sexta-feira, outubro 29, 2004 |
ONTEM À NOITE
Enquanto escrevo isto um holandês e um russo andam à porrada no Eurosport. Devem ganhar à vida a andar à pêra. Eu não. Eu não dou nem levo umas murraças desde o ciclo preparatório. Nem acho que me tenha feito falta.
Enquanto escrevo isto vou ouvindo uns escoceses melancólicos chamados Ostle Bay. São um exemplar típico daquele pop de guitarras pós-adolescente com pretensões a escrever a canção definitiva sobre o amor ou a falta dele. Claro: são mais uns que não conseguem. Mas o esforço é válido e ouve-se bem.
Enquanto escrevo isto lembro-me dos lugares comuns sobre os sentimentos na adolescência. Lembro-me e, à distância, confesso que me parecem reais. Há dias em que quero aquela explosão hormonal de volta. Há dias em que não. Era tão fácil escrever, naquela altura. As histórias nasciam com facilidade e, se faltavam histórias, sobravam opiniões. Era tão fácil ter certezas, naquela altura. É tão espúrio ter certezas, agora – à excepção das certezas fundamentais, dos princípios.
Enquanto escrevo isto o holandês já ganhou ao russo e agora está a levar na boca em grande estilo de um japonês. Será que se pode inferir daqui que os japoneses são doidos para a porrada? Eu não infiro, até porque não trabalho no 24 Horas.
Enquanto escrevo isto os meus pais já devem estar deitados. Os meus sobrinhos já devem estar a dormir depois da excitação de mais um dia de escola. O meu irmão e a minha cunhada ainda devem estar a pé. Sabe-me bem lembrá-los assim, ter uma ideia precisa de onde estão, pressentir que estão bem.
Enquanto escrevo isto já o japonês arrumou o holandês e agora é a sua vez de levar um arraial de pancada às mãos de um tailandês. Confesso que nunca me tinha passado pela cabeça que, enquanto eu alinhavo (ou chuleio…) um post, há várias pessoas que ficam com a cara esfacelada por desporto.
Enquanto escrevo isto recrimino-me por não estar a treinar a progressão II-V-I no piano. Recrimino-me por não estar a ler o que devia ler. Recrimino-me por não estar a ler o que me apetecia ler. Recrimino-me por não estar já deitado para conseguir acordar cedo amanhã. Recrimino-me por ter deixado a louça do jantar por lavar. Deixam-me contente estas prevaricações inconsequentes.
Enquanto escrevo isto o tailandês atira umas patadas ao focinho do japono que, por sua vez, se abraça a ele. Uma pessoa incauta pensaria que o tailandês é mau e que o japonês quer fazer as pazes. Uma pessoa maldosa pensaria outra coisa…
Enquanto escrevo isto considero que também eu tenho as pazes feitas. Devo alguns telefonemas, quero retribuir alguns gestos – e é mesmo bom verificar que no prato da balança que merece a etiqueta “deve” só tenho amizade e gratidão. E posts. Devo-me alguns posts. Guardar palavras não me traz proveito nenhum nem deduções no IRS.
Enquanto escrevo isto não faço mais nada. Resultado: tenho um pé dormente.
Enquanto escrevo isto vou ouvindo uns escoceses melancólicos chamados Ostle Bay. São um exemplar típico daquele pop de guitarras pós-adolescente com pretensões a escrever a canção definitiva sobre o amor ou a falta dele. Claro: são mais uns que não conseguem. Mas o esforço é válido e ouve-se bem.
Enquanto escrevo isto lembro-me dos lugares comuns sobre os sentimentos na adolescência. Lembro-me e, à distância, confesso que me parecem reais. Há dias em que quero aquela explosão hormonal de volta. Há dias em que não. Era tão fácil escrever, naquela altura. As histórias nasciam com facilidade e, se faltavam histórias, sobravam opiniões. Era tão fácil ter certezas, naquela altura. É tão espúrio ter certezas, agora – à excepção das certezas fundamentais, dos princípios.
Enquanto escrevo isto o holandês já ganhou ao russo e agora está a levar na boca em grande estilo de um japonês. Será que se pode inferir daqui que os japoneses são doidos para a porrada? Eu não infiro, até porque não trabalho no 24 Horas.
Enquanto escrevo isto os meus pais já devem estar deitados. Os meus sobrinhos já devem estar a dormir depois da excitação de mais um dia de escola. O meu irmão e a minha cunhada ainda devem estar a pé. Sabe-me bem lembrá-los assim, ter uma ideia precisa de onde estão, pressentir que estão bem.
Enquanto escrevo isto já o japonês arrumou o holandês e agora é a sua vez de levar um arraial de pancada às mãos de um tailandês. Confesso que nunca me tinha passado pela cabeça que, enquanto eu alinhavo (ou chuleio…) um post, há várias pessoas que ficam com a cara esfacelada por desporto.
Enquanto escrevo isto recrimino-me por não estar a treinar a progressão II-V-I no piano. Recrimino-me por não estar a ler o que devia ler. Recrimino-me por não estar a ler o que me apetecia ler. Recrimino-me por não estar já deitado para conseguir acordar cedo amanhã. Recrimino-me por ter deixado a louça do jantar por lavar. Deixam-me contente estas prevaricações inconsequentes.
Enquanto escrevo isto o tailandês atira umas patadas ao focinho do japono que, por sua vez, se abraça a ele. Uma pessoa incauta pensaria que o tailandês é mau e que o japonês quer fazer as pazes. Uma pessoa maldosa pensaria outra coisa…
Enquanto escrevo isto considero que também eu tenho as pazes feitas. Devo alguns telefonemas, quero retribuir alguns gestos – e é mesmo bom verificar que no prato da balança que merece a etiqueta “deve” só tenho amizade e gratidão. E posts. Devo-me alguns posts. Guardar palavras não me traz proveito nenhum nem deduções no IRS.
Enquanto escrevo isto não faço mais nada. Resultado: tenho um pé dormente.
terça-feira, outubro 26, 2004 |
PEQUENA HISTÓRIA (verídica)
Uma vez apanhei um táxi na cidade de Havana. Lá há dois tipos de tarifas: as que estão tabeladas e contabilizadas por um contador electrónico e as que são discutidas com o taxista. Tinha sido uma noite torrencial como já não se via em Cuba há algum tempo, com uma tempestade tropical a assolar a ilha. As ruas estavam molhadas e desconfortáveis e eu queria ir a esse tradicional bar/restaurante, sobejamente conhecido por ter dado guarida a muitas das bebedeiras que Ernest apanhou por lá.
