sexta-feira, fevereiro 24, 2006 |
Correspondência japonesa – II
Um japonês foi condenado a não sei quanto tempo de cadeia – não sei mesmo, mas foi algum tempo de prisão efectiva – por andar a lamber a língua de rapariguinhas pré-púberes. Sim, é isso mesmo. Chegava-se ao pé das meninas, à saída da escola, e pedia para ver a língua delas. Quando elas punham a língua de fora, ele lambia-lhas. Este debochado “tongue-licker” deve agora ser visto com o maior respeito pelos restantes reclusos. “Homicídio? Isso é para amadores… Eu estou aqui porque lambi não sei quantas línguas de meninas com uniforme escolar!”
É japonês, valha-nos isso. Continua a vigorar na sociedade japonesa a ideia de que se ignorarem os problemas eles ficam remetidos ao limbo. Dizia o outro que “nomear e trazer à existência” – se não se falar de um problema, ele não existe. E, se tivermos mesmo que falar, atribui-se ao problema outra nacionalidade que não a japonesa. Prostituição? Há alguma, lamentavelmente, “mas são só filipinas, tailandesas, chinesas ou coreanas!” – mesmo que dominem mais de 10000 caracteres, se chamem Tanaka ou Nakata e tenham nascido em Fukuoka de pais japoneses. Crimes violentos? São poucos, felizmente, “e são os estrangeiros que os cometem!… ainda há pouco tempo aquele peruano não matou uma rapariguinha japonesa?…chuif…”. Homossexualidade? “Cá não há disso! E aqueles bares de Shinjuku ni-chome com desenhos do Tom of Finland à porta são só sítios normais para as pessoas beberem… dizem-me, que eu por mim não vou lá” . Sem abrigo? “Onde?” Ali, não estás a ver? “Onde? Não vejo nada!” Ali!, aquele senhor a dormir no átrio da estação! “Pela minha saúde se vejo alguma coisa! E, se lá estivesse alguém a dormir, era porque tinha bebido demais e perdido o último comboio para casa!” Mas não vês que o senhor está tapado com cartões e tem um ar andrajoso? “Já disse que não vejo nada! E tu a dar-lhe!…”
A sociedade japonesa é admirável em muitos aspectos mas recusa-se, de uma forma geral, a admitir que há (muito) quem borre a pintura.
Em Maio de 2004, salvo o erro, um diplomata japonês suicidou-se em Shanghai. O caso tem dado que falar, por aqui – e tem dado que falar ao MNE japonês, Taro Aso, o que é sempre um risco. As últimas declarações foram especialmente ilustrativas: pondo a culpa nos serviços de espionagem chineses, o MNE afirmou que “chinese intelligence introduced him (o pobre suicida) to a sexy woman!”. Gostei. Claro, podia ter escolhido outros termos: “hot chick”, “nice babe”, “foxy lady” ou, porque não, “juicy bitch”. Ao que parece, a sexy woman queria extorquir segredos da cifra japonesa, tendo o pobre diplomata preferido a morte à claudicação. Que moral tira o Sr. Aso da história? “Most diplomats aren’t so good looking; we must prepare them not to be vulnerable to attractive women.” O comentário deve ter caído bem junto dos diplomatas japoneses… como se não bastasse a fama do pavio curto…
Uma pessoa normal terá sempre que especular sobre a natureza do programa de formação “How to resist beautiful women”. Que caminho seguir? O do Tom Cruise do “Magnolia”, gritando “Tame the cunt!”, ou o da abstinência à Ratzinger, cedendo à tentação apenas se a senhora estiver fértil e disposta a conceber? Haverá aulas práticas? E como ultrapassarão os coitados “not so good looking” tão pungente dilema? “Chupo-lhe as mamas ou candidato-me a Londres?”; “Se lhe meto a mão na c*** ainda me despedem…” . E se conhecem uma gaja bêbeda, numa izakaya, que começa a falar de um “love hotel” muito jeitoso ali ao lado, como é que eles terão a certeza de que não é uma cilada? Não os invejo. Com a minha costumeira modéstia, diria que antes bonito e com carta de alforria para foder do que feio e com os tomates agrilhoados pelo patrão.
