segunda-feira, março 21, 2005 |
Microfábulas - XII
Havia, certa vez, uma mulher desempoeirada e dinâmica que, no limiar dos 60 anos, ainda carpia a “queda do Império”. “Lá vai a retornada linguaruda!”, diriam uns; “Lá vai a Gracinda!”, diriam os mais educados. Gracinda lá ia, num virote diário que tinha início às 6 de manhã: fazia limpezas numa instituição pública até às 10 da manhã; ajudava a filha com as refeições do seu snack-bar; às 15h ia para o lar de idosos onde era auxiliar e de onde saía às 21h, pronta para se dedicar à lida da casa onde o marido a esperava – esperava-a o dia inteiro, diga-se, gozando a aposentação sem fazer nenhum.
Minto: o marido de Gracinda tinha a seu cargo tomar conta da caturra, único traço de exotismo colonial no modesto e anódino T2 da zona menos nobre do Alto de Santo Amaro, ali pertinho da Rua dos Lusíadas. Entre uma cristaleira despropositada e um bar de canto comprado nuns saldos da Moviflor em 1984, lá estava a gaiola de pé onde a caturra (Soraya de seu nome) passava os dias, reciprocando o olhar do dono. E assim era que, quando Gracinda voltava a casa, pouco falava do que fora o seu dia antes ouvindo os extensos relatórios que lhe fazia o marido sobre as venturas e desventuras de Soraya: as penas que caíam, o que comia ou não comia, se estivera enérgica ou prostrada.
A Gracinda tudo isto parecia uma estranha lei de compensações. Desde o regresso de Angola, em 74, nunca pensara no seu marido como “homem de família” – era trabalhador e diligente e correcto mas o negócio das tintas e o convívio com os “amigos de Angola” tomavam-lhe o tempo de que mulher e filhos poderiam beneficiar. Ficava então Gracinda com a incumbência de conciliar o trabalho (menos horas, nessa altura) com a digna função de ser “o lar”. Os filhos – um casal, “pela Graça de Deus!” – haviam sido criados no meio da nostalgia pelo “paraíso perdido”, uma realidade de que mal se lembravam mas que era revisitada diariamente nas conversas da mãe com amigas e vizinhas:
“- Lembro-me tão bem… Quando estava grávida do meu Rui inchavam-me muito os pés. Não fazia mais nada: sentava-me no sofá e mandava um dos pretos ficar de gatas para descansar as pernas nas costas dele…
- E eu? Uma vez danei-me com um e dei-lhe com um martelo na cabeça que aquilo até zunia! Isso é que eram tempos…”
Claro: também falavam de festas e de bailes e de passeios mas as imagens da violência e do despotismo agradavam muito mais à criançada, que lá ia crescendo entre o burburinho da metrópole e a consciência de que “Angola é nossa!”. O filho fora para Londres com um amigo tentar a sorte num call-center de uma empresa qualquer e a filha casara com um rapazinho asseado do Fundão que tinha um snack-bar em Algés.
E agora restavam Gracinda, o marido e Soraya no T2 que, de repente, se tornara espaçoso. Sensivelmente pela mesma altura em que o marido trespassou o negócio das tintas e declarou que “já chegava” e que era altura de parar, Gracinda descobriu que não era mulher para estar parada e lá se inverteram os papéis: Gracinda esfalfando-se em várias ocupações e o marido vigiando Soraya com um carinho mais extremoso que o que devotara até aí a qualquer outro ser vivo.
Num dado dia, as coisas não correram de feição a Gracinda: nas limpezas escorregou no chão encerado e magoou-se no ombro; no snack-bar queimou-se numa sertã e no lar foi destratada por uma velha insossa. Mal abriu a porta de casa, deparou-se com o marido num visível estado de preocupação: “A Sorayazita hoje está muito derrubada… mal comeu… quase não dá por mim quando ponho o dedo na gaiola… não a achas mortiça?”. Entre a vontade de explodir e gritar “Quero lá saber da puta da caturra!” e a nota mental de que o napperon da mesa da sala precisava de ser lavado, Gracinda passou-se para a cozinha dizendo apenas “Isso passa…”. Na cozinha, enquanto estufava um bocado de alcatra com batatas e ervilhas, Gracinda ia matutando nessa situação ingrata de se ver relegada para segundo plano em favor de uma caturra e ia congeminando um plano para inverter a situação.