Chegado ao pé do táxi, discuto com o motorista a tarifa para me levar ao destino.
«Três dólares daqui até à ‘La Bodeguita’» - proponho eu em castelhano.
«No, trés dólares, no» - responde ele.
«Entonces, quanto?» - pergunto eu.
«Trés dólares» - replica ele.
Uma vez apanhei um táxi na cidade de Havana. Lá há dois tipos de tarifas: as que estão tabeladas e contabilizadas por um contador electrónico e as que são discutidas com o taxista. Tinha sido uma noite torrencial como já não se via em Cuba há algum tempo, com uma tempestade tropical a assolar a ilha. As ruas estavam molhadas e desconfortáveis e eu queria ir a esse tradicional bar/restaurante, sobejamente conhecido por ter dado guarida a muitas das bebedeiras que Ernest apanhou por lá.
Chegado ao pé do táxi, discuto com o motorista a tarifa para me levar ao destino.
«Três dólares daqui até à ‘La Bodeguita’» - proponho eu em castelhano.
«No, trés dólares, no» - responde ele.
«Entonces, quanto?» - pergunto eu.
«Trés dólares» - replica ele.
Fiquei meio estupefacto mas decidi agarrar a oportunidade. Tinha sido uma negociação difícil, como podem compreender…
Já no táxi e a caminho do local, estando o motorista a fazer conversa de circunstância, do género «noite terrível, não se via chover assim há muito tempo, foi uma violência» e depois de nos ter tentado vender os «puros genuínos», vira-se para mim e para o meu irmão e sai-se com esta: «Los senhores no tendrán un cuarto de viagra que me puédan dispensar?».
Eu e o meu irmão, julgando não ter percebido bem, perguntámos em coro «Qué?»
«Si no tiénen un cuarto de viagra para mi. Puedo pagarlo» - diz o gajo.
«Foda-se, o gajo disse mesmo o que percebemos da primeira vez!» - pensámos nós, garantidamente, ao mesmo tempo.
«No senhor» - resposta novamente em coro e a olharmos um para o outro a sorrir com a doidice daquele país, vertida naquele tipo naquele preciso momento.
Terminado o percurso, deixámos o táxi e, depois de ele ter partido em busca de outro cliente, desatámos a rir à gargalhada. Nunca nos passaria pela cabeça aquela situação mas é compreensível, face ao estado das coisas numa das últimas das designadas «economias de Esquerda».
quinta-feira, outubro 21, 2004 |
1. O VARETA GOSTA DE MÚSICA
“Just follow the day and reach for the sun”
The Polyphonic Spree
Há uma alegria primordial que nunca me deixou mas a que não adivinho a razão. É uma coisa que me faz sorrir como um tolinho quando ouço uma música nova que me fascina, quando leio qualquer coisa que me surpreende, quando fico encantado pela qualidade de alguém ou de alguma coisa. Foi essa alegria primordial que desde cedo me levou a escrever, foi ela que me levou a querer fazer música – e não porque ache que seja bom numa ou noutra coisa, mas apenas porque ela é maior que eu. Os dissabores e as histórias tristes a que essa alegria tem sobrevivido não cabem aqui. Ela existe, se calhar existe apesar de mim, e eu estimo-a.
Comprei há dias o primeiro álbum de um grupo norte-americano chamado The Polyphonic Spree. É um disco gravado à pressa, numas sessões de estúdio meio à socapa, por um grupo que poucos ensaios tinha em cima. É um disco fantástico. O conceito é inesperado: um grupo “quase” coral, com instrumentação pouco habitual, trajando longas vestes brancas. Mas o conceito é acessório; o que importa é que naquela música só há isso: música e a alegria original de a fazer. Não há raiva, não há suor, não há insatisfação, não há dor – não há nenhuma das fontes tradicionais para a música pop/rock. Há uma quantidade de gente feliz a/por cantar e fazer música que só quer ser feliz. Fazer isto sem cair no ridículo é admirável.
Não queria ter medo do ridículo, eu. Nem disso nem de outras coisas. Se calhar não mudaria nada, mas é sempre bom ter uma destas bóias do “como seria se…”. Uma, uma só. Ou duas. Mais do que isso, não: é o código postal da frustração.
“Just follow the day and reach for the sun”
The Polyphonic Spree
Há uma alegria primordial que nunca me deixou mas a que não adivinho a razão. É uma coisa que me faz sorrir como um tolinho quando ouço uma música nova que me fascina, quando leio qualquer coisa que me surpreende, quando fico encantado pela qualidade de alguém ou de alguma coisa. Foi essa alegria primordial que desde cedo me levou a escrever, foi ela que me levou a querer fazer música – e não porque ache que seja bom numa ou noutra coisa, mas apenas porque ela é maior que eu. Os dissabores e as histórias tristes a que essa alegria tem sobrevivido não cabem aqui. Ela existe, se calhar existe apesar de mim, e eu estimo-a.
Comprei há dias o primeiro álbum de um grupo norte-americano chamado The Polyphonic Spree. É um disco gravado à pressa, numas sessões de estúdio meio à socapa, por um grupo que poucos ensaios tinha em cima. É um disco fantástico. O conceito é inesperado: um grupo “quase” coral, com instrumentação pouco habitual, trajando longas vestes brancas. Mas o conceito é acessório; o que importa é que naquela música só há isso: música e a alegria original de a fazer. Não há raiva, não há suor, não há insatisfação, não há dor – não há nenhuma das fontes tradicionais para a música pop/rock. Há uma quantidade de gente feliz a/por cantar e fazer música que só quer ser feliz. Fazer isto sem cair no ridículo é admirável.
Não queria ter medo do ridículo, eu. Nem disso nem de outras coisas. Se calhar não mudaria nada, mas é sempre bom ter uma destas bóias do “como seria se…”. Uma, uma só. Ou duas. Mais do que isso, não: é o código postal da frustração.
2. O VARETA GOSTA DOS MAGNETIC FIELDS
Ainda não li coisa alguma sobre o concerto de ontem. Nem quero. Mas desde já vos aviso que houve quem ficasse desapontado; houve que achasse Stephin Merrit demasiado blazé ou mesmo antipático; houve quem se sentisse defraudado pela escolha de repertório; houve até facções divergentes, uns acusando o senhor de narcolepsia, outros de estar sob o efeito de estimulantes ilegais. Um casal vi eu que se levantou e saiu a meio! Mais vos aviso: o Estêvão tapava um ou os dois ouvidos durante os aplausos do público, foi pouco comunicativo e cantou com a bocarra demasiado encostada ao microfone. Ou seja, foi dos melhores concertos que já vi.
