de lá chegar está aqui.
terça-feira, março 08, 2005 |
Microfábulas – XI
Havia, certa vez, um quarentão de voz titubeante e olhar esgazeado que vivia atormentado por toda a sorte de fobias. “Lá vai o maniento de merda!”, diriam uns; “Lá vai o Augustinho!”, diriam os mais educados. O diminutivo servia de certidão à sua condição de solteiro agarrado às saias – ou calças, por força das varizes – da mãe. Ao solteirio e às fobias, Augustinho aliava uma frontalidade que o mais das vezes se confundia – com alguma legitimidade – com a mais exemplar estupidez. E o povo que com ele convivia aceitava Augustinho como um curioso “apontamento de reportagem”, o “taradinho com medo das doenças”, inofensivo e fácil de menosprezar.
A pensão por viuvez que a mãe de Augustinho auferia lá ia dando para cobrir as despesas pois o “seu menino” não conseguia arranjar trabalho. A última tentativa tinha sido com um comerciante amigo do defunto Major Augusto que, por consideração para com a viúva, colocara a hipótese de empregar Augustinho nos seus escritórios. Bastaram dois minutos de entrevista para que o comerciante mudasse de ideias:
- Ora bom dia, Augusto! – disse o empresário estendendo a mão para apertar.
- O senhor desculpe-me… é dextro? – perguntou Augustinho, recuando um passo.
- Ora essa! Sou dextro, pois!
- Escusar-me-á que o não cumprimente mas compreenda: nos dextros é a mão direita que se utiliza para as actividades de limpeza subsequentes às necessidades fisiológicas…
Posto na rua após dois ou três berros do furibundo comerciante, Augustinho lá se viu na contingência de explicar à mãezinha que o emprego se perdera porque “O Senhor Raimundo queria por força que eu lhe apertasse a mão com que limpa o rabo!”. A mãezinha suspirou e lá lhe foi ferver a chávena e fazer uma infusão de camomila para acalmar os nervos ao Augustinho.
Ora num dado dia, Augustinho lá cedeu à recomendação da mãe e foi dar um passeio pela vila. Quis o destino que se cruzasse com um ciganito de 12 anos que andava a vender pensos rápidos e o Borda d’Água e que ficava com a libido feita numa cama elástica quando sentia o cheiro do desinfectante. Sem que Augustinho se apercebesse muito bem do que se estava a passar, quando deu por si já o seu membro viril estava a ser gulosamente sugado pelo ciganito que, para maior distracção, se empalava num grosso talo de couve-galega. Augustinho, estulto mas pragmático, pensou de si para consigo: “Emporcalhado já estou, deixa lá isto ir até ao fim…” e o fim rapidamente chegou, beneficiando dos dotes do mocito e da rebarba do protagonista.
Retornado a casa, Augustinho estava nauseado e transtornado, carregado de culpa e imundície. Despiu-se o mais rápido que pode e agarrou em vários frascos de álcool etílico que foi despejando alternadamente sobre o corpo e sobre a roupa que trouxera vestida. Quando se sentiu mais refeito, foi à cozinha buscar os fósforos – nunca mais envergaria as vestes que haviam testemunhado a sua descida mais abjecta.
Nisto, vzzzzzzzzzzzt!
Moral 1: boa parte dos incêndios domiciliários resulta de acidentes e imprudências, em especial da falta de cuidado na proximidade entre combustíveis e fontes de combustão.
Moral 2: há várias instituições de solidariedade social que têm programas de recolha de roupa usada que é depois distribuída pelos pobrezinhos ou vendida na Feira da Ladra.
Havia, certa vez, um quarentão de voz titubeante e olhar esgazeado que vivia atormentado por toda a sorte de fobias. “Lá vai o maniento de merda!”, diriam uns; “Lá vai o Augustinho!”, diriam os mais educados. O diminutivo servia de certidão à sua condição de solteiro agarrado às saias – ou calças, por força das varizes – da mãe. Ao solteirio e às fobias, Augustinho aliava uma frontalidade que o mais das vezes se confundia – com alguma legitimidade – com a mais exemplar estupidez. E o povo que com ele convivia aceitava Augustinho como um curioso “apontamento de reportagem”, o “taradinho com medo das doenças”, inofensivo e fácil de menosprezar.
A pensão por viuvez que a mãe de Augustinho auferia lá ia dando para cobrir as despesas pois o “seu menino” não conseguia arranjar trabalho. A última tentativa tinha sido com um comerciante amigo do defunto Major Augusto que, por consideração para com a viúva, colocara a hipótese de empregar Augustinho nos seus escritórios. Bastaram dois minutos de entrevista para que o comerciante mudasse de ideias:
- Ora bom dia, Augusto! – disse o empresário estendendo a mão para apertar.
- O senhor desculpe-me… é dextro? – perguntou Augustinho, recuando um passo.
- Ora essa! Sou dextro, pois!
- Escusar-me-á que o não cumprimente mas compreenda: nos dextros é a mão direita que se utiliza para as actividades de limpeza subsequentes às necessidades fisiológicas…
Posto na rua após dois ou três berros do furibundo comerciante, Augustinho lá se viu na contingência de explicar à mãezinha que o emprego se perdera porque “O Senhor Raimundo queria por força que eu lhe apertasse a mão com que limpa o rabo!”. A mãezinha suspirou e lá lhe foi ferver a chávena e fazer uma infusão de camomila para acalmar os nervos ao Augustinho.