No dia seguinte, antes de sair de casa para as limpezas, Gracinda misturou veneno para ratos na comida de Soraya. Passou o dia entre a exaltação do “dever cumprido” e a culpa pelo pobre do animal. Quando viu os pratos de codornizes no snack-bar da filha mal pôde conter uma lágrima mas, quando se acercou de casa, já ia mais animada pela expectativa de encontrar o marido privado da sua distracção. Pelo sim pelo não, benzeu-se antes de meter a chave à porta.
Nisto, vzzzzzzzzzzzzzzt!
Moral 1: o aconselhamento matrimonial pode evitar que fases de crise desemboquem em situações de ruptura.
Moral 2: a PSP tem-se substituído às antigas redes de vizinhança no papel de evitar que as situações de ruptura num matrimónio se transformem em situações de violência conjugal declarada.
Havia, certa vez, uma mulher desempoeirada e dinâmica que, no limiar dos 60 anos, ainda carpia a “queda do Império”. “Lá vai a retornada linguaruda!”, diriam uns; “Lá vai a Gracinda!”, diriam os mais educados. Gracinda lá ia, num virote diário que tinha início às 6 de manhã: fazia limpezas numa instituição pública até às 10 da manhã; ajudava a filha com as refeições do seu snack-bar; às 15h ia para o lar de idosos onde era auxiliar e de onde saía às 21h, pronta para se dedicar à lida da casa onde o marido a esperava – esperava-a o dia inteiro, diga-se, gozando a aposentação sem fazer nenhum.
Minto: o marido de Gracinda tinha a seu cargo tomar conta da caturra, único traço de exotismo colonial no modesto e anódino T2 da zona menos nobre do Alto de Santo Amaro, ali pertinho da Rua dos Lusíadas. Entre uma cristaleira despropositada e um bar de canto comprado nuns saldos da Moviflor em 1984, lá estava a gaiola de pé onde a caturra (Soraya de seu nome) passava os dias, reciprocando o olhar do dono. E assim era que, quando Gracinda voltava a casa, pouco falava do que fora o seu dia antes ouvindo os extensos relatórios que lhe fazia o marido sobre as venturas e desventuras de Soraya: as penas que caíam, o que comia ou não comia, se estivera enérgica ou prostrada.
A Gracinda tudo isto parecia uma estranha lei de compensações. Desde o regresso de Angola, em 74, nunca pensara no seu marido como “homem de família” – era trabalhador e diligente e correcto mas o negócio das tintas e o convívio com os “amigos de Angola” tomavam-lhe o tempo de que mulher e filhos poderiam beneficiar. Ficava então Gracinda com a incumbência de conciliar o trabalho (menos horas, nessa altura) com a digna função de ser “o lar”. Os filhos – um casal, “pela Graça de Deus!” – haviam sido criados no meio da nostalgia pelo “paraíso perdido”, uma realidade de que mal se lembravam mas que era revisitada diariamente nas conversas da mãe com amigas e vizinhas:
“- Lembro-me tão bem… Quando estava grávida do meu Rui inchavam-me muito os pés. Não fazia mais nada: sentava-me no sofá e mandava um dos pretos ficar de gatas para descansar as pernas nas costas dele…
- E eu? Uma vez danei-me com um e dei-lhe com um martelo na cabeça que aquilo até zunia! Isso é que eram tempos…”
Claro: também falavam de festas e de bailes e de passeios mas as imagens da violência e do despotismo agradavam muito mais à criançada, que lá ia crescendo entre o burburinho da metrópole e a consciência de que “Angola é nossa!”. O filho fora para Londres com um amigo tentar a sorte num call-center de uma empresa qualquer e a filha casara com um rapazinho asseado do Fundão que tinha um snack-bar em Algés.
E agora restavam Gracinda, o marido e Soraya no T2 que, de repente, se tornara espaçoso. Sensivelmente pela mesma altura em que o marido trespassou o negócio das tintas e declarou que “já chegava” e que era altura de parar, Gracinda descobriu que não era mulher para estar parada e lá se inverteram os papéis: Gracinda esfalfando-se em várias ocupações e o marido vigiando Soraya com um carinho mais extremoso que o que devotara até aí a qualquer outro ser vivo.