Foi mesmo. Pelo menos para mim – e graças a outros presentes, como o insigne Embaixador da Unicer neste blog, sei que não foi só para mim. Um piano vertical, uma guitarra acústica, um violoncelo, um ukelele, um génio, uma colaboradora brilhante, dois talentos e umas duas dezenas de canções fabulosas bastaram e sobraram para fazer daquele um dos melhores concertos que já vi. Não há truques, não há distracções, não há outras imagens que não os gajos – e a gaja! – que fazem aquelas canções. E quem faz canções daquelas e as executa com aquela honestidade só pode dar um grande concerto.
Foi mesmo. Espero que a minha memória se vá mantendo menos má, porque não me quero esquecer do que foram as interpretações de “Book of Love”, “ I thought you were my boyfriend” e da brilhante dupla final – pré-encore – de “Papa was a rodeo” e “It’s only time”. Foram canções esmagadoramente bonitas porque são canções terrivelmente humanas em que o cinismo e o humor retorcido são a capa de verdades simples e universais e que pesam, hão-de pesar sempre nas nossas vidas.
Antes do concerto, falava com a Senhorita Sofia d’A Corneta e com o CC d’As Partículas Elementares – é bonito isto, quando os nomes de blogs tomam o lugar dos apelidos – e dizia que qualquer álbum dos Magnetic Fields, quando comparado com esse monumento que é o “69 Love Songs”, sabe a pouco, por melhor que seja. Nesse capítulo, o concerto foi extremamente pedagógico: deixando de lado apenas os dois primeiros álbuns em que Stephin Merrit ainda não se abalançava a cantar, todos os outros foram alvo de uma ou mais revisitações e todos eles têm grandes canções.
Espero que o casal que saiu a meio tenha ido fazer um electrocardiograma – alguma coisa devia estar a falhar nesse capítulo, de certeza…
terça-feira, outubro 19, 2004 |
O TEXTO EM QUE EU NÃO EXPLICO PORQUE ESTIVE TANTO TEMPO SEM ESCREVER
i.
Os dois pastéis de bacalhau que hoje comi como entrada ao almoço repousavam sobre um belo pires de café da Delta. E porque é que eu vos falo do pires? Falo por que era um daqueles bem antigos, de quando o símbolo da Delta ainda era um grão de café humanizado, com olhinhos esbugalhados, sapatorros de atacadores e boina preta como símbolo de identidade regional. Confesso que não desgosto da publicidade de hoje em dia, em que qualquer gaja se despe e geme para provar o quão bom é qualquer produto anti-calcário para sanitas. Mas há em mim, algures entre o baço e o resto, uma costela de Peter Pan (o que é que foi?! antes de Peter Pan que de Sininho!) que tem umas certas saudades do tempo em que o Brise Contínuo falava e cantava. Foi-se a fábula, ficou a carne. Valha-nos isso, que ainda estamos longe da Quaresma.
ii.
Comprei um ou outro móvel no IKEA. Sim, confesso. Não percebo porque é que estes suecos não chegaram mais cedo a Portugal. Ou melhor, o IKEA devia ser português porque é português o espírito que lhe está subjacente: os móveis não são grande coisa mas fazem as mesmas vezes de uns melhores; aquilo não é bem madeira mas disfarça; a montagem nem sempre corre bem mas dá-se um jeitinho e aquilo aguenta-se; às vezes compra-se gato por lebre mas pelo menos não nos levam couro e cabelo. Um conceito empresarial a que se podem aplicar tantos chavões da sabedoria popular lusitana não devia ser pertença dos suecos!
iii.
Por falar nisso, alguém saberia o que era a Suécia antes dos ABBA? Mais: alguém saberia o que era a Roménia antes dos O-Zone? Ou Israel antes de Ytzar Cohen and the Alpha Beta?
iv.
Não fui a um certo almoço de sábado. E tive pena. Nesse certo almoço estavam várias pessoas que eu queria rever – pessoas capazes de gestos grandes e nobres e surpreendentes. Mas não pude. Podia invocar que fora censura do actual Governo, mas não. Apenas não pude.
v.
Amanhã tocam em Lisboa os Magnetic Fields. Que o mesmo é dizer: amanhã actua em Lisboa o Stephin Merrit. Que o mesmo é dizer: vai haver demonstração do mais puro génio musical a preços quase módicos na Aula Magna, a partir das 21h30. Que o mesmo é dizer: eu, que não sou (sempre) lorpa, lá estarei. Que o mesmo é dizer: nem que chovessem pregos eu deixaria de ir ouvir o gajo que é o verdadeiro cruzamento entre Rei Midas e um copo misturador de toda a música com maior ou menor qualidade dos últimos… 90 anos?
vi.
O Ferreira do Zêzere venceu o Benfica por 3-2 num jogo de treino de FUTSAL. Viva Ferreira do Zêzere.
vii.
Em Tomar é tempo de Feira de Santa Iria. Por todo o país, é tempo de apanha da azeitona. Fatos impermeáveis, mantas, caimbos, varas, cestas, sacas, tararas, lagares, ceiras, meduras, graus de acidez... Às vezes sabe-me bem lembrar-me que, no fundo, sou um homem do campo.
viii.
Também me sabe bem mostrar que domino a numeração romana.
ix.
Precisava de ter que dizer menos sobre certas coisas para arranjar mais tempo para pensar no que quero dizer.
x.
Por isso, por hoje, não digo mais nada.
i.
Os dois pastéis de bacalhau que hoje comi como entrada ao almoço repousavam sobre um belo pires de café da Delta. E porque é que eu vos falo do pires? Falo por que era um daqueles bem antigos, de quando o símbolo da Delta ainda era um grão de café humanizado, com olhinhos esbugalhados, sapatorros de atacadores e boina preta como símbolo de identidade regional. Confesso que não desgosto da publicidade de hoje em dia, em que qualquer gaja se despe e geme para provar o quão bom é qualquer produto anti-calcário para sanitas. Mas há em mim, algures entre o baço e o resto, uma costela de Peter Pan (o que é que foi?! antes de Peter Pan que de Sininho!) que tem umas certas saudades do tempo em que o Brise Contínuo falava e cantava. Foi-se a fábula, ficou a carne. Valha-nos isso, que ainda estamos longe da Quaresma.
ii.