Ora num dado dia, Augustinho lá cedeu à recomendação da mãe e foi dar um passeio pela vila. Quis o destino que se cruzasse com um ciganito de 12 anos que andava a vender pensos rápidos e o Borda d’Água e que ficava com a libido feita numa cama elástica quando sentia o cheiro do desinfectante. Sem que Augustinho se apercebesse muito bem do que se estava a passar, quando deu por si já o seu membro viril estava a ser gulosamente sugado pelo ciganito que, para maior distracção, se empalava num grosso talo de couve-galega. Augustinho, estulto mas pragmático, pensou de si para consigo: “Emporcalhado já estou, deixa lá isto ir até ao fim…” e o fim rapidamente chegou, beneficiando dos dotes do mocito e da rebarba do protagonista.
Retornado a casa, Augustinho estava nauseado e transtornado, carregado de culpa e imundície. Despiu-se o mais rápido que pode e agarrou em vários frascos de álcool etílico que foi despejando alternadamente sobre o corpo e sobre a roupa que trouxera vestida. Quando se sentiu mais refeito, foi à cozinha buscar os fósforos – nunca mais envergaria as vestes que haviam testemunhado a sua descida mais abjecta.
Nisto, vzzzzzzzzzzzt!
Moral 1: boa parte dos incêndios domiciliários resulta de acidentes e imprudências, em especial da falta de cuidado na proximidade entre combustíveis e fontes de combustão.
Moral 2: há várias instituições de solidariedade social que têm programas de recolha de roupa usada que é depois distribuída pelos pobrezinhos ou vendida na Feira da Ladra.
CONTO ZEN
Diz-se que Wuang Tsé, o sexto Mestre Zen ainda conheceu o Bodhidharma, que levou a doutrina do Buda para a China. O primeiro terá respondido ao Imperador que não sabia quem era, após ter estado sete anos a meditar, olhando a parede duma caverna. O Mestre Wuang Tsé, quando era novo, foi um humilde rapaz pobre que guardava uma vaca. A sua história e encontro com o Bodhidharma foi assim:
Wuang-Tsé tinha uma vaca que levava todos os dias ao campo para pastar e depois recolhia à noite. Um dia, Wuang-Tsé vinha com a vaca pela arreata quando lhe apareceu um tigre. O tigre disse: - "dá-me a tua vaca senão vou-te já aqui ao cú". Wuang-Tsé engoliu em seco e disse: - " Está bem. Então toma lá a vaca". A vaca ficou abespinhada com a troca pois nutria os mais puros sentimentos de amor filial por Wuang-Tsé e ficou muito triste. O tigre levou a vaca e passou a ordenhá-la todos os dias até que acumulou uma enorme quantidade de leite. Sem saber o que fazer ao leite, o tigre foi ter com o ancião da aldeia, sem saber que Wuang-Tsé era bisneto deste. O ancião contou-lhe provérbios e mais provérbios e o tigre adormeceu. Entretanto, como a conversa do ancião demorou, o leite azedou todo. O tigre quando chegou e viu o leite azedo ficou muito triste e foi devolver a vaca a Wang-Tsé. Wuang-Tsé disse-lhe então - " Mas queres desfazer a troca? Mas não te tenho que dar o cú, pois não?" O tigre encolheu os ombros e disse que tanto fazia. Wuang-Tsé baixou as calças na mesma e começou a mamar no pireto do tigre, que afinal era o seu patrão Hong Li Fang, que lá na Tríade andava com ideias de o despachar para Portugal para um restaurante chinês. Waung-Tsé após ter deglutido umas litradas valentes de líquidos seminais do patrão, afastou-se abespinhado e foi sentar-se debaixo de uma cerejeira florida, na beira do Lago Prateado, olhando as garças e as carpas que voltavam na água cristalina. Um monge do Mosteiro de Ling Chung Yu Are A Bandit!, que era na realidade o Bodhidharma, aproximou-se com um sorriso eivado de compaixão por aquele rapaz pesaroso, pousou-lhe a mão no ombro e contou-lhe esta história:
“Certo tempo, o sábio Lao Tsé quis abandonar o Império do Meio e acercando-se da fronteira, o guarda disse-lhe que só lhe permitiria passagem se ele lhe escrevesse um livro resumindo toda a sua sabedoria. Lao Tsé escreveu tudo o que sabia sobre o Tao e entregou ao guarda. Mas o guarda disse então, que só o deixava sair se ele lhe tirasse ali uma imperial de joelhos. Lao Tsé nem pestanejou. Desceu da sua montada, que era um búfalo-de-água muito amistoso chamado Folha de Outono e abocanhou o tarolo do guarda” . Vês Wuang-Tsé? O verdadeiro homem sábio aceita os desígnios do Tao sem hesitar – disse o monge sorrindo. Wuang Tsé não compreendeu e olhou o monge perplexo. Então o monge introduziu o membro insalubre, com odoríferas pastadas de esmegma estaladiça de vários meses de vida ascética sem se lavar, até à epiglote de Wuang Tsé e nisto – vzzzzzzt!... – Wang Tsé atingiu a Iluminação!
Moral 1. A compreensão directa da Realidade e o abandono da Grande Ilusão do Ego pode surgir, tal folha de Outono caindo silenciosamente, por um qualquer acontecimento aparentemente insignificante,.
Moral 2. O monge talvez pudesse ter levado Wang Tsé para o Mosteiro para anos e anos de meditação, mas como andava desalmado, preferiu o método directo. Por compaixão ainda temperou o tarolo com umas gotas de molho de soja.
Nota. A escola do ´Chan chinês originou posteriormente as escolas do Zen Soto e Rinsai que hoje existem no Japão. E que a troco dum cheque à ordem de “Mestre Suzuki Freitas”, descendente de jesuítas, têm levado muitos ocidentais ao Satori e grandes barrigadas de esperma.
