quarta-feira, março 16, 2005 |
YOPLALIS – Do Lactobacillus dream of transgenic lactose?
Palmer Eldrich estava na ressaca de uma longa história de abuso de drogas ilegais e fora agora forçado a encetar uma vida regrada, da qual faziam parte visitas diárias ao Centro de Medicina Aeroespacial Lunar, para desintoxicação. A alimentação racional fazia parte do processo e o iogurte tomado de manhã tinha sido recomendado pelo médico, o Dr. William Sweetscent. A grande toxicidade hepática e o elevado potencial adictivo da droga JJ-180 tinha sido mal avaliada por Palmer. Isto apesar dos efeitos da droga terem servido os seus intentos de melhor classificação social junto do Quizzmaster. Palmer Eldritch era um renomado bioquímico 8-8 e a JJ-180 tinha a capacidade de efectivamente transportar no tempo, aleatoriamente decerto, quem a tomava. Palmer regressara ao passado e viajara ao futuro, por via da droga, alterando os acontecimentos passados e também obtendo conhecimento valioso acerca dos futuros alternativos para seu uso vantajoso, no presente. Nomeadamente, pôde manipular o resultados da Lotaria, que sorteava poder e prestígio em todo o Império Solar. Assim, obtivera o seu estauto elevado de 8-8. Não previra, no entanto, que o seu sistema nervoso se degradasse tanto. Agora tinha que fazer uma pausa. Colocou a massa de levedura, que lhe tinha fornecido Sweetscent, num recipiente com leite morno e tapou-o. – "Flôr-de-iogurte" é um nome idota"- pensou. No entanto, lembrava-se da sua avó, maníaca da alimentação saudável, fazer deste iogurte e também do seu travo ácido, quando lho dava a provar. Contudo, essas recordações das primeiras décadas do terceiro milénio também lhe eram agradáveis. Também por isso, aceitou resignadamente a dieta de iogurte caseiro de Sweetscent. Foi para o quarto e olhou as luzes da grande cidade lunar e o gigantesco edifício da Corporação Planetária. Um vai-vêm de carga, provavelmente vindo das colónias de Io ou Europa, fazia a aproximação à pista do espaçoporto. Palmer bocejou. Sentado numa cadeira do quarto, olhou distraidamente os anúncios da televisão. A maior parte eram a marcas populares de orgãos artificiais, clonados de células estaminais e destinados para manter a longevidade do corpo à medida que os naturais iam falhando. Estes dispendiosos orgãos sobressalentes levavam os cidadãos a empenharem-se toda uma vida aos bancos, mas eram um negócio lucrativo. Palmer estava exausto. Sob a semi-imponderabilidade da Lua, o copo de sumo de uva caiu lentamente da mão de Palmer quando este adormeceu.
Na cozinha, a flôr-de-iogurte transgénica afadigava-se na transformação do leite. No recipiente, a massa branca agitava-se e começava a borbulhar. Uma ligeira luminescência invadiu o interior do frigorífico. Uma massa informe de protoplasma branco estravasava o recipiente Tupperware e começava a formar uma espécie de tentáculo titubeante. A massa de iogurte transgénico absorvia, como uma amiba gigante, os alimentos do frigorífico: os cubos de tofu, o seitan, o amasake de arroz, a ameixa salgada kombu, o miso, o molho de gergelim, as lentilhas, os restos de arroz integral e o chá Três Anos. Forçava agora a porta do frigorífico e rastejava pelo chão da cozinha. Vários tentáculos e uma cavidade que lembrava uma boca informe prescrutavam os vários armários em busca de comida. Uma parte da massa protoplásmica entrava pelo sifão da sanita e introduzia-se no esgoto do bloco de apartamentos alveolares.
Palmer revirava-se no sofá em inquietos pesadelos, revivendo algumas das alucinações da droga Alfa-Soma-45, que consumira profusamente durante o ano anterior. O efeito psicotrópico principal era a projecção do Si-mesmo do consumidor para o interior de figurinhas de plástico que ocupavam um pequeno cenário miniatura. Tinha sido uma droga muito popular nas colónias áridas de Marte entre os trabalhadores das minas de zircónio. Podia assim viver-se virtualmente uma qualquer situação escolhida previamente, em função do cenário construído. Podia ser uma estância tropical na Terra ou a vida de um nababo da Índia do século XVII, rodeado de luxo e concubinas. Palmer gostava especialmente dum cenário em que montara uma miniatura perfeita dum serralho Joviano em que cyber-moças-de-cama lascivas lhe lambiam o corpo apolíneo e musculado. O negócio da droga Alfa-Soma-45 era particularmente rendível sobretudo porque os mini-adereços para os cenários tinham de ser muito perfeitos para serem convincentes. Caso contrário, as imperfeições interferiam com a alucinação por forma a que o drogado as percebia com inconsistências no tecido da realidade virtual e ficava num estado de confusão até o efeito da droga se desvanecer na circulação sanguínea. O negócio das miniaturas perfeitas estendeu-se de tal modo que passou a ser mais atractivo para os investidores, que o tráfico da própria droga. O objectivo de muitas famílias de colonos, foi durante muito tempo, adquirir a maior quantidade possível de boas miniaturas. E endividaram-se por isso. Palmer enriqueceu com esse negócio, pois montara uma fábrica onde os artesãos micro-oleiros de Ganímedes produziam as miniaturas mais procuradas. Agora tudo isto voltava, em pesadelos, numa amálgama de experiências incoerentes durante o sono. Uma consequência do uso da droga por Palmer, que caíra na tentação de experimentar o seu próprio produto.