Comprei um ou outro móvel no IKEA. Sim, confesso. Não percebo porque é que estes suecos não chegaram mais cedo a Portugal. Ou melhor, o IKEA devia ser português porque é português o espírito que lhe está subjacente: os móveis não são grande coisa mas fazem as mesmas vezes de uns melhores; aquilo não é bem madeira mas disfarça; a montagem nem sempre corre bem mas dá-se um jeitinho e aquilo aguenta-se; às vezes compra-se gato por lebre mas pelo menos não nos levam couro e cabelo. Um conceito empresarial a que se podem aplicar tantos chavões da sabedoria popular lusitana não devia ser pertença dos suecos!
iii.
Por falar nisso, alguém saberia o que era a Suécia antes dos ABBA? Mais: alguém saberia o que era a Roménia antes dos O-Zone? Ou Israel antes de Ytzar Cohen and the Alpha Beta?
iv.
Não fui a um certo almoço de sábado. E tive pena. Nesse certo almoço estavam várias pessoas que eu queria rever – pessoas capazes de gestos grandes e nobres e surpreendentes. Mas não pude. Podia invocar que fora censura do actual Governo, mas não. Apenas não pude.
v.
Amanhã tocam em Lisboa os Magnetic Fields. Que o mesmo é dizer: amanhã actua em Lisboa o Stephin Merrit. Que o mesmo é dizer: vai haver demonstração do mais puro génio musical a preços quase módicos na Aula Magna, a partir das 21h30. Que o mesmo é dizer: eu, que não sou (sempre) lorpa, lá estarei. Que o mesmo é dizer: nem que chovessem pregos eu deixaria de ir ouvir o gajo que é o verdadeiro cruzamento entre Rei Midas e um copo misturador de toda a música com maior ou menor qualidade dos últimos… 90 anos?
vi.
O Ferreira do Zêzere venceu o Benfica por 3-2 num jogo de treino de FUTSAL. Viva Ferreira do Zêzere.
vii.
Em Tomar é tempo de Feira de Santa Iria. Por todo o país, é tempo de apanha da azeitona. Fatos impermeáveis, mantas, caimbos, varas, cestas, sacas, tararas, lagares, ceiras, meduras, graus de acidez... Às vezes sabe-me bem lembrar-me que, no fundo, sou um homem do campo.
viii.
Também me sabe bem mostrar que domino a numeração romana.
ix.
Precisava de ter que dizer menos sobre certas coisas para arranjar mais tempo para pensar no que quero dizer.
x.
Por isso, por hoje, não digo mais nada.
segunda-feira, outubro 18, 2004 |
DOCAS
Não vos digo, nem vos conto. Eu e o Cutivo éramos os gajos mais velhos. De resto, estávamos rodeados por adolescentes. Não estava à espera, devo confessar.
Não vos digo, nem vos conto. Eu e o Cutivo éramos os gajos mais velhos. De resto, estávamos rodeados por adolescentes. Não estava à espera, devo confessar.
O primeiro a chegar foi o puto imberbe. Sim, estou a falar do g2. Veio «de skate pela Infante Santo abaixo», começou logo a contar. Com o balanço - e porque apanhou os semáforos todos no verde - conseguiu chegar às docas. Deu 25 cêntimos ao arrumador e lá estacionou entre um TIR e um Smart. Estava todo animado porque a escola tinha finalmente começado e tinha umas colegas jeitosas, «daquelas que têm piercings na língua e tudo». Era vê-lo todo eufórico e com os pensamentos próprios da idade em relação às moçoilas…
Por falar no belo sexo, eis que surgem quatro gajas acompanhadas por um tipo de cabelo cortado à escovinha: a Nena Bia, a Violas, a Chimeer e a Imaculada. Escusado será dizer que o tipo com ar de militar e com quase dois metros de altura era o Zé cutivo.
Esperámos mais um pouco e decidimos ir para o restaurante. Sentámo-nos e pedimos as entradas. Veio de tudo, desde ovinhos de codorniz a ovas de esturjão. Sim, porque nós sabemos tratar-nos. A acompanhar, umas flutes de champagne, do verdadeiro.
Estávamos nós a degustar o que nos punham em cima da mesa quando surgem o Priapo e a Fly-away. Vinham agarradinhos, ele com o seu metro e cinquenta e cinco por debaixo do braço dela. A Fly é grande e, com uns sapatos de trinta centímetros de salto, ainda fica maior. Estranhei foi os tons de azul que o cabelo dela tinha. Sim, porque o azul que utiliza tem, normalmente, tons mais escuros. Deve ser a moda de Outono, eu não percebo nada disso.
O Zé Cutivo - educado como sempre - ia sentar cada uma das meninas, puxando a cadeira e colocando-as, gentilmente, nos seus lugares.
Depois das entradas (tanto as que estavam em cima da mesa como as que cada uma e cada um fez no restaurante), decidimos optar pelo faisão e pelo espadarte, secundados por um vinho de 1960. Normalíssimo, diria. Ah, é verdade, foi antecedido por uma vichyssoise, que o dia estava solarengo.
Discutimos filosofia, a arte de bem receber e a Moda Lisboa. O costume.
Com o vento a soprar e a assobiar quando passava nas orelhas da Violas, as coisas até iam correndo bem. Excepto pelo facto de ocorrerem umas escapadelas a duas para a casa de banho. Nunca percebi esta mania de as mulheres irem juntas para os lavabos. Se fossem gajos, desconfiava logo que um deles iria ajudar o outro a sacudir, mas assim, não sei o que pensar…
A Imaculada estava a mostrar que os seus dezassete aninhos tinham sido vividos com toda a imaginação, uma vez que o piercing no umbigo e a tatuagem no pescoço eram mesmo para exibir. E ficavam-lhe bem, com a mini-saia e a barriga à mostra.
Já falei no g2 e nas suas ideias em relação às miúdas da idade dele? Pois…
A Nena e a Chimeer continuavam a discutir qual seria a melhor roupa a usar na vernissage a que iriam pouco depois. Não apanhei muito bem o que era mas ouvi falar nos Paços do Concelho e na Paula Rego…
Já falei no g2 e nas suas ideias em relação às miúdas da idade dele? Pois…
Ainda tentei escapar-me da emoção toda a que estava a assistir mas, como comprovam algumas fotografias, não consegui.