Diz-se que Wuang Tsé, o sexto Mestre Zen ainda conheceu o Bodhidharma, que levou a doutrina do Buda para a China. O primeiro terá respondido ao Imperador que não sabia quem era, após ter estado sete anos a meditar, olhando a parede duma caverna. O Mestre Wuang Tsé, quando era novo, foi um humilde rapaz pobre que guardava uma vaca. A sua história e encontro com o Bodhidharma foi assim:
Wuang-Tsé tinha uma vaca que levava todos os dias ao campo para pastar e depois recolhia à noite. Um dia, Wuang-Tsé vinha com a vaca pela arreata quando lhe apareceu um tigre. O tigre disse: - "dá-me a tua vaca senão vou-te já aqui ao cú". Wuang-Tsé engoliu em seco e disse: - " Está bem. Então toma lá a vaca". A vaca ficou abespinhada com a troca pois nutria os mais puros sentimentos de amor filial por Wuang-Tsé e ficou muito triste. O tigre levou a vaca e passou a ordenhá-la todos os dias até que acumulou uma enorme quantidade de leite. Sem saber o que fazer ao leite, o tigre foi ter com o ancião da aldeia, sem saber que Wuang-Tsé era bisneto deste. O ancião contou-lhe provérbios e mais provérbios e o tigre adormeceu. Entretanto, como a conversa do ancião demorou, o leite azedou todo. O tigre quando chegou e viu o leite azedo ficou muito triste e foi devolver a vaca a Wang-Tsé. Wuang-Tsé disse-lhe então - " Mas queres desfazer a troca? Mas não te tenho que dar o cú, pois não?" O tigre encolheu os ombros e disse que tanto fazia. Wuang-Tsé baixou as calças na mesma e começou a mamar no pireto do tigre, que afinal era o seu patrão Hong Li Fang, que lá na Tríade andava com ideias de o despachar para Portugal para um restaurante chinês. Waung-Tsé após ter deglutido umas litradas valentes de líquidos seminais do patrão, afastou-se abespinhado e foi sentar-se debaixo de uma cerejeira florida, na beira do Lago Prateado, olhando as garças e as carpas que voltavam na água cristalina. Um monge do Mosteiro de Ling Chung Yu Are A Bandit!, que era na realidade o Bodhidharma, aproximou-se com um sorriso eivado de compaixão por aquele rapaz pesaroso, pousou-lhe a mão no ombro e contou-lhe esta história:
“Certo tempo, o sábio Lao Tsé quis abandonar o Império do Meio e acercando-se da fronteira, o guarda disse-lhe que só lhe permitiria passagem se ele lhe escrevesse um livro resumindo toda a sua sabedoria. Lao Tsé escreveu tudo o que sabia sobre o Tao e entregou ao guarda. Mas o guarda disse então, que só o deixava sair se ele lhe tirasse ali uma imperial de joelhos. Lao Tsé nem pestanejou. Desceu da sua montada, que era um búfalo-de-água muito amistoso chamado Folha de Outono e abocanhou o tarolo do guarda” . Vês Wuang-Tsé? O verdadeiro homem sábio aceita os desígnios do Tao sem hesitar – disse o monge sorrindo. Wuang Tsé não compreendeu e olhou o monge perplexo. Então o monge introduziu o membro insalubre, com odoríferas pastadas de esmegma estaladiça de vários meses de vida ascética sem se lavar, até à epiglote de Wuang Tsé e nisto – vzzzzzzt!... – Wang Tsé atingiu a Iluminação!
Moral 1. A compreensão directa da Realidade e o abandono da Grande Ilusão do Ego pode surgir, tal folha de Outono caindo silenciosamente, por um qualquer acontecimento aparentemente insignificante,.
Moral 2. O monge talvez pudesse ter levado Wang Tsé para o Mosteiro para anos e anos de meditação, mas como andava desalmado, preferiu o método directo. Por compaixão ainda temperou o tarolo com umas gotas de molho de soja.
Nota. A escola do ´Chan chinês originou posteriormente as escolas do Zen Soto e Rinsai que hoje existem no Japão. E que a troco dum cheque à ordem de “Mestre Suzuki Freitas”, descendente de jesuítas, têm levado muitos ocidentais ao Satori e grandes barrigadas de esperma.
sábado, março 05, 2005 |
As coisas que eu sei e que não me servem para nada...
Fotografia obtida através de uma máquina acoplada a um microscópio óptico.
Quando se quer estudar a técnica de um pintor, saber se uma pintura é falsa ou ainda se se quer restaurar uma pintura ou uma escultura, dá uma trabalheira que nem vos conto. É claro que isto é uma força de expressão, porque o que eu vou fazer é contar-vos, pelo menos uma parte dessa trabalheira – o estudo estratigráfico da camada cromática.
Uma das coisas que se tem de fazer é uma amostragem. Recolhem-se amostras minúsculas das zonas de sombra e de luz de todas as cores, por exemplo, de uma pintura.
Uma parte dessas amostras vai servir para fazer a identificação dos pigmentos e dos aglutinantes. Para isso basta separá-los, observá-los ao microscópio e depois fazer uns exames mais ou menos complicados. Uma vez identificados podem ser encaixados na época em que eram utilizados e nos pintores que os usavam. Assim, se se identifica azurite numa pintura sabemos que esta deve ser anterior a 1800, uma vez que a azurite deixou de ser utilizada por essa altura. Estão a ver a ideia?
Com a outra parte das tais amostras minúsculas vamos estudar a técnica do pintor e saber se a pintura já foi restaurada ou repintada, entre outras coisas. As amostras, que foram retiradas desde a preparação do suporte – tela, madeira, pedra – até à superfície, vão ser preparadas para poderem ser manuseadas - para não irem parar ao espaço se o técnico espirrar para cima delas – sendo para isso envolvidas numa resina transparente que solidifica em pouco tempo – parecida com a utilizada pelos protésicos.