Um japonês foi condenado a não sei quanto tempo de cadeia – não sei mesmo, mas foi algum tempo de prisão efectiva – por andar a lamber a língua de rapariguinhas pré-púberes. Sim, é isso mesmo. Chegava-se ao pé das meninas, à saída da escola, e pedia para ver a língua delas. Quando elas punham a língua de fora, ele lambia-lhas. Este debochado “tongue-licker” deve agora ser visto com o maior respeito pelos restantes reclusos. “Homicídio? Isso é para amadores… Eu estou aqui porque lambi não sei quantas línguas de meninas com uniforme escolar!”
É japonês, valha-nos isso. Continua a vigorar na sociedade japonesa a ideia de que se ignorarem os problemas eles ficam remetidos ao limbo. Dizia o outro que “nomear e trazer à existência” – se não se falar de um problema, ele não existe. E, se tivermos mesmo que falar, atribui-se ao problema outra nacionalidade que não a japonesa. Prostituição? Há alguma, lamentavelmente, “mas são só filipinas, tailandesas, chinesas ou coreanas!” – mesmo que dominem mais de 10000 caracteres, se chamem Tanaka ou Nakata e tenham nascido em Fukuoka de pais japoneses. Crimes violentos? São poucos, felizmente, “e são os estrangeiros que os cometem!… ainda há pouco tempo aquele peruano não matou uma rapariguinha japonesa?…chuif…”. Homossexualidade? “Cá não há disso! E aqueles bares de Shinjuku ni-chome com desenhos do Tom of Finland à porta são só sítios normais para as pessoas beberem… dizem-me, que eu por mim não vou lá” . Sem abrigo? “Onde?” Ali, não estás a ver? “Onde? Não vejo nada!” Ali!, aquele senhor a dormir no átrio da estação! “Pela minha saúde se vejo alguma coisa! E, se lá estivesse alguém a dormir, era porque tinha bebido demais e perdido o último comboio para casa!” Mas não vês que o senhor está tapado com cartões e tem um ar andrajoso? “Já disse que não vejo nada! E tu a dar-lhe!…”
A sociedade japonesa é admirável em muitos aspectos mas recusa-se, de uma forma geral, a admitir que há (muito) quem borre a pintura.
Em Maio de 2004, salvo o erro, um diplomata japonês suicidou-se em Shanghai. O caso tem dado que falar, por aqui – e tem dado que falar ao MNE japonês, Taro Aso, o que é sempre um risco. As últimas declarações foram especialmente ilustrativas: pondo a culpa nos serviços de espionagem chineses, o MNE afirmou que “chinese intelligence introduced him (o pobre suicida) to a sexy woman!”. Gostei. Claro, podia ter escolhido outros termos: “hot chick”, “nice babe”, “foxy lady” ou, porque não, “juicy bitch”. Ao que parece, a sexy woman queria extorquir segredos da cifra japonesa, tendo o pobre diplomata preferido a morte à claudicação. Que moral tira o Sr. Aso da história? “Most diplomats aren’t so good looking; we must prepare them not to be vulnerable to attractive women.” O comentário deve ter caído bem junto dos diplomatas japoneses… como se não bastasse a fama do pavio curto…
Uma pessoa normal terá sempre que especular sobre a natureza do programa de formação “How to resist beautiful women”. Que caminho seguir? O do Tom Cruise do “Magnolia”, gritando “Tame the cunt!”, ou o da abstinência à Ratzinger, cedendo à tentação apenas se a senhora estiver fértil e disposta a conceber? Haverá aulas práticas? E como ultrapassarão os coitados “not so good looking” tão pungente dilema? “Chupo-lhe as mamas ou candidato-me a Londres?”; “Se lhe meto a mão na c*** ainda me despedem…” . E se conhecem uma gaja bêbeda, numa izakaya, que começa a falar de um “love hotel” muito jeitoso ali ao lado, como é que eles terão a certeza de que não é uma cilada? Não os invejo. Com a minha costumeira modéstia, diria que antes bonito e com carta de alforria para foder do que feio e com os tomates agrilhoados pelo patrão.
quinta-feira, fevereiro 23, 2006 |
Março vem aí…
… e, estranhamente, a RTP ainda não me disse nada. Se calhar não sabem que eu saí do país e andam doidos à minha procura mas, como eu sei que eles lêem frequentemente este blog, talvez a coisa de resolva.