A massa protoplásmica carnívora de flôr-de- iogurte avançava agora pelos alvéolos modulares hexagonais que formavam o dormitório dos cientistas da cidade lunar Selenis IV. O iogurte faminto devorava os incautos adormecidos, que muitas vezes não tinham tempo sequer de emitir um grito. Palmer Eldrich, sacudido por um espasmo, acordou muito inquieto. Os ruídos gorgolejantes vindos da cozinha atrairam-lhe a atenção. Estacou e acendeu um cigarro. Tirou uma fumaça e avançou decidido. Num esgar de horror e incredulidade viu a massa de iogurte carnívora. Atirou-se pela janela e correu pela sacada que unia as janelas dos álvéolos-quarto. Na cozinha, o iogurte gritava numa voz cava – “QUERO COMER!...ARGH…COMIDA!...COMIDA!” – Palmer não hesitou e chamou dali mesmo um cyber-táxi que sobrevoava o bairro. – “Estranho sítio para chamar um táxi”. – Disse o táxi. – Palmer não lhe respondeu, acendeu um cigarro e olhou alguns sinais de agitação e pânico no bairro dos cientistas que já se notavam. Chegou ao laboratório, abriu o armário classificado com uma passagem da sua mão direita. “Dr. Palmer Eldritch. Autorizado” – Disse uma voz sintética. A porta abriu-se. Palmer abriu o frasco de JJ-180 e engoliu duas cápsulas sem água. Enquanto a droga não fazia efeito lembrou-se que tinha havido já notícia de acidentes com outros transgénicos caseiros. Sobretudo quando as donas de casa começaram a usar PCRs[polymerase chain reaction] e sequenciadores de DNA de cozinha, tornados baratos pela Taurus. Entretanto, sob o efeito da droga, Palmer voltara para trás no tempo umas vinte quatro horas, pois olhou o calendário na parede do laboratório e tudo batia certo. – “Perfeito” – Pensou. Meteu-se noutro táxi e voou rapidamente para o consultório de Sweetscent no Complexo de Medicina Aeroespacial Lunar.
- “Então, Palmer, meu grande cabrão?”- Disse o médico a apagar a beata.
O Palmer do seu passado estava de calças em baixo reclinado na marquesa olhou o médico e o Palmer-do-futuro algo perplexo. O médico olhou os dois e disse: - Pôrra, Palmer, andaste outra vez a meter daquela merda! Foda-se! Assim, volta tudo à estaca zero, filho da mãe! Que raio…” Palmer Eldritch acalmou-o e disse- “ É um risco que corro.E é por uma boa causa, Bill”. Pegou no frasco da levedura que estava em cima da secretária, despejou-o num recipiente aberto, meteu-o no micro-ondas, rodou para grill no máximo e pressionou o botão. A levedura ferveu até ficar amarela e ressequida. O médico acendeu um cigarro. – “Deu merda, o iogurte, foi?” – “Foi.- Disse Palmer. O médico tirou uma fumaça, abriu a garrafa de J&B e serviu três copos. – “Foi a parva da mulher-a-dias que me deu…Bom, deixa lá isso. Amanhã já sabes. Leite de soja.” Palmer suspirou e olhou para Palmer-do-passado, que já tragava o seu whisky de uma vez.