Podem então ser observadas ao microscópio, o resultado é o que a fotografia mostra. A camada esbranquiçada representa a preparação – neste caso julgo ser uma pintura sobre tela – as outras amareladas de maior espessura são preparações posteriores – talvez de restauros - depois há uma vermelha escura, relativamente fina, de bolus para a fixação da camada de ouro e finalmente uma azul.
Durante a observação, as camadas são medidas – como exemplo, a camada azul terá aproximadamente 60 µ - e alguns pigmentos são identificados. Fica-se também com uma ideia da existência ou não de repintes, da técnica que o autor utiliza para dar os tons claros ou escuros – se aclara ou escurece uma camada, através dos pigmentos que usa e da sua concentração, ou se dá uma camada mais clara e outra mais escura por cima – e do estado da obra em geral.
Já não sei de onde foi retirada esta amostra mas arriscaria a dizer que deve ter sido de uma decoração de um manto, de uma qualquer figura religiosa que eu, em tempos, me vi obrigada a espiolhar.
Fotografia obtida através de uma máquina acoplada a um microscópio óptico.
Quando se quer estudar a técnica de um pintor, saber se uma pintura é falsa ou ainda se se quer restaurar uma pintura ou uma escultura, dá uma trabalheira que nem vos conto. É claro que isto é uma força de expressão, porque o que eu vou fazer é contar-vos, pelo menos uma parte dessa trabalheira – o estudo estratigráfico da camada cromática.
Uma das coisas que se tem de fazer é uma amostragem. Recolhem-se amostras minúsculas das zonas de sombra e de luz de todas as cores, por exemplo, de uma pintura.
Uma parte dessas amostras vai servir para fazer a identificação dos pigmentos e dos aglutinantes. Para isso basta separá-los, observá-los ao microscópio e depois fazer uns exames mais ou menos complicados. Uma vez identificados podem ser encaixados na época em que eram utilizados e nos pintores que os usavam. Assim, se se identifica azurite numa pintura sabemos que esta deve ser anterior a 1800, uma vez que a azurite deixou de ser utilizada por essa altura. Estão a ver a ideia?
Com a outra parte das tais amostras minúsculas vamos estudar a técnica do pintor e saber se a pintura já foi restaurada ou repintada, entre outras coisas. As amostras, que foram retiradas desde a preparação do suporte – tela, madeira, pedra – até à superfície, vão ser preparadas para poderem ser manuseadas - para não irem parar ao espaço se o técnico espirrar para cima delas – sendo para isso envolvidas numa resina transparente que solidifica em pouco tempo – parecida com a utilizada pelos protésicos.
Podem então ser observadas ao microscópio, o resultado é o que a fotografia mostra. A camada esbranquiçada representa a preparação – neste caso julgo ser uma pintura sobre tela – as outras amareladas de maior espessura são preparações posteriores – talvez de restauros - depois há uma vermelha escura, relativamente fina, de bolus para a fixação da camada de ouro e finalmente uma azul.
Durante a observação, as camadas são medidas – como exemplo, a camada azul terá aproximadamente 60 µ - e alguns pigmentos são identificados. Fica-se também com uma ideia da existência ou não de repintes, da técnica que o autor utiliza para dar os tons claros ou escuros – se aclara ou escurece uma camada, através dos pigmentos que usa e da sua concentração, ou se dá uma camada mais clara e outra mais escura por cima – e do estado da obra em geral.
Já não sei de onde foi retirada esta amostra mas arriscaria a dizer que deve ter sido de uma decoração de um manto, de uma qualquer figura religiosa que eu, em tempos, me vi obrigada a espiolhar.
quinta-feira, março 03, 2005 |
ACTUALIDADES VIII
«Mas apareceram uns cabelos louros. Oh! E Macário veio logo salientemente para a varanda aparar um lápis. Era uma rapariga de vinte anos, talvez – fina, fresca, loura como uma vinheta inglesa: a brancura da pele tinha alguma coisa de transparência das velhas porcelanas, e havia no seu perfil uma linha pura., como de uma medalha antiga e os velhos poetas pitorescos ter-lhe-iam chamado – pomba, arminho, neve e ouro.
(…)
Como era singular e desusado achar-se o senhor guarda-livros vendendo ao balcão e o tio Francisco, com a sua crítica estreita e celibatária, escandalizar-se, Macário começou a subir vagarosamente a escada de caracol que levava ao escritório, e ainda ouviu a voz delicada da loura dizer brandamente:
– Agora queria ver lenços da Índia.
E o caixeiro foi buscar um pequenino pacote daqueles lenços, acamados e apertados numa tira de papel dourado.
Macário, tinha visto naquela visita uma revelação de amor, quase uma «declaração», esteve todo o dia entregue às impaciências amargas da paixão. Andava distraído abstracto, pueril, não deu atenção à escrituração, jantou calado, sem escutar o tio Francisco que exaltava as almôndegas, mal reparou no seu ordenado que lhe foi pago em pintos às três horas e não entendeu bem a recomendações do tio e a preocupação dos caixeiros sobre o desaparecimento de um pacote de lenços da Índia.
(…)
E trabalhou: pôs naquele trabalho a força criadora da sua paixão. Erguia-se de madrugada, comia à pressa, mal falava. À tardinha ia visitar Luísa. Depois voltava sofregamente para a fadiga, como um avaro para o seu cofre. Estava grosso, forte, duro, fero: servia-se com o mesmo ímpeto das ideias e dos músculos; vivia numa tempestade de cifras. Às vezes Luísa de passagem, entrava no seu armazém: aquele pousar de ave fugitiva dava-lhe alegria, valor, fé, reconforto para todo o mês cheiamente trabalhado.