Não é segredo para ninguém que eu gosto dos Festivais da Canção. O da RTP, o da Eurovisão ou o dos Pequenos Cantores da Figueira da Foz, tanto faz. Gosto de coisas que impliquem votações – a carga de nervos que eu apanhava a cada “Agora, Escolha!”… fiquei sempre convencido que era a sabuja da Vera Roquete que ia manipulando as votações conforme lhe apetecia ver o “Anjo na Terra” ou os “Soldados da Fortuna”. Este ano, alguém se antecipou e falou do Festival antes de mim – e fê-lo muito bem. Por isso, não me vou alongar muito mais em considerandos.
Tendo presente o sucesso alcançado pela prestação de Senhor Funda e as Varettes, aqui há atrasado, venho este ano apresentar não uma mas duas canções com grande potencial – daquelas que fariam Fernando Namora exclamar, como era seu apanágio, “venha de lá essa merda!”, que é como quem diz: “é desta que conseguimos p’ra cima de 40 pontos!”.
Canção n.º 1 – “Meu ursinho de pelúcia”
Letra – Vareta Funda
Música – é quase isso
Arranjos e Direcção de Orquestra – Cubase e ProTools
Interpretação – Varettes feat. Senhor Funda
Todos temos visto, em edições recentes da Eurovisão, que a performance está a valer tanto ou mais que a cantiga em si. O povo europeu quer ver corpos à mostra, cavalos a correr, meninas a aprender e, como gracejava o Thomas Gifford, “maminhas a bater” – ao que o Genet ajuntaria “e matulões a danser, qu’il y a beaucoup de rotos que também votam”. O que gizei para esta canção é um misto de techno-pop açucarada quatro por quatro, e show erótico (sem strap-on mas ousado, ainda assim). Com uma tónica no feminino na letra e na performance, prescindirei, modestamente, do papel principal que cabe, desta feita, às minhas Varettes. A minha participação servirá apenas tão somente para nenhum outro propósito que não o de conferir a minha reconhecida chancela de qualidade a todo o espavento que o palco irá conhecer. Nas palavras imortais de Maupassant, “Vai assim”:
Varettes, esfregando a curta veste de meio-linho (não há dinheiro para mais…) cru com óleo de cenoura:
“Uuuuuuiiiii
Uiiiiiiiiiii
Siiiiiiiiiiiimm!
(agora esfregam-se umas às outras, mas com sensualidade e não como as senhoras dos banhos escoceses das Termas do Luso)
(verso) Olhas p’ra miiiiiiimmm
Pensas que nunca me viste assim
Nas noites sem fiiiiiiimmmm
No quarto quente de cor carmim
(ponte) Rasgas-me a pele com o teu ardor
Deixas-me assada com o teu calor
Sujo os lençóis e o cobertor
São nódoas de amoooooor
(pegam em ursinhos de pelúcia que esfregam no baixo ventre)
(refrão) Julgas-te um portento de astúcia
(coro) Meu ursinho de pelúcia
Com mais segredos que a Irmã Lúcia
Meu ursinho de pelúcia
Fiz bom uso da minha argúcia
Meu ursinho de pelúcia
E agora estás preso pelo prepúcio ah ahhhh (o ah ahhhh é mais p’ra ajudar à fonética, percebem?)
(fazem a esparregata com os ursinhos debaixo do baixo ventre, manipulando a cabeça aos bonecos de forma a que pareça que os bichos estão a… a… bom… a lamber um sorvete, pronto)
(verso)Cheiras a saaaaaal
Com notas de tabaco e suor
És de Portugaaaaaaal
Tens obrigação de o fazer melhor
(continuam no chão mas em posição de… bom… do número abaixo de 70, cada uma segurando entre os membros inferiores o microfone de mão da outra)
(ponte)Enches-me a boca do teu sabor
Tomas as rédeas, dominador
Chamo-te Vlad, o Empalador
Vampiro do Amor!… (sussurrado a medo)
(e entro eu, todo pimpão, com uma capa longa e de chicote em punho, tipo Victor Hugo Cardinalli mas em homem)
Senhor Funda:
(em registo meio spoken-word meio scat) Não te vou morder
Mas posso dizer
Que te vou comer
P’ra te dar prazer
Fazer-te gemer
Sentir-te a escorrer
Vais-me obedecer
Se me apetecer
Eu vou-te comer
Vais agradecer
E depois vais ver
Ao adormecer
Não te vai doer
E ainda que doa…
São dores de prazer!