FIM
Palmer Eldrich estava na ressaca de uma longa história de abuso de drogas ilegais e fora agora forçado a encetar uma vida regrada, da qual faziam parte visitas diárias ao Centro de Medicina Aeroespacial Lunar, para desintoxicação. A alimentação racional fazia parte do processo e o iogurte tomado de manhã tinha sido recomendado pelo médico, o Dr. William Sweetscent. A grande toxicidade hepática e o elevado potencial adictivo da droga JJ-180 tinha sido mal avaliada por Palmer. Isto apesar dos efeitos da droga terem servido os seus intentos de melhor classificação social junto do Quizzmaster. Palmer Eldritch era um renomado bioquímico 8-8 e a JJ-180 tinha a capacidade de efectivamente transportar no tempo, aleatoriamente decerto, quem a tomava. Palmer regressara ao passado e viajara ao futuro, por via da droga, alterando os acontecimentos passados e também obtendo conhecimento valioso acerca dos futuros alternativos para seu uso vantajoso, no presente. Nomeadamente, pôde manipular o resultados da Lotaria, que sorteava poder e prestígio em todo o Império Solar. Assim, obtivera o seu estauto elevado de 8-8. Não previra, no entanto, que o seu sistema nervoso se degradasse tanto. Agora tinha que fazer uma pausa. Colocou a massa de levedura, que lhe tinha fornecido Sweetscent, num recipiente com leite morno e tapou-o. – "Flôr-de-iogurte" é um nome idota"- pensou. No entanto, lembrava-se da sua avó, maníaca da alimentação saudável, fazer deste iogurte e também do seu travo ácido, quando lho dava a provar. Contudo, essas recordações das primeiras décadas do terceiro milénio também lhe eram agradáveis. Também por isso, aceitou resignadamente a dieta de iogurte caseiro de Sweetscent. Foi para o quarto e olhou as luzes da grande cidade lunar e o gigantesco edifício da Corporação Planetária. Um vai-vêm de carga, provavelmente vindo das colónias de Io ou Europa, fazia a aproximação à pista do espaçoporto. Palmer bocejou. Sentado numa cadeira do quarto, olhou distraidamente os anúncios da televisão. A maior parte eram a marcas populares de orgãos artificiais, clonados de células estaminais e destinados para manter a longevidade do corpo à medida que os naturais iam falhando. Estes dispendiosos orgãos sobressalentes levavam os cidadãos a empenharem-se toda uma vida aos bancos, mas eram um negócio lucrativo. Palmer estava exausto. Sob a semi-imponderabilidade da Lua, o copo de sumo de uva caiu lentamente da mão de Palmer quando este adormeceu.
Na cozinha, a flôr-de-iogurte transgénica afadigava-se na transformação do leite. No recipiente, a massa branca agitava-se e começava a borbulhar. Uma ligeira luminescência invadiu o interior do frigorífico. Uma massa informe de protoplasma branco estravasava o recipiente Tupperware e começava a formar uma espécie de tentáculo titubeante. A massa de iogurte transgénico absorvia, como uma amiba gigante, os alimentos do frigorífico: os cubos de tofu, o seitan, o amasake de arroz, a ameixa salgada kombu, o miso, o molho de gergelim, as lentilhas, os restos de arroz integral e o chá Três Anos. Forçava agora a porta do frigorífico e rastejava pelo chão da cozinha. Vários tentáculos e uma cavidade que lembrava uma boca informe prescrutavam os vários armários em busca de comida. Uma parte da massa protoplásmica entrava pelo sifão da sanita e introduzia-se no esgoto do bloco de apartamentos alveolares.
Palmer revirava-se no sofá em inquietos pesadelos, revivendo algumas das alucinações da droga Alfa-Soma-45, que consumira profusamente durante o ano anterior. O efeito psicotrópico principal era a projecção do Si-mesmo do consumidor para o interior de figurinhas de plástico que ocupavam um pequeno cenário miniatura. Tinha sido uma droga muito popular nas colónias áridas de Marte entre os trabalhadores das minas de zircónio. Podia assim viver-se virtualmente uma qualquer situação escolhida previamente, em função do cenário construído. Podia ser uma estância tropical na Terra ou a vida de um nababo da Índia do século XVII, rodeado de luxo e concubinas. Palmer gostava especialmente dum cenário em que montara uma miniatura perfeita dum serralho Joviano em que cyber-moças-de-cama lascivas lhe lambiam o corpo apolíneo e musculado. O negócio da droga Alfa-Soma-45 era particularmente rendível sobretudo porque os mini-adereços para os cenários tinham de ser muito perfeitos para serem convincentes. Caso contrário, as imperfeições interferiam com a alucinação por forma a que o drogado as percebia com inconsistências no tecido da realidade virtual e ficava num estado de confusão até o efeito da droga se desvanecer na circulação sanguínea. O negócio das miniaturas perfeitas estendeu-se de tal modo que passou a ser mais atractivo para os investidores, que o tráfico da própria droga. O objectivo de muitas famílias de colonos, foi durante muito tempo, adquirir a maior quantidade possível de boas miniaturas. E endividaram-se por isso. Palmer enriqueceu com esse negócio, pois montara uma fábrica onde os artesãos micro-oleiros de Ganímedes produziam as miniaturas mais procuradas. Agora tudo isto voltava, em pesadelos, numa amálgama de experiências incoerentes durante o sono. Uma consequência do uso da droga por Palmer, que caíra na tentação de experimentar o seu próprio produto.