«Mas apareceram uns cabelos louros. Oh! E Macário veio logo salientemente para a varanda aparar um lápis. Era uma rapariga de vinte anos, talvez – fina, fresca, loura como uma vinheta inglesa: a brancura da pele tinha alguma coisa de transparência das velhas porcelanas, e havia no seu perfil uma linha pura., como de uma medalha antiga e os velhos poetas pitorescos ter-lhe-iam chamado – pomba, arminho, neve e ouro.
(…)
Como era singular e desusado achar-se o senhor guarda-livros vendendo ao balcão e o tio Francisco, com a sua crítica estreita e celibatária, escandalizar-se, Macário começou a subir vagarosamente a escada de caracol que levava ao escritório, e ainda ouviu a voz delicada da loura dizer brandamente:
– Agora queria ver lenços da Índia.
E o caixeiro foi buscar um pequenino pacote daqueles lenços, acamados e apertados numa tira de papel dourado.
Macário, tinha visto naquela visita uma revelação de amor, quase uma «declaração», esteve todo o dia entregue às impaciências amargas da paixão. Andava distraído abstracto, pueril, não deu atenção à escrituração, jantou calado, sem escutar o tio Francisco que exaltava as almôndegas, mal reparou no seu ordenado que lhe foi pago em pintos às três horas e não entendeu bem a recomendações do tio e a preocupação dos caixeiros sobre o desaparecimento de um pacote de lenços da Índia.
(…)
E trabalhou: pôs naquele trabalho a força criadora da sua paixão. Erguia-se de madrugada, comia à pressa, mal falava. À tardinha ia visitar Luísa. Depois voltava sofregamente para a fadiga, como um avaro para o seu cofre. Estava grosso, forte, duro, fero: servia-se com o mesmo ímpeto das ideias e dos músculos; vivia numa tempestade de cifras. Às vezes Luísa de passagem, entrava no seu armazém: aquele pousar de ave fugitiva dava-lhe alegria, valor, fé, reconforto para todo o mês cheiamente trabalhado.
(...)
Por esse tempo o amigo do chapéu de palha veio pedir a Macário que fosse seu fiador por uma grande quantia, que ele pedira para estabelecer uma loja de ferragens em grande. Macário, estava no vigor do seu crédito, cedeu com alegria. O amigo do chapéu de palha é que lhe dera o negócio providencial de Cabo Verde. Faltavam então seis meses para o casamento. Macário já sentia, por vezes, subirem-lhe ao rosto as febris vermelhidões da esperança. Já começava a tratar dos banhos mas um dia o amigo do chapéu de palha desapareceu com a mulher de um alferes. O seu estabelecimento estava em começo. Era uma confusa aventura não se pôde nunca precisar nitidamente aquele imbróglio doloroso. O que era positivo é que Macário era fiador, Macário devia reembolsar. Quando o soube, empalideceu e disse simplesmente:
– Liquido e pago.
E quando liquidou, ficou outra vez pobre.
(…)
– Sente-se ali! E o tio Francisco falava, com grandes passadas pelo quarto:
– O seu amigo é um canalha! Loja de ferragens! Não está má! O senhor é um homem de bem. Estúpido, mas homem de bem. Sente-se ali! Sente-se! O seu amigo é um canalha! O senhor é um homem de bem! Foi a Cabo Verde! Bem sei! Pagou tudo. Está claro! Também sei! Amanhã faz favor de ir para a sua carteira, lá para baixo. Mandei pôr palhinha nova na cadeira. Faz favor de pôr na factura Macário & Sobrinho. E case. Case, e que lhe preste! Levante dinheiro. O senhor precisa de roupa branca e de mobília. E meta na minha conta. A sua cama lá está feita.
Macário queria abraçá-lo, estonteado, com lágrimas nos olhos, radioso.
(…)
E Macário, pálido, com dentes cerrados, contraído, fitava o caixeiro colericamente. O caixeiro disse então:
– Essa senhora tirou dali o anel. – Macário ficou imóvel, encarando-o. – Um anel com dois brilhantes. Vi perfeitamente. – O caixeiro estava tão excitado, que a sua voz gaguejava, prendia-se espessamente. – Essa senhora não sei quem é. E tirou-o dali...
(…)
De repente, soltando o braço de Luísa, disse-lhe baixinho:
– Vai-te.
– Ouve!... – disse ela, com a cabeça toda inclinada.
– Vai-te. – E com voz abafada e terrível: – Vai-te. Olha que chamo. Mando-te para o Aljube. Vai-te.
– Mas houve, Jesus – disse ela.
– Vai-te! – E fez um gesto, com o punho cerrado.
– Pelo amor de Deus, não me batas aqui – disse ela, sufocada.
– Vai-te, podem reparar. Não chores. Olha que vêem. Vai-te.
E, chegando-se para ela, disse baixo:
– És uma ladra!
E, voltando-lhe as costas, afastou-se, devagar, riscando o chão com a bengala.
À distância, voltou-se: ainda viu, através dos vultos, o seu vestido azul.
Como partiu nessa tarde para a província, não soube mais daquela rapariga loura».
Singularidades de uma rapariga loura, Eça de Queiroz
Por esse tempo o amigo do chapéu de palha veio pedir a Macário que fosse seu fiador por uma grande quantia, que ele pedira para estabelecer uma loja de ferragens em grande. Macário, estava no vigor do seu crédito, cedeu com alegria. O amigo do chapéu de palha é que lhe dera o negócio providencial de Cabo Verde. Faltavam então seis meses para o casamento. Macário já sentia, por vezes, subirem-lhe ao rosto as febris vermelhidões da esperança. Já começava a tratar dos banhos mas um dia o amigo do chapéu de palha desapareceu com a mulher de um alferes. O seu estabelecimento estava em começo. Era uma confusa aventura não se pôde nunca precisar nitidamente aquele imbróglio doloroso. O que era positivo é que Macário era fiador, Macário devia reembolsar. Quando o soube, empalideceu e disse simplesmente:
– Liquido e pago.