O Priapo, do alto da sua baixa estatura, não conseguia chegar à mesa e tivemos que pedir uma cadeirinha de bebé. Já o Cutivo, esse jogador de basquetebol, não parava de falar nas virtudes da tropa e do cabelo cortado rente, que era mais fácil de tomar um duche e não sei o quê, para evitar os hábitos subliminares que tinha de começar por lavar primeiro uma mão, depois a perna esquerda, a peitaça e por aí fora…
Foi um almoço bem passado, com a criadagem a não descurar a sua atenção em relação a nós e a encherem-nos os copos com toda a deferência que marca o sítio.
No fim do almoço, cujo início estava marcado para o meio-dia, eram já horas de jantar e foi um-ver-se-te-avias, com as miúda preocupadas com os vestidos que iriam usar à noite e o g2 a afiar os dentes e a enfiar a carapuça de Lobo Mau. O Priapo ofereceu boleia às convivas no seu Porsche e no carro de apoio (um Bentley), que trazia a criadagem. As miúdas aceitaram e o g2 pegou no skate e saiu rolando por ali fora. Isto, imediatamente depois de ter pedido os números de telefone às miúdas, claro.
O Cutivo guardou aquele objecto comprido que trazia na mão e foi também embora.
E eu apanhei uma gripe e fui para casa dormir. Valeu a pena.
sexta-feira, outubro 15, 2004 |
HÁBITOS I
Já se deram conta dos hábitos que se entranham na nossa vida e que fazem parte dela de uma maneira tão subtil que raramente nos lembramos deles? Pois é.
Tomemos como exemplo o acordar e o ir tomar um duche. Não estou a falar do salutar hábito higiénico de passarmos pelo crivo de limpeza que representa ir ao duche. Isso é opcional e está na consciência de cada um. Falo da cerimónia do duche, propriamente dita: não obedeceis a uma ordem para vos lavardes? Eu obedeço. Primeiro isto, depois aquilo e termina-se com mais isto. E tomar um duche não é nada complicado.
Outro exemplo: quando visto um par de calças, seja ganga ou outro tecido, normalmente enfio uma perna antes da outra. Até aí tudo bem, é normal. Mas a perna que enfio em primeiro lugar - a esquerda - sentir-se-ia desconfortável se eu metesse primeiro a outra nas calças. Bom, não é bem a perna que se sente desconfortável, sou eu. Coisa estranha.
Esta primeira reflexão sobre os hábitos termina com uma pergunta que me assalta: isto só acontece comigo?
Tema estrambólico, eu sei.
quinta-feira, outubro 14, 2004 |
CAMPANHA ELEITORAL DA MADEIRA
ARTISTAS CONVIDADOS E NÚMEROS:
PSD
Marco Paulo – 12,5 mil euros – Cada espectáculo
Ágata – 4 mil euros – Cada espectáculo
Circo Cardinalli – 50 mil euros - Transporte dos bichos e do material.
- 7500 euros – Cada espectáculo
PS
Quim Barreiros - 3 mil euros – Cada espectáculo.
Fonte: Diário de Notícias da Madeira 11.10.04
CONCLUSÃO: Sai mais caro ter Dois Amores do que Afinal haver Outra Garagem onde Enfiar o Carro da Vizinha.
ARTISTAS CONVIDADOS E NÚMEROS:
PSD
Marco Paulo – 12,5 mil euros – Cada espectáculo
Ágata – 4 mil euros – Cada espectáculo
Circo Cardinalli – 50 mil euros - Transporte dos bichos e do material.
- 7500 euros – Cada espectáculo
PS
Quim Barreiros - 3 mil euros – Cada espectáculo.
Fonte: Diário de Notícias da Madeira 11.10.04
CONCLUSÃO: Sai mais caro ter Dois Amores do que Afinal haver Outra Garagem onde Enfiar o Carro da Vizinha.
quarta-feira, outubro 13, 2004 |
"Não dêem importância ao ruído que vai à nossa volta", pediu Santana Lopes aos portugueses.
sexta-feira, outubro 08, 2004 |
Folhetim - dia 3
Carlos levantou-se de repente e limpou as mãos às calças de ganga.
- Bem, vou chamar a polícia. Isto assim não pode ser.
- Vai chamar quem?
- A polícia. Alguém tem que tomar conta da ocorrência.
- Eu se fosse a si, não fazia isso...
- Então porquê?
- Bem... não se sabe de que é que ele morreu. E a polícia vai fazer perguntas, afinal foi você que o "descobriu".
- Ei! Que é que você quer dizer com isso?
Nesse momento, abriu-se a porta do rés-do-chão B e saíu o sr. Jorge. Amestiçado, pai de um rancho de filhos já crescidos (cujo número total nunca consegui determinar, mesmo ao fim de seis anos), agarrado a uma bengala por força de uma qualquer incapacidade nas pernas, libertava o típico fedor a tinto de má qualidade que sempre o seguia. Sorriu o seu habitual sorriso de menino traquinas, disse um "bom dia" meio cantado no seu sotaque angolano, evitou as minhas pernas com alguma dificuldade e desapareceu na madrugada ainda escura. Carlos e Vítor ficaram a olhar para a porta da rua alguns segundos, até o primeiro voltar à carga.
- Você está a querer dizer que eu o matei?
- Eu?!? Longe de mim! Mas a polícia vai fazer perguntas, ai isso é que vai.
- Você também aqui estava. Também o viu.
- Mas eu cheguei depois.
- Ai sim? E quem é que disse isso?
- Bem! Querem ver que a gente se vai chatear?
- Se me vierem chatear eu não vou levar com eles sozinho. Além do mais, se ele foi morto, eu não fui de certeza o primeiro a chegar aqui, foi o assassino. Eu tenho a certeza que não o matei, mas de si já não digo nada...
- Mas você está parvo? Não viu que eu cheguei depois de si?
- Ora, podia ter ido lá acima e esperado que aparecesse alguém...
PLAF!, fez a mão do Vítor na cara do Carlos. Os dois enrolaram-se, urrando, até se agarrarem e caírem por cima do meu cadáver. O barulho atraiu a D. Ana Paula, administradora do condomínio, que morava no 1º andar. Solicitadora de profissão e tortuosa de processos, era impossível manter uma conversa durante mais de 30 segundos com ela sem sermos presenteados com uma qualquer explicação bizarra para as coisas mais corriqueiras do dia-a-dia. Normalmente relacionavam-se com os imensos perigos que espreitavam a cada esquina da vida, de onde magotes de criminosos de diversa índole espreitavam uma oportunidade para arruinar a vida ao cidadão mais temente a Deus e cumpridor das suas obrigações fiscais.