A massa protoplásmica carnívora de flôr-de- iogurte avançava agora pelos alvéolos modulares hexagonais que formavam o dormitório dos cientistas da cidade lunar Selenis IV. O iogurte faminto devorava os incautos adormecidos, que muitas vezes não tinham tempo sequer de emitir um grito. Palmer Eldrich, sacudido por um espasmo, acordou muito inquieto. Os ruídos gorgolejantes vindos da cozinha atrairam-lhe a atenção. Estacou e acendeu um cigarro. Tirou uma fumaça e avançou decidido. Num esgar de horror e incredulidade viu a massa de iogurte carnívora. Atirou-se pela janela e correu pela sacada que unia as janelas dos álvéolos-quarto. Na cozinha, o iogurte gritava numa voz cava – “QUERO COMER!...ARGH…COMIDA!...COMIDA!” – Palmer não hesitou e chamou dali mesmo um cyber-táxi que sobrevoava o bairro. – “Estranho sítio para chamar um táxi”. – Disse o táxi. – Palmer não lhe respondeu, acendeu um cigarro e olhou alguns sinais de agitação e pânico no bairro dos cientistas que já se notavam. Chegou ao laboratório, abriu o armário classificado com uma passagem da sua mão direita. “Dr. Palmer Eldritch. Autorizado” – Disse uma voz sintética. A porta abriu-se. Palmer abriu o frasco de JJ-180 e engoliu duas cápsulas sem água. Enquanto a droga não fazia efeito lembrou-se que tinha havido já notícia de acidentes com outros transgénicos caseiros. Sobretudo quando as donas de casa começaram a usar PCRs[polymerase chain reaction] e sequenciadores de DNA de cozinha, tornados baratos pela Taurus. Entretanto, sob o efeito da droga, Palmer voltara para trás no tempo umas vinte quatro horas, pois olhou o calendário na parede do laboratório e tudo batia certo. – “Perfeito” – Pensou. Meteu-se noutro táxi e voou rapidamente para o consultório de Sweetscent no Complexo de Medicina Aeroespacial Lunar.
- “Então, Palmer, meu grande cabrão?”- Disse o médico a apagar a beata.
O Palmer do seu passado estava de calças em baixo reclinado na marquesa olhou o médico e o Palmer-do-futuro algo perplexo. O médico olhou os dois e disse: - Pôrra, Palmer, andaste outra vez a meter daquela merda! Foda-se! Assim, volta tudo à estaca zero, filho da mãe! Que raio…” Palmer Eldritch acalmou-o e disse- “ É um risco que corro.E é por uma boa causa, Bill”. Pegou no frasco da levedura que estava em cima da secretária, despejou-o num recipiente aberto, meteu-o no micro-ondas, rodou para grill no máximo e pressionou o botão. A levedura ferveu até ficar amarela e ressequida. O médico acendeu um cigarro. – “Deu merda, o iogurte, foi?” – “Foi.- Disse Palmer. O médico tirou uma fumaça, abriu a garrafa de J&B e serviu três copos. – “Foi a parva da mulher-a-dias que me deu…Bom, deixa lá isso. Amanhã já sabes. Leite de soja.” Palmer suspirou e olhou para Palmer-do-passado, que já tragava o seu whisky de uma vez.
FIM
Arrotos do Porco:
Mimosa, obrigado pá, ainda bem que gostaste. Não é uma transcrição. No entanto tem elementos e ideias (as drogas que fazem viajar no tempo ou que fazem identificar-se com os cenários) que são de livros do P. K Dick. Nomeadamemte "Lotaria Solar", "À espera do ano passado" e "os três estigmas de palmer eldrich", "Blade runner - do androids dream of electric sheep?" e "relatório minoritário". Mais uma conversa com o meu irmão acerca da possibilidade da flor de iogurte da nossa mãe poder trasnformar-se num monstro carnívoro tipo filme manhoso de terror dos anos 50 (ed Wood). Tudo bem misturado, eh, eh. |
Venho tarde, é certo, mas não podia deixar de vir fazer a minha vénia a este pedaço de génio. Que gande texto! O Palmer Eldrich do Assento é o mais interessante "herói" com que me deparei nos últimos tempos - não ficava tão preso a uma personagem desde a célebre Adozinda! Por estas e por outras é que isto vale a pena. |