E quando liquidou, ficou outra vez pobre.
(…)
– Sente-se ali! E o tio Francisco falava, com grandes passadas pelo quarto:
– O seu amigo é um canalha! Loja de ferragens! Não está má! O senhor é um homem de bem. Estúpido, mas homem de bem. Sente-se ali! Sente-se! O seu amigo é um canalha! O senhor é um homem de bem! Foi a Cabo Verde! Bem sei! Pagou tudo. Está claro! Também sei! Amanhã faz favor de ir para a sua carteira, lá para baixo. Mandei pôr palhinha nova na cadeira. Faz favor de pôr na factura Macário & Sobrinho. E case. Case, e que lhe preste! Levante dinheiro. O senhor precisa de roupa branca e de mobília. E meta na minha conta. A sua cama lá está feita.
Macário queria abraçá-lo, estonteado, com lágrimas nos olhos, radioso.
(…)
E Macário, pálido, com dentes cerrados, contraído, fitava o caixeiro colericamente. O caixeiro disse então:
– Essa senhora tirou dali o anel. – Macário ficou imóvel, encarando-o. – Um anel com dois brilhantes. Vi perfeitamente. – O caixeiro estava tão excitado, que a sua voz gaguejava, prendia-se espessamente. – Essa senhora não sei quem é. E tirou-o dali...
(…)
De repente, soltando o braço de Luísa, disse-lhe baixinho:
– Vai-te.
– Ouve!... – disse ela, com a cabeça toda inclinada.
– Vai-te. – E com voz abafada e terrível: – Vai-te. Olha que chamo. Mando-te para o Aljube. Vai-te.
– Mas houve, Jesus – disse ela.
– Vai-te! – E fez um gesto, com o punho cerrado.
– Pelo amor de Deus, não me batas aqui – disse ela, sufocada.
– Vai-te, podem reparar. Não chores. Olha que vêem. Vai-te.
E, chegando-se para ela, disse baixo:
– És uma ladra!
E, voltando-lhe as costas, afastou-se, devagar, riscando o chão com a bengala.
À distância, voltou-se: ainda viu, através dos vultos, o seu vestido azul.
Como partiu nessa tarde para a província, não soube mais daquela rapariga loura».
Singularidades de uma rapariga loura, Eça de Queiroz
Ora bem, neste belíssimo conto do nosso saudoso Eça temos a Honra a digladiar-se com o Amor.
Como homem de Honra que é, Macário, quando decide casar-se sem obter o consentimento de seu tio, parte à luta para fazer fortuna. Depois de árduos esforços, consegue juntar um pecúlio generoso. Simples e confiante, assegura a fiança de um seu amigo. Este acaba por desaparecer, ficando Macário empenhado e novamente pobre.
O seu tio dá-lhe a mão, admirando a perseverança e o carácter do sobrinho.
Nos preparativos para o enlace, Macário e Luísa (a loura) vão escolher o anel. É aqui que entra a Honra em desfavor do Amor. E bem, na minha opinião.
A loura não passa de uma ladra desavergonhada.
Pessoas com o verdadeiro sentido de Honra, ainda há algumas. Espero que em número crescente.
Devo referir que a expressão que está a bold me recorda uma outra expressão famosíssima de um frequentador desta Vara. Não sei se se inspirou neste conto ou se é da sua lavra. O que importa é que a expressão acima boldeada me faz lembrar deste bom Amigo. Simples, mas um bom Amigo.
Fodósofo, brindo à tua saúde.
quarta-feira, março 02, 2005 |
Microfábulas – X
Havia, certa vez, um jovem magarefe que trabalhava num talho de Alcântara enquanto acalentava outros sonhos de um futuro mais risonho e menos sangrento como cantor ligeiro na linha de nomes grandes como Samuel, Clemente, António Calvário ou o falecido Tony de Matos. “Lá vai o Pica-Miolos!”, diriam uns; “Lá vai o Óscar!”, diriam os mais educados. Mas, mais do que ir, Óscar estava – o mais das vezes estava à porta do estabelecimento, com a bata branca salpicada de sangue, atirando aparas de carne aos rafeiros das redondezas. Esforçava-se por assobiar mas o lábio leporino (ainda que corrigido por cirurgia) dificultava-lhe a tarefa, saindo um som mais comparável a uma rajada de vento que a uma qualquer melodia. Alguns dos cães uivavam em resposta ao seu silvo pouco musical e certos transeuntes ficavam surpreendidos e divertidos ante aquela espécie de coro surrealista e atonal, com um regente ensanguentando e uns canídeos famélicos. “Tu havias era de ir p’ó circo, ou o caralho!”, dizia-lhe o dono do talho com ar chocarreiro e com a prosápia serôdia de quem quer diferenciar hierarquias porque sim.