(as quatro ou seis ou oito ou dez ou p’ra cima de dezasseis Varettes, dependendo das que se conseguirem arregimentar, trocam os ursinhos por este vosso amigo, fazendo corar de vergonha o varão de um clube de strip)
(refrão) Julgas-te um portento de astúcia
(coro) Meu ursinho de pelúcia
Com mais segredos que a Irmã Lúcia
Meu ursinho de pelúcia
Fiz bom uso da minha argúcia
Meu ursinho de pelúcia
E agora estás preso pelo prepúcio ah ahhhh
E acaba, com as Varettes simulando – ou não – que me levam para fora do palco agarrado pelo… pela… por o… ah ahhhh
Canção n.º 2 – “Toda a gente é pessoas”
Letra – Vareta Funda
Música – eu gosto é quando tá a bombar!
Arranjos e Direcção de Orquestra – Casa Sonotone
Interpretação – Senhor Funda e crianças, quantas não interessa desde que uma seja preta
A par da performance, há uma coisa que vende na Eurovisão: a mensagem. Lembram-se daquela coisa indescritível de Katrina & The Waves chamada “(Love) Shine a Light”? E o cabrão do Toto Cotugno com a merda do “Insieme – Unite Europe”? É disso que eu falo: amor, fraternidade, caridade, igualdade, amizade e profilaxia da incontinência urinária. Citando o incontornável Marcel Proust, “Meu dito, meu feito”. Segue a canção, uma bonita balada para cordas, piano e voz, a voz d’oiro deste vosso modesto rouxinol:
(verso) Olhai! Uma flor…
Cada pétala
é um recado de amor
Se teimares em não olhar
Se seguires sem reparar
Tudo o que vais encontrar
É o silêncio e a dor
Ali a brincar
Estão crianças
que tu podes ensinar
Se insistes em fugir
Se resistes a sorrir
Tudo o que vais conseguir
É viver mas nunca amar
(ponte) Todos os dias tens a mesma questão
“Eu estou aqui e os outros? Onde é que estão?”
(refrão) Toda a geeeent’ é pessoas
Umas são más, mas quase todas são boas
Somos tooooooodos pessoas
Mesmo aquelas a quem tu não perdoas
Toda a geeeeeent’ é pessoas
Toda a gente lá no fundo
tem coisas boas…
tem coisas boas…
Olhai em redor
Ser diferente
não equivale a ser menor
Se não gostas do cigano
Nem sequer do africano
Ou do rasta jamaicano
É bom que penses melhor
(cantam as crianças em lenga-lenga infantil)
Ao senhor bom dou um bombom
Ao senhor mau dou um tau-tau
(x4)
(eu, em spoken word) Olá, pequeninos! Que conversa é essa do tau-tau?! Lembram-se da história do lobo mau? Ele só queria comer os três porquinhos por causa do colapso das redes de relacionamento humano que deviam prevenir a exclusão social. Se um menino como vocês lhe oferecesse comida, os três porquinhos poderiam crescer até se transformarem nos paios e presuntos das vossas sandes. Então? Ainda acham que o senhor mau merece tau-tau? Nãããão, pois não? Cantem comigo!
(ponte) Todos os dias tens que te perguntar
“Se eu estou bem quem é que vou ajudar?”
(refrão) Toda a geeeent’ é pessoas
Algumas feias, mas quase todas são boas
Somos tooooooodos pessoas
Mesmo aquelas no meio de quem tu destoas
Toda a geeeeeent’ é pessoas
Toda a gente lá no fundo
tem coisas boas… (e a partir daqui, é só palminhas a tempo e eu e as crianças)
(crianças) Toda a geeeeeent’ é pessoas
tem coisas boas…
(crianças) Toda a geeeeeent’ é pessoas
tem coisas boas
(crianças) Toda a geeeeeent’ é pessoas
tem coisas booooooooooaaaaaaaasss
Parafraseando Gunter Grass, "Já ganhou, não?"...
… e, estranhamente, a RTP ainda não me disse nada. Se calhar não sabem que eu saí do país e andam doidos à minha procura mas, como eu sei que eles lêem frequentemente este blog, talvez a coisa de resolva.
Não é segredo para ninguém que eu gosto dos Festivais da Canção. O da RTP, o da Eurovisão ou o dos Pequenos Cantores da Figueira da Foz, tanto faz. Gosto de coisas que impliquem votações – a carga de nervos que eu apanhava a cada “Agora, Escolha!”… fiquei sempre convencido que era a sabuja da Vera Roquete que ia manipulando as votações conforme lhe apetecia ver o “Anjo na Terra” ou os “Soldados da Fortuna”. Este ano, alguém se antecipou e falou do Festival antes de mim – e fê-lo muito bem. Por isso, não me vou alongar muito mais em considerandos.