- Que é que se passa aqui?, disse hesitante. Que é que fizeram ao vizinho?
- Nós? Nada!, disseram os dois em coro desafinado.
- Como, nada? O homem tá aí caído, até parece morto!
Carlos levantou-se de repente e limpou as mãos às calças de ganga.
- Bem, vou chamar a polícia. Isto assim não pode ser.
- Vai chamar quem?
- A polícia. Alguém tem que tomar conta da ocorrência.
- Eu se fosse a si, não fazia isso...
- Então porquê?
- Bem... não se sabe de que é que ele morreu. E a polícia vai fazer perguntas, afinal foi você que o "descobriu".
- Ei! Que é que você quer dizer com isso?
Nesse momento, abriu-se a porta do rés-do-chão B e saíu o sr. Jorge. Amestiçado, pai de um rancho de filhos já crescidos (cujo número total nunca consegui determinar, mesmo ao fim de seis anos), agarrado a uma bengala por força de uma qualquer incapacidade nas pernas, libertava o típico fedor a tinto de má qualidade que sempre o seguia. Sorriu o seu habitual sorriso de menino traquinas, disse um "bom dia" meio cantado no seu sotaque angolano, evitou as minhas pernas com alguma dificuldade e desapareceu na madrugada ainda escura. Carlos e Vítor ficaram a olhar para a porta da rua alguns segundos, até o primeiro voltar à carga.
- Você está a querer dizer que eu o matei?
- Eu?!? Longe de mim! Mas a polícia vai fazer perguntas, ai isso é que vai.
- Você também aqui estava. Também o viu.
- Mas eu cheguei depois.
- Ai sim? E quem é que disse isso?
- Bem! Querem ver que a gente se vai chatear?
- Se me vierem chatear eu não vou levar com eles sozinho. Além do mais, se ele foi morto, eu não fui de certeza o primeiro a chegar aqui, foi o assassino. Eu tenho a certeza que não o matei, mas de si já não digo nada...
- Mas você está parvo? Não viu que eu cheguei depois de si?
- Ora, podia ter ido lá acima e esperado que aparecesse alguém...
PLAF!, fez a mão do Vítor na cara do Carlos. Os dois enrolaram-se, urrando, até se agarrarem e caírem por cima do meu cadáver. O barulho atraiu a D. Ana Paula, administradora do condomínio, que morava no 1º andar. Solicitadora de profissão e tortuosa de processos, era impossível manter uma conversa durante mais de 30 segundos com ela sem sermos presenteados com uma qualquer explicação bizarra para as coisas mais corriqueiras do dia-a-dia. Normalmente relacionavam-se com os imensos perigos que espreitavam a cada esquina da vida, de onde magotes de criminosos de diversa índole espreitavam uma oportunidade para arruinar a vida ao cidadão mais temente a Deus e cumpridor das suas obrigações fiscais.
- Que é que se passa aqui?, disse hesitante. Que é que fizeram ao vizinho?
- Nós? Nada!, disseram os dois em coro desafinado.
- Como, nada? O homem tá aí caído, até parece morto!
quinta-feira, outubro 07, 2004 |
De orelhas em pé - XVII
A TVI, como televisão privada, tem accionistas. Esses accionistas, provavelmente, terão outros negócios além da TVI. Se parte da programação da TVI interfere com os negócios dos seus accionistas, é legítimo que estes manifestem o seu descontentamento ao administrador, que fará o possível para equilibrar as forças presentes – por um lado, a deontologia dos profissionais de informação, por outro a preocupação dos accionistas. Nada disto é assunto, se se passar assim.
Acontece porém que Marques Mendes, considerando “lamentáveis” as “pressões” exercidas sobre Marcelo Rebelo de Sousa (fonte: Público), proferiu o seguinte: "Trata-se de um precedente grave e que nada tem a ver com a história do PSD". A ligação entre as pressões e o PSD é clara, e nada tem a ver com accionistas.
E de que pressões se está a falar? Atentemos nas palavras de MRS: "Na sequência de conversa da iniciativa do presidente da Media Capital, Miguel Paes do Amaral, decidi cessar, de imediato, a colaboração na TVI, a qual sempre pude livremente conceber e executar durante quatro anos e meio". Descontando a habitual fineza do autor, depreende-se sem grande margem para dúvidas que deixou de poder “ livremente conceber e executar”.
Face a tão graves acusações, o Governo mete os pés pelas mãos. Morais Sarmento tece considerações futebolísticas que o insultam mais que aos portugueses que julga enganar com tamanhas falácias. Já o testa-de-ferro desta campanha ignominiosa, Rui Gomes da Silva, ejecta pérolas de pura alucinação de cada vez que abre a boca. Veja-se:
"Nem o Governo nem eu próprio quisemos alguma vez calar qualquer tipo de comentário (…) Aquilo que disse e repito é que defendo que, em qualquer debate político, deve haver contraditório, pluralismo, para dar voz aos diferentes pontos de vista". Ou o Ministro é semi-analfabeto e não sabe a diferença entre comentário e debate ou está a tomar medicação que devia incluir advertência quanto a práticas governativas durante o tratamento. Ficamos a saber ainda que a sua interpretação de pluralismo refere-se às várias tendências dentro do seu próprio partido, já que convem não esquecer que MRS foi presidente do PSD, autarca eleito pelas listas do PSD e, presumo eu, ainda militante do PSD.
Quiçá incomodado com algum remoque de consciência, ainda tentou emendar a mão, abrangendo todo o espectro político. Garante que teria a mesma atitude "se um comentador durante 45 minutos e por anos a fio dissesse o pior possível das propostas da oposição". Pena é que se tenha esquecido de o fazer nos últimos quatro anos e meio, em que MRS atacou com a mesma diligência o governo PS (primeiro) e o governo de Durão e a oposição PS (depois). Pois é, sr. ministro, gindungo no cu dos outros é fresco…
Este episódio é apenas mais um, quiçá o mais visível, de uma longa série. Este governo quer agarrar-se ao poder que atingiu em condições de legitimidade discutível e tenciona fazê-lo controlando, tanto quanto possa, os meios de informação. Veremos se a nossa classe jornalística saberá fazer jus à sua fama de Quarto Poder ou dobrará obedientemente a espinha.
quarta-feira, outubro 06, 2004 |
Folhetim - dia 2
Estava o Carlos nesta iminência de desespero quando apareceu o Vítor no seu típico caminhar bamboleante. Gajo acanhado por natureza, disfarçava a timidez com uma cara de quem traz uma borbulha assanhada na virilha, mesmo onde o elástico do slip roça, mas bastava falar uns segundos com ele para que se desfizesse em sorrisos e amabilidades. Ganhava a vida com instalações de águas e gás, entre as quais passeava a discreta (quase receosa) esposa e o filho pequeno. Por sorte, eles não o acompanhavam hoje quando deu de caras com o improvisado velório que se montara à porta de minha casa.