Num dado dia, as coisas não correram de feição a Gracinda: nas limpezas escorregou no chão encerado e magoou-se no ombro; no snack-bar queimou-se numa sertã e no lar foi destratada por uma velha insossa. Mal abriu a porta de casa, deparou-se com o marido num visível estado de preocupação: “A Sorayazita hoje está muito derrubada… mal comeu… quase não dá por mim quando ponho o dedo na gaiola… não a achas mortiça?”. Entre a vontade de explodir e gritar “Quero lá saber da puta da caturra!” e a nota mental de que o napperon da mesa da sala precisava de ser lavado, Gracinda passou-se para a cozinha dizendo apenas “Isso passa…”. Na cozinha, enquanto estufava um bocado de alcatra com batatas e ervilhas, Gracinda ia matutando nessa situação ingrata de se ver relegada para segundo plano em favor de uma caturra e ia congeminando um plano para inverter a situação.
No dia seguinte, antes de sair de casa para as limpezas, Gracinda misturou veneno para ratos na comida de Soraya. Passou o dia entre a exaltação do “dever cumprido” e a culpa pelo pobre do animal. Quando viu os pratos de codornizes no snack-bar da filha mal pôde conter uma lágrima mas, quando se acercou de casa, já ia mais animada pela expectativa de encontrar o marido privado da sua distracção. Pelo sim pelo não, benzeu-se antes de meter a chave à porta.
Nisto, vzzzzzzzzzzzzzzt!
Moral 1: o aconselhamento matrimonial pode evitar que fases de crise desemboquem em situações de ruptura.
Moral 2: a PSP tem-se substituído às antigas redes de vizinhança no papel de evitar que as situações de ruptura num matrimónio se transformem em situações de violência conjugal declarada.
Arrotos do Porco:
Vareta, eu já te disse que acho as Microfábulas fabulosas? Acho que o Sporting hoje até ganhou por ti. |
Paparam-nos a capacidade de comentar. 'Tá mal... Um verdadeiro atentado à liberdade de fuçinhar livremente pla vara... |
Se era só para isso escusavas de ter dito o que quer que fosse. tinhas ficado melhor se estivesses calado. Corno. Bardamerda para a Tation, é o que é!!!! E toca a bresuntar as nossas meninas de hirudoid e outros que tais que tarda nada começam a ficar amarelas, roxas, púrpuras, etc... E tal. |
bill? BUUUUFALO Bill, é o que é. Que ideia de merda... Bill! Tiveste-a assentado à retrete, de certeza. Pensava que era o lindinho. |
AHAHAHAHAHAHAHAHAH Kill Bill(ha), Ou, na versãop que em portugal correu as salas de cinema de todo o país: catana n'anilha! |
Isto deve ter sido obra do Pinto da Costa que o gajo tem muito mau perder apesar do jogo ter sido limpo e sem casos. Boa tarde |
Mas que baqeuiral é este deste lado? Eu vinha deixar um comnetário sério, caramba. Vareta: és grande pá! Foi sério. |
Vareta, só hoje li a tua micro. Este é um assunto sensível pois todos temos familiares, amigos e conhecidos das ex-colónias (a Tampa nasceu em Angola, mas -não desfazendo- acho que o "queimadinho" saudoso da boa vida do Ultramar é tão ...er...característico, apesar das muitas variantes que existem, que dá umas ganas do caraças de escrever sobre eles. A bem do conhecimento antropológico da sociedade portuguesa. Para além de ser uma enorme curtição ler as tuas micro-fs. (está-se sempre com um sorriso tipo esgar pateta e a fazer hi...hi...ah, ah, ah...hi enquanto se lê, também gostava de te dizer que este é um filão quase inesgotável. No meu serviço havia um senhor espoliado de poupa de laca, óculos de sol amarelos, lenço de seda ao pescoço e calças à boca de sino que estava sempre a suspirar pela pesca do espadarte na Baia do Siripipi do Cabuleté (Angola presumo). No Verão tirava a "balalaica" kaki do armário e só faltava por um chapéu colonial. "Com isto do 25 de Abril e da descolonização, aqui na Metrópole um gajo já nem pode chibatar os criados, que não venha logo os comunas do sindicato". A malta quer é farrar. |