Tendo presente o sucesso alcançado pela prestação de Senhor Funda e as Varettes, aqui há atrasado, venho este ano apresentar não uma mas duas canções com grande potencial – daquelas que fariam Fernando Namora exclamar, como era seu apanágio, “venha de lá essa merda!”, que é como quem diz: “é desta que conseguimos p’ra cima de 40 pontos!”.
Canção n.º 1 – “Meu ursinho de pelúcia”
Letra – Vareta Funda
Música – é quase isso
Arranjos e Direcção de Orquestra – Cubase e ProTools
Interpretação – Varettes feat. Senhor Funda
Todos temos visto, em edições recentes da Eurovisão, que a performance está a valer tanto ou mais que a cantiga em si. O povo europeu quer ver corpos à mostra, cavalos a correr, meninas a aprender e, como gracejava o Thomas Gifford, “maminhas a bater” – ao que o Genet ajuntaria “e matulões a danser, qu’il y a beaucoup de rotos que também votam”. O que gizei para esta canção é um misto de techno-pop açucarada quatro por quatro, e show erótico (sem strap-on mas ousado, ainda assim). Com uma tónica no feminino na letra e na performance, prescindirei, modestamente, do papel principal que cabe, desta feita, às minhas Varettes. A minha participação servirá apenas tão somente para nenhum outro propósito que não o de conferir a minha reconhecida chancela de qualidade a todo o espavento que o palco irá conhecer. Nas palavras imortais de Maupassant, “Vai assim”:
Varettes, esfregando a curta veste de meio-linho (não há dinheiro para mais…) cru com óleo de cenoura:
“Uuuuuuiiiii
Uiiiiiiiiiii
Siiiiiiiiiiiimm!
(agora esfregam-se umas às outras, mas com sensualidade e não como as senhoras dos banhos escoceses das Termas do Luso)
(verso) Olhas p’ra miiiiiiimmm
Pensas que nunca me viste assim
Nas noites sem fiiiiiiimmmm
No quarto quente de cor carmim
(ponte) Rasgas-me a pele com o teu ardor
Deixas-me assada com o teu calor
Sujo os lençóis e o cobertor
São nódoas de amoooooor
(pegam em ursinhos de pelúcia que esfregam no baixo ventre)
(refrão) Julgas-te um portento de astúcia
(coro) Meu ursinho de pelúcia
Com mais segredos que a Irmã Lúcia
Meu ursinho de pelúcia
Fiz bom uso da minha argúcia
Meu ursinho de pelúcia
E agora estás preso pelo prepúcio ah ahhhh (o ah ahhhh é mais p’ra ajudar à fonética, percebem?)
(fazem a esparregata com os ursinhos debaixo do baixo ventre, manipulando a cabeça aos bonecos de forma a que pareça que os bichos estão a… a… bom… a lamber um sorvete, pronto)
(verso)Cheiras a saaaaaal
Com notas de tabaco e suor
És de Portugaaaaaaal
Tens obrigação de o fazer melhor
(continuam no chão mas em posição de… bom… do número abaixo de 70, cada uma segurando entre os membros inferiores o microfone de mão da outra)
(ponte)Enches-me a boca do teu sabor
Tomas as rédeas, dominador
Chamo-te Vlad, o Empalador
Vampiro do Amor!… (sussurrado a medo)
(e entro eu, todo pimpão, com uma capa longa e de chicote em punho, tipo Victor Hugo Cardinalli mas em homem)
Senhor Funda:
(em registo meio spoken-word meio scat) Não te vou morder
Mas posso dizer
Que te vou comer
P’ra te dar prazer
Fazer-te gemer
Sentir-te a escorrer
Vais-me obedecer
Se me apetecer
Eu vou-te comer
Vais agradecer
E depois vais ver
Ao adormecer
Não te vai doer
E ainda que doa…
São dores de prazer!
(as quatro ou seis ou oito ou dez ou p’ra cima de dezasseis Varettes, dependendo das que se conseguirem arregimentar, trocam os ursinhos por este vosso amigo, fazendo corar de vergonha o varão de um clube de strip)
(refrão) Julgas-te um portento de astúcia
(coro) Meu ursinho de pelúcia
Com mais segredos que a Irmã Lúcia
Meu ursinho de pelúcia
Fiz bom uso da minha argúcia
Meu ursinho de pelúcia
E agora estás preso pelo prepúcio ah ahhhh
E acaba, com as Varettes simulando – ou não – que me levam para fora do palco agarrado pelo… pela… por o… ah ahhhh
Canção n.º 2 – “Toda a gente é pessoas”
Letra – Vareta Funda
Música – eu gosto é quando tá a bombar!