- Então... que é que aconteceu?, perguntou com ar desconfiado.
- Não sei, vizinho. Cheguei aqui há bocado e dei com isto...
- Mas ele está doente? - quando a situação exigia, vinha ao cimo um traço de gaguez bem dominada.
- Qual!... Está morto!
- Morto?!? T-Tem a c-c-certeza?
O Carlos não disse nada, mas os ombros descaíram imperceptivelmente.
- Já chamou alguém?
- Não... não sei se chame uma ambulância já ou fale primeiro com a mulher dele.
- Eh, pá... isso é capaz de ser chato.
- Tá bem, mas ela vai ter que saber.
- Mas os tipos do INEM sabem falar com as pessoas e dar-lhes essas noticias. Estão sempre a fazer isso, é a vida deles.
- Acha? Não são os da polícia que fazem isso?
- Ora, tanto faz. Polícia, bombeiros, INEM...
- Mas olhe que se fosse eu preferia que a minha mulher soubesse por pessoas conhecidas.
- Oh, depois de morto deve fazer muita diferença...
O Carlos levantou devagar os olhos (que ainda não tinha tirado de mim) para o outro.
- Eh, pá... mesmo morto o homem merece respeito...
- Bah... era um cagão. Sempre muito simpático e educado, mas tenho a certeza que se julgava melhor que nós todos. Nunca se misturava c'a gente, nem vinha às sardinhadas no pátio...
"Se te entrasse pela casa o pivete que entrava pela minha também não ias às sardinhadas, cabrão...", pensei eu.
- Olhe que não, vizinho. O tipo era mesmo simpático.
- Sim, sim... lá porque a mulher é professora... olhe, nem me admirava nada que ela ficasse satisfeita com a notícia. Essa malta sente as coisas de maneira diferente, não julgue...
- Agora está a ser mauzinho. Eles davam-se bem, nunca ouvi uma discussão ou um berro que fosse em casa deles.
- Davam-se bem... há quem as faça pela calada, sabe?
- Credo, pá! Não tarda ainda me vai dizer que foi ela que o matou!
- Olha!... agora que fala nisso... de que é que ele morreu?
- Sei lá! Eu não sou médico!
Calaram-se os dois, mas os seus olhos fixaram-se com um misto de receio e suspeita na minha porta...
Estava o Carlos nesta iminência de desespero quando apareceu o Vítor no seu típico caminhar bamboleante. Gajo acanhado por natureza, disfarçava a timidez com uma cara de quem traz uma borbulha assanhada na virilha, mesmo onde o elástico do slip roça, mas bastava falar uns segundos com ele para que se desfizesse em sorrisos e amabilidades. Ganhava a vida com instalações de águas e gás, entre as quais passeava a discreta (quase receosa) esposa e o filho pequeno. Por sorte, eles não o acompanhavam hoje quando deu de caras com o improvisado velório que se montara à porta de minha casa.
- Então... que é que aconteceu?, perguntou com ar desconfiado.
- Não sei, vizinho. Cheguei aqui há bocado e dei com isto...
- Mas ele está doente? - quando a situação exigia, vinha ao cimo um traço de gaguez bem dominada.
- Qual!... Está morto!
- Morto?!? T-Tem a c-c-certeza?
O Carlos não disse nada, mas os ombros descaíram imperceptivelmente.
- Já chamou alguém?
- Não... não sei se chame uma ambulância já ou fale primeiro com a mulher dele.
- Eh, pá... isso é capaz de ser chato.
- Tá bem, mas ela vai ter que saber.
- Mas os tipos do INEM sabem falar com as pessoas e dar-lhes essas noticias. Estão sempre a fazer isso, é a vida deles.
- Acha? Não são os da polícia que fazem isso?
- Ora, tanto faz. Polícia, bombeiros, INEM...
- Mas olhe que se fosse eu preferia que a minha mulher soubesse por pessoas conhecidas.
- Oh, depois de morto deve fazer muita diferença...
O Carlos levantou devagar os olhos (que ainda não tinha tirado de mim) para o outro.
- Eh, pá... mesmo morto o homem merece respeito...
- Bah... era um cagão. Sempre muito simpático e educado, mas tenho a certeza que se julgava melhor que nós todos. Nunca se misturava c'a gente, nem vinha às sardinhadas no pátio...
"Se te entrasse pela casa o pivete que entrava pela minha também não ias às sardinhadas, cabrão...", pensei eu.
- Olhe que não, vizinho. O tipo era mesmo simpático.
- Sim, sim... lá porque a mulher é professora... olhe, nem me admirava nada que ela ficasse satisfeita com a notícia. Essa malta sente as coisas de maneira diferente, não julgue...
- Agora está a ser mauzinho. Eles davam-se bem, nunca ouvi uma discussão ou um berro que fosse em casa deles.
- Davam-se bem... há quem as faça pela calada, sabe?
- Credo, pá! Não tarda ainda me vai dizer que foi ela que o matou!
- Olha!... agora que fala nisso... de que é que ele morreu?
- Sei lá! Eu não sou médico!
Calaram-se os dois, mas os seus olhos fixaram-se com um misto de receio e suspeita na minha porta...
domingo, outubro 03, 2004 |
Folhetim - dia 1
Cumprindo o ritual já por muitos conhecido lá na urbanização, antes de bater com a porta o Carlos soltou, em bem projectada voz de barítono e inesperadamente correcta dicção, o tradicional "PÓ CARALHO!" com que mimoseava a esposa antes de sair para as oficinas do Metro. Trabalhava por turnos e nunca sabíamos a que horas soaria aquele "PÓ CARALHO - BLAM!" que tão bem conhecíamos. Era um bom lembrete para a aleatoriedade de certas coisas nesta vidinha que levamos, mas isso pouquíssima relevância tem para o caso. Se vos falei do Carlos e das suas saídas foi para vos situar, para que percebam porque razão foi logo ele que, ao sair do elevador, deu de caras comigo, morto, à porta de casa.