Ao serão, Óscar ouvia um pouco da emissão de uma rádio local que passasse música portuguesa daquela que ele gostava e depois descia, quase todos os dias, as carunchosas escadas do prédio onde habitava para ir à “c’let’vidade” do seu bairro beber um bagacinho. Pela sua natureza gentil, Óscar era alvo fácil de alguns fulanos que precisam de reforçar a auto-confiança amesquinhando os outros: “ó magarefe!, limpa-me os túbaros!, eh eh eh!”. A Óscar pouco mais se ouvia que um tímido e sorridente “deixe-se lá disso, deixe-se lá disso”. Apesar daquele ambiente meio hostil, em que a virilidade se provava nos copos sujos, no volume da voz e na violência relatada – que nunca a praticada – o nosso Óscar lá descia as escadas uma e outra vez na esperança de que alguém lhe proporcionasse os momentos por que mais ansiava: “ali o homem do cutelo é que podia cantar uma modinha!”. E Óscar corava, corava muito, ficava com o pescoço escarlate, fincava os olhos no chão e cantava, com uma voz não muito bela mas robusta e segura. Nesses momentos, tudo parava no bar da colectividade: as cartas da bisca lambida ficavam suspensas no ar, as bolas de snooker deixavam de fazer barulho, os que jogavam aos dardos ficavam petrificados com a mão à frente da cara em perpétua pontaria e a vozearia dos bêbedos cessava de modo abrupto. Assim que Óscar parava de cantar tudo voltava ao normal mas como que num ritmo mais pausado e tranquilo.
Certa noite, tendo Óscar entoado o célebre “Meu amor, vamos conversar os dois” – esse clássico da lavra de Fernando Chaby e Paulo de Carvalho, imortalizado no final dos anos 70 por Adelaide Ferreira – tudo voltou mais uma vez ao normal… “qual é que é o trunfo que já m’esqueci ou o caralho”; “joga à 7 para o buraco do fundo, meu pedaço de asno!”; “por a minha saúde se não buí uma grade de mines sozinho!”; “queche ver echta cheta ali memo memo no chentro du alve?!”…
Nisto, vzzzzzzzt!
Moral 1: há uma notória incúria dos proprietários dos estabelecimentos que permitem que se joguem dardos em zonas de passagem. Essa incúria é maior ainda quando o grau de alcoolemia dos jogadores não é levado em consideração.
Moral 2: os aspirantes a cantores deverão ter cuidado na escolha de repertório, procurando – pelo menos! – a adequação ao género e evitando-se os escolhos de termos um mocetão a cantar versos como “sou tua amiga e sou companheira” ou “o meu nome ainda é Maria”…
Havia, certa vez, um jovem magarefe que trabalhava num talho de Alcântara enquanto acalentava outros sonhos de um futuro mais risonho e menos sangrento como cantor ligeiro na linha de nomes grandes como Samuel, Clemente, António Calvário ou o falecido Tony de Matos. “Lá vai o Pica-Miolos!”, diriam uns; “Lá vai o Óscar!”, diriam os mais educados. Mas, mais do que ir, Óscar estava – o mais das vezes estava à porta do estabelecimento, com a bata branca salpicada de sangue, atirando aparas de carne aos rafeiros das redondezas. Esforçava-se por assobiar mas o lábio leporino (ainda que corrigido por cirurgia) dificultava-lhe a tarefa, saindo um som mais comparável a uma rajada de vento que a uma qualquer melodia. Alguns dos cães uivavam em resposta ao seu silvo pouco musical e certos transeuntes ficavam surpreendidos e divertidos ante aquela espécie de coro surrealista e atonal, com um regente ensanguentando e uns canídeos famélicos. “Tu havias era de ir p’ó circo, ou o caralho!”, dizia-lhe o dono do talho com ar chocarreiro e com a prosápia serôdia de quem quer diferenciar hierarquias porque sim.
Ao serão, Óscar ouvia um pouco da emissão de uma rádio local que passasse música portuguesa daquela que ele gostava e depois descia, quase todos os dias, as carunchosas escadas do prédio onde habitava para ir à “c’let’vidade” do seu bairro beber um bagacinho. Pela sua natureza gentil, Óscar era alvo fácil de alguns fulanos que precisam de reforçar a auto-confiança amesquinhando os outros: “ó magarefe!, limpa-me os túbaros!, eh eh eh!”. A Óscar pouco mais se ouvia que um tímido e sorridente “deixe-se lá disso, deixe-se lá disso”. Apesar daquele ambiente meio hostil, em que a virilidade se provava nos copos sujos, no volume da voz e na violência relatada – que nunca a praticada – o nosso Óscar lá descia as escadas uma e outra vez na esperança de que alguém lhe proporcionasse os momentos por que mais ansiava: “ali o homem do cutelo é que podia cantar uma modinha!”. E Óscar corava, corava muito, ficava com o pescoço escarlate, fincava os olhos no chão e cantava, com uma voz não muito bela mas robusta e segura. Nesses momentos, tudo parava no bar da colectividade: as cartas da bisca lambida ficavam suspensas no ar, as bolas de snooker deixavam de fazer barulho, os que jogavam aos dardos ficavam petrificados com a mão à frente da cara em perpétua pontaria e a vozearia dos bêbedos cessava de modo abrupto. Assim que Óscar parava de cantar tudo voltava ao normal mas como que num ritmo mais pausado e tranquilo.
Certa noite, tendo Óscar entoado o célebre “Meu amor, vamos conversar os dois” – esse clássico da lavra de Fernando Chaby e Paulo de Carvalho, imortalizado no final dos anos 70 por Adelaide Ferreira – tudo voltou mais uma vez ao normal… “qual é que é o trunfo que já m’esqueci ou o caralho”; “joga à 7 para o buraco do fundo, meu pedaço de asno!”; “por a minha saúde se não buí uma grade de mines sozinho!”; “queche ver echta cheta ali memo memo no chentro du alve?!”…
Nisto, vzzzzzzzt!
Moral 1: há uma notória incúria dos proprietários dos estabelecimentos que permitem que se joguem dardos em zonas de passagem. Essa incúria é maior ainda quando o grau de alcoolemia dos jogadores não é levado em consideração.