Arranjos e Direcção de Orquestra – Casa Sonotone
Interpretação – Senhor Funda e crianças, quantas não interessa desde que uma seja preta
A par da performance, há uma coisa que vende na Eurovisão: a mensagem. Lembram-se daquela coisa indescritível de Katrina & The Waves chamada “(Love) Shine a Light”? E o cabrão do Toto Cotugno com a merda do “Insieme – Unite Europe”? É disso que eu falo: amor, fraternidade, caridade, igualdade, amizade e profilaxia da incontinência urinária. Citando o incontornável Marcel Proust, “Meu dito, meu feito”. Segue a canção, uma bonita balada para cordas, piano e voz, a voz d’oiro deste vosso modesto rouxinol:
(verso) Olhai! Uma flor…
Cada pétala
é um recado de amor
Se teimares em não olhar
Se seguires sem reparar
Tudo o que vais encontrar
É o silêncio e a dor
Ali a brincar
Estão crianças
que tu podes ensinar
Se insistes em fugir
Se resistes a sorrir
Tudo o que vais conseguir
É viver mas nunca amar
(ponte) Todos os dias tens a mesma questão
“Eu estou aqui e os outros? Onde é que estão?”
(refrão) Toda a geeeent’ é pessoas
Umas são más, mas quase todas são boas
Somos tooooooodos pessoas
Mesmo aquelas a quem tu não perdoas
Toda a geeeeeent’ é pessoas
Toda a gente lá no fundo
tem coisas boas…
tem coisas boas…
Olhai em redor
Ser diferente
não equivale a ser menor
Se não gostas do cigano
Nem sequer do africano
Ou do rasta jamaicano
É bom que penses melhor
(cantam as crianças em lenga-lenga infantil)
Ao senhor bom dou um bombom
Ao senhor mau dou um tau-tau
(x4)
(eu, em spoken word) Olá, pequeninos! Que conversa é essa do tau-tau?! Lembram-se da história do lobo mau? Ele só queria comer os três porquinhos por causa do colapso das redes de relacionamento humano que deviam prevenir a exclusão social. Se um menino como vocês lhe oferecesse comida, os três porquinhos poderiam crescer até se transformarem nos paios e presuntos das vossas sandes. Então? Ainda acham que o senhor mau merece tau-tau? Nãããão, pois não? Cantem comigo!
(ponte) Todos os dias tens que te perguntar
“Se eu estou bem quem é que vou ajudar?”
(refrão) Toda a geeeent’ é pessoas
Algumas feias, mas quase todas são boas
Somos tooooooodos pessoas
Mesmo aquelas no meio de quem tu destoas
Toda a geeeeeent’ é pessoas
Toda a gente lá no fundo
tem coisas boas… (e a partir daqui, é só palminhas a tempo e eu e as crianças)
(crianças) Toda a geeeeeent’ é pessoas
tem coisas boas…
(crianças) Toda a geeeeeent’ é pessoas
tem coisas boas
(crianças) Toda a geeeeeent’ é pessoas
tem coisas booooooooooaaaaaaaasss
Parafraseando Gunter Grass, "Já ganhou, não?"...
segunda-feira, fevereiro 20, 2006 |
Coisas que me passam pela cabeça ao ouvir o “20 anos” do José Cid
Durante os meus primeiros anos, o quarto dos meus irmãos não era o meu quarto – mas, enquanto o dia durava, funcionava como a minha sala. A minha casa era particular, nesse aspecto: na maior parte das casas, a cozinha e a sala são os “pontos focais”; na nossa, a esses dois juntava-se mais um, que era o quarto dos meus irmãos. Tinha duas camas de corpo e meio (sempre gostei desta terminologia, deste vislumbre de utilidade na perspectiva de se ter meio corpo que não se sabe onde se há-de pôr), uma escrivaninha com uma cadeira, um guarda-fatos (nunca gostei do termo roupeiro) e a máquina de costura da minha mãe. Que eu ainda sou do tempo em que as mães tinham máquinas de costura. E as sabiam usar. Havia um candeeiro de tecto com globo amarelo com motivos florais pintados e havia um candeeiro sobre a escrivaninha, daqueles de metal com braço flexível. As camas tinham umas cobertas de lã (sim, também prefiro dizer cobertas a dizer colchas) brancas e verdes, bonitas e macias, ainda que, por vezes, alguns fios de lã se prendessem às rodas dos meus carrinhos, estragando ou uma coisa ou outra. No chão, de tacos de madeira, estavam uns tapetes de lã, brancos, que a minha mãe manteve sempre escrupulosamente limpos – “que ideia a minha, tapetes brancos para um quarto de rapazes…”.