Estar morto é uma seca. Perdem-se imensas oportunidades de gozar com a tolice alheia, mesmo que fosse pouco avisado gozar descaradamente com o Carlos, que era abrutalhado de natureza e ex-boxeur por vicissitudes várias. As espessas sobrancelhas que mantinham os olhos fundos numa quas'eterna penumbra só se arqueavam em esgar sorridente quando se falava de uma vitória do Benfica. Sendo eu sportinguista desde o berço (antes, até) poucas vezes o vi neste estado. Não estivesse eu morto, porém, e não deixaria passar em claro aquele ar idiota com que me olhou e perguntou:
- Vizinho! Vizinho! Está-se a sentir bem?
Eu diria "claro que estou, palerma. Estou deitado à porta de casa de olhos esbugalhados, inerte e a espumar da boca porque resolvi passar aqui férias", ou qualquer coisa do género, mas, lembrem-se, estava morto. E assim continuei. Fartei-me de rir (à moda dos mortos, claro) com a atrapalhação toda dele e o tempo inacreditavelmente longo que levou a perceber que tinha que telefonar para o 112 e chamar polícia e ambulância. Tivesse aquele crânio espesso permitido esta lucidez e eu pouco ou nada teria para escrever, já que estaria a ser cremado 48 horas depois, mas tal não aconteceu. Após longos minutos a ensaiar gestos que incompletava, desde o tocar à campainha de minha casa até ao marcar de um número no telemóvel vermelho com uma águia pintada, decidiu sentar-se ao meu lado. Com um dedo, tentou sentir a pulsação da minha jugular. Não o conseguindo, encolheu-se contra a parede, respirou fundo e disse:
- Olha que porra, hem? Estas merdas, só a mim...
Lamentei, do fundo da minha morte, perder mais esta oportunidade.
Cumprindo o ritual já por muitos conhecido lá na urbanização, antes de bater com a porta o Carlos soltou, em bem projectada voz de barítono e inesperadamente correcta dicção, o tradicional "PÓ CARALHO!" com que mimoseava a esposa antes de sair para as oficinas do Metro. Trabalhava por turnos e nunca sabíamos a que horas soaria aquele "PÓ CARALHO - BLAM!" que tão bem conhecíamos. Era um bom lembrete para a aleatoriedade de certas coisas nesta vidinha que levamos, mas isso pouquíssima relevância tem para o caso. Se vos falei do Carlos e das suas saídas foi para vos situar, para que percebam porque razão foi logo ele que, ao sair do elevador, deu de caras comigo, morto, à porta de casa.
Estar morto é uma seca. Perdem-se imensas oportunidades de gozar com a tolice alheia, mesmo que fosse pouco avisado gozar descaradamente com o Carlos, que era abrutalhado de natureza e ex-boxeur por vicissitudes várias. As espessas sobrancelhas que mantinham os olhos fundos numa quas'eterna penumbra só se arqueavam em esgar sorridente quando se falava de uma vitória do Benfica. Sendo eu sportinguista desde o berço (antes, até) poucas vezes o vi neste estado. Não estivesse eu morto, porém, e não deixaria passar em claro aquele ar idiota com que me olhou e perguntou:
- Vizinho! Vizinho! Está-se a sentir bem?
Eu diria "claro que estou, palerma. Estou deitado à porta de casa de olhos esbugalhados, inerte e a espumar da boca porque resolvi passar aqui férias", ou qualquer coisa do género, mas, lembrem-se, estava morto. E assim continuei. Fartei-me de rir (à moda dos mortos, claro) com a atrapalhação toda dele e o tempo inacreditavelmente longo que levou a perceber que tinha que telefonar para o 112 e chamar polícia e ambulância. Tivesse aquele crânio espesso permitido esta lucidez e eu pouco ou nada teria para escrever, já que estaria a ser cremado 48 horas depois, mas tal não aconteceu. Após longos minutos a ensaiar gestos que incompletava, desde o tocar à campainha de minha casa até ao marcar de um número no telemóvel vermelho com uma águia pintada, decidiu sentar-se ao meu lado. Com um dedo, tentou sentir a pulsação da minha jugular. Não o conseguindo, encolheu-se contra a parede, respirou fundo e disse:
- Olha que porra, hem? Estas merdas, só a mim...
Lamentei, do fundo da minha morte, perder mais esta oportunidade.
sexta-feira, outubro 01, 2004 |
BOM DIA
Conhecer gente é das coisas mais deslumbrantes que me pode acontecer. Nos últimos tempos tenho andado em estado de graça. Ele é emprego novo, ele é o revelador jantar da Vara, enfim, gente para todos os gostos. Às vezes conheço superficialmente gente que me deixa sem vontade de conhecer melhor, outras vezes fico a conhecer intimamente pessoas com as quais teria preferido nunca me ter cruzado mas geralmente fico sempre com vontade de conhecer melhor toda a gente a quem digo bom dia.
Acho o Ser Humano fascinante. Tenho uma curiosidade insaciável pelas interpretações singulares que cada um de nós faz da vida. Gosto de conhecer a diversidade dos comportamentos e dos sentimentos que cada indivíduo detém face às coisas da vida. Conversar é uma experiência enriquecedora. Sei que estão a pensar que conversar é coisa de mulheres – até estou a ouvir alguns dizer: conversar é coisa de gajas, mas vou fingir que não ouço – talvez por isso as mulheres sejam sábias da vida. Tenham um bom dia.
Conhecer gente é das coisas mais deslumbrantes que me pode acontecer. Nos últimos tempos tenho andado em estado de graça. Ele é emprego novo, ele é o revelador jantar da Vara, enfim, gente para todos os gostos. Às vezes conheço superficialmente gente que me deixa sem vontade de conhecer melhor, outras vezes fico a conhecer intimamente pessoas com as quais teria preferido nunca me ter cruzado mas geralmente fico sempre com vontade de conhecer melhor toda a gente a quem digo bom dia.
Acho o Ser Humano fascinante. Tenho uma curiosidade insaciável pelas interpretações singulares que cada um de nós faz da vida. Gosto de conhecer a diversidade dos comportamentos e dos sentimentos que cada indivíduo detém face às coisas da vida. Conversar é uma experiência enriquecedora. Sei que estão a pensar que conversar é coisa de mulheres – até estou a ouvir alguns dizer: conversar é coisa de gajas, mas vou fingir que não ouço – talvez por isso as mulheres sejam sábias da vida. Tenham um bom dia.