Moral 2: os aspirantes a cantores deverão ter cuidado na escolha de repertório, procurando – pelo menos! – a adequação ao género e evitando-se os escolhos de termos um mocetão a cantar versos como “sou tua amiga e sou companheira” ou “o meu nome ainda é Maria”…
ACTUALIDADES VII
«FAUSTO
Ai, nada, nada,que eu sei de cor as manhas dos diabos: não dão ponto sem nó. Venha o primeiro que pelo amor de Deus a alguém servisse.Vamos às condições: propõe-nas franco. No tomar um tal servo há seus perigos.
«FAUSTO
Ai, nada, nada,que eu sei de cor as manhas dos diabos: não dão ponto sem nó. Venha o primeiro que pelo amor de Deus a alguém servisse.Vamos às condições: propõe-nas franco. No tomar um tal servo há seus perigos.
MEFISTÓFELES
Obrigo-me a servi-lo em tudo e à risca enquanto vivo for, e obedecer-lhe aos acenos até, sem cansar nunca. Depois, quando lá em baixo nos toparmos trocamos os papéis (…).
MEFISTÓFELES
Ih! que facúndia, e que fogachos sem quê nem para quê! Basta um farrapo de papel fino ou grosso, e uma gotinha do sangue próprio, com que assigne em baixo.
FAUSTO
Se nessas pataratas fazes luxo, vá lá!
(Arregaça o braço esquerdo; Mefistófeles pica-lhe a veia; Fausto molha no sangue a pena, e assina com ela o pergaminho que Mefistófeles lhe apresenta.)
MEFISTÓFELES
Isto do sangue é burundanga que tem seu quê.
FAUSTO
Não te violo a avença; não tenhas medo. As minhas posses todas, já daqui tas obrigo. Inchei de modo que só posso caber na tua esfera. O Factor Sumo pôs-me em bando. Encontro cancelos a vedar-me a natureza. O fio do pensar quebrou-se. Há muito que de todo o saber vivo enjoado. Deixar-me ora engolfar em vosso abismo, deleites sensuais, paixões fogosas! Rompam já ’í portentos e portentos, qual a qual mais possante a enfeitiçar-me! Mergulhemos no vórtice dos tempos, no encapelado mar das aventuras. Sigam-se embora, como queiram, dores a deleites, ou júbilos a mágoas. Tudo, menos a inércia, o mal dos males, o que mais vexa a dignidade humana».
Faust, Goethe
Goethe inspira-se na lenda medieval do doutor Fausto, que faz um pacto com o Diabo para ultrapassar os limites do saber, recuperar a juventude e conseguir o amor de Margarida.
Uma vez feito o pacto, não há retorno.
Qual é o valor das vossas almas? Mais importante do que isso: estão à venda? Ou estão absolutamente convencidos de não terem um preço atribuível?
Se calhar, ainda não tiveram uma boa oferta…
terça-feira, março 01, 2005 |
ACTUALIDADES VI
«Quand ils furent revenus un peu à eux, ils marchèrent vers Lisbonne; il leur restait quelque argent, avec lequel ils espéraient se sauver de la faim après avoir échappé à la tempête.
A peine ont-ils mis le pied dans la ville, en pleurant la mort de leur bienfaiteur, qu'ils sentent la terre trembler sous leurs pas; la mer s'élève en bouillonnant dans le port, et brise les vaisseaux qui sont à l'ancre. Des tourbillons de flammes et de cendres couvrent les rues et les places publiques; les maisons s'écroulent, les toits sont renversés sur les fondements, et les fondements se dispersent; trente mille habitants de tout âge et de tout sexe sont écrasés sous des ruines. Le matelot disait en sifflant et en jurant: il y aura quelque chose à gagner ici (…).
CHAPITRE VI.
Comment on fit un bel auto-da-fé pour empêcher les tremblements de terre, et comment Candide fut fessé.
Après le tremblement de terre qui avait détruit les trois quarts de Lisbonne, les sages du pays n'avaient pas trouvé un moyen plus efficace pour prévenir une ruine totale que de donner au peuple un bel auto-da-fé[1]; il était décidé par l'université de Coïmbre que le spectacle de quelques personnes brûlées à petit feu, en grande cérémonie, est un secret infaillible pour empêcher la terre de trembler».
[1] Après le tremblement de terre de Lisbonne, on y fit en effet un autoda-fé, le 20 juin 1756.
Candide, ou L’Optimisme, Voltaire
Um fantástico livro, escrito no ano de 1759 e em apenas três dias. Conta-nos como se pode ser extremamente ingénuo ou optimista e tem uma grande facilidade de leitura, cheia de ritmo e de bom humor.
Candide, acompanhado pelo seu Mestre Pangloss (nome que o próprio Voltaire explica - numa das notas de rodapé - que «Pan» significa «tudo» e «Gloss» significa «língua») é forçado a partir à descoberta do Mundo.
Na sua visão optimista, Candide experimenta as maiores agruras. No entanto, tem sempre um olhar ingénuo e espera que as coisas melhorem.
Na sua viagem, passam pela Lisboa do terramoto de 1755, onde se lhes depara um cenário terrífico (como se cita acima). Eis que, para evitar outros terramotos e tsunamis, decide a Santa Inquisição assar na fogueira alguns suspeitos de não compartilharem exactamente das mesmas crenças da Santa Madre Igreja. Pangloss, se não estou em erro, é uma das vítimas. Isto porque decide dar um ar da sua graça e, no meio da sua filosofia de inverter as causas e os efeitos, expõe a sua teoria acerca dos fenómenos que assolaram aquela Lisboa.
Enfim, uma obra que dá gosto ler e que nos faz pensar um pouco.
Será que alguém acredita que a ingenuidade e o optimismo ainda andam de mãos dadas?