O meu quarto tinha uma mobília de casal, grande e ornamentada. Gostava dele, mas não tinha o ar “coloquial” e propício à brincadeira que tinha o dos meus irmãos. Guardava alguns brinquedos no meu quarto, mas raramente os usava ali. As camas dos meus irmãos, impecavelmente feitas a cada manhã pela minha mãe, ou os ditos tapetes brancos eram os sítios onde eu gostava de brincar (se não pudesse estar no terraço, a jogar às caricas ou à bola, partindo uma plantazita ou outra…). Ou onde eu gostava de ler. Ou onde eu gostava (?) de fazer os trabalhos de casa. Onde o LEGO servia invariavelmente para fazer casas. Onde a Garagem GALP levava uns sopapos sempre que a parva da corda do elevador se ensarilhava. Onde um ou outro boneco do Subbuteo ficou esmagado debaixo de uma mão menos cautelosa. Onde o Monteverdi que os meus pais me ofereceram nas férias de Albufeira ganhava todas as corridas de carros (até que o meu irmão mais velho me ofereceu uma réplica de um Ligier, vencedor incontestado nem que partisse com dez voltas de atraso, sempre “conduzido” pelo Jacques Laffitte…).
Foi ali que li os primeiros livros. “Os Cinco na Bela Vista” foi o primeiro. O meu irmão do meio estava a lê-lo em voz alta, que eu ainda era iletrado; pousou-o por qualquer motivo e eu peguei nele e comecei a ler (parece que se passou o mesmo com o meu irmão mais velho, pelo menos… os Vareta podem não ser homens de letras mas têm-nas no sangue). Foi ali que escrevi as composições que eram pedidas na escola; as primeiras cartas; as primeiras histórias.
As portas, largas e com vidraças grandes, que davam para a varanda, eram o meu refúgio, tapado pelas cortinas brancas, quando queria cantar ou chorar sem que ninguém visse. Cantava muito, não sei se mal ou bem – fazia-o sozinho, por pudor. Serviu-me, pelo menos, para aprender inglês, esforçando-me no “sing-along” com alguns dos discos dos meus irmãos. A música ia-me marcando a vidinha na aparelhagem Waltham, made in Ireland – ou no imorredouro rádio Siemens da cozinha.
Numa tarde de Inverno, daquelas em que a noite caiu mas ainda se sente que é de tarde, eu estava a brincar numa das camas com um carrinho dos bombeiros – teria os meus 6 ou 7 anos. A minha mãe estava a trabalhar com a máquina de costura, cantarolando, e a única luz que havia no quarto era a do candeeiro de metal que, desta vez, não estava sobre a escrivaninha mas sim sobre a máquina (OLIVA, claro, que a Singer era coisa mais moderna). A minha brincadeira era simples: andar com o carrinho sobre a cama; mas estava a gostar e nenhum fio de lã se estava a querer prender. O barulho da máquina de costura e a voz da minha mãe misturavam-se de uma maneira doce. A dada altura, o meu pai chegou do trabalho e veio ao quarto e beijou a minha mãe e depois a mim. Sentou-se um bocadinho na outra cama e conversaram sobre isto ou aquilo numa conversa sorridente e tranquila. Depois, foram os dois tratar do jantar e eu fui para a sala, ver “a animação” (dava às 18h, não era?). Senti-me tão seguro, tão protegido, tão confortável, tão tranquilo… Não era a alegria esfuziante das crianças que eu experimentava; era uma felicidade mais serena e mais bonita, sem causa ou efeito particular ou espectacular.
E pronto. Não sei dizer qual foi o “segredo” que me foi passado mas, muito mais do que uma memória agradável, essa tarde deixou-me cristalizado esse estado de espírito e uma imunidade a piores disposições que vêm durando há quase um quarteirão de anos e que sobrevivem à distância do quarto onde nasceram.
Durante os meus primeiros anos, o quarto dos meus irmãos não era o meu quarto – mas, enquanto o dia durava, funcionava como a minha sala. A minha casa era particular, nesse aspecto: na maior parte das casas, a cozinha e a sala são os “pontos focais”; na nossa, a esses dois juntava-se mais um, que era o quarto dos meus irmãos. Tinha duas camas de corpo e meio (sempre gostei desta terminologia, deste vislumbre de utilidade na perspectiva de se ter meio corpo que não se sabe onde se há-de pôr), uma escrivaninha com uma cadeira, um guarda-fatos (nunca gostei do termo roupeiro) e a máquina de costura da minha mãe. Que eu ainda sou do tempo em que as mães tinham máquinas de costura. E as sabiam usar. Havia um candeeiro de tecto com globo amarelo com motivos florais pintados e havia um candeeiro sobre a escrivaninha, daqueles de metal com braço flexível. As camas tinham umas cobertas de lã (sim, também prefiro dizer cobertas a dizer colchas) brancas e verdes, bonitas e macias, ainda que, por vezes, alguns fios de lã se prendessem às rodas dos meus carrinhos, estragando ou uma coisa ou outra. No chão, de tacos de madeira, estavam uns tapetes de lã, brancos, que a minha mãe manteve sempre escrupulosamente limpos – “que ideia a minha, tapetes brancos para um quarto de rapazes…”.
O meu quarto tinha uma mobília de casal, grande e ornamentada. Gostava dele, mas não tinha o ar “coloquial” e propício à brincadeira que tinha o dos meus irmãos. Guardava alguns brinquedos no meu quarto, mas raramente os usava ali. As camas dos meus irmãos, impecavelmente feitas a cada manhã pela minha mãe, ou os ditos tapetes brancos eram os sítios onde eu gostava de brincar (se não pudesse estar no terraço, a jogar às caricas ou à bola, partindo uma plantazita ou outra…). Ou onde eu gostava de ler. Ou onde eu gostava (?) de fazer os trabalhos de casa. Onde o LEGO servia invariavelmente para fazer casas. Onde a Garagem GALP levava uns sopapos sempre que a parva da corda do elevador se ensarilhava. Onde um ou outro boneco do Subbuteo ficou esmagado debaixo de uma mão menos cautelosa. Onde o Monteverdi que os meus pais me ofereceram nas férias de Albufeira ganhava todas as corridas de carros (até que o meu irmão mais velho me ofereceu uma réplica de um Ligier, vencedor incontestado nem que partisse com dez voltas de atraso, sempre “conduzido” pelo Jacques Laffitte…).
Foi ali que li os primeiros livros. “Os Cinco na Bela Vista” foi o primeiro. O meu irmão do meio estava a lê-lo em voz alta, que eu ainda era iletrado; pousou-o por qualquer motivo e eu peguei nele e comecei a ler (parece que se passou o mesmo com o meu irmão mais velho, pelo menos… os Vareta podem não ser homens de letras mas têm-nas no sangue). Foi ali que escrevi as composições que eram pedidas na escola; as primeiras cartas; as primeiras histórias.
As portas, largas e com vidraças grandes, que davam para a varanda, eram o meu refúgio, tapado pelas cortinas brancas, quando queria cantar ou chorar sem que ninguém visse. Cantava muito, não sei se mal ou bem – fazia-o sozinho, por pudor. Serviu-me, pelo menos, para aprender inglês, esforçando-me no “sing-along” com alguns dos discos dos meus irmãos. A música ia-me marcando a vidinha na aparelhagem Waltham, made in Ireland – ou no imorredouro rádio Siemens da cozinha.
Numa tarde de Inverno, daquelas em que a noite caiu mas ainda se sente que é de tarde, eu estava a brincar numa das camas com um carrinho dos bombeiros – teria os meus 6 ou 7 anos. A minha mãe estava a trabalhar com a máquina de costura, cantarolando, e a única luz que havia no quarto era a do candeeiro de metal que, desta vez, não estava sobre a escrivaninha mas sim sobre a máquina (OLIVA, claro, que a Singer era coisa mais moderna). A minha brincadeira era simples: andar com o carrinho sobre a cama; mas estava a gostar e nenhum fio de lã se estava a querer prender. O barulho da máquina de costura e a voz da minha mãe misturavam-se de uma maneira doce. A dada altura, o meu pai chegou do trabalho e veio ao quarto e beijou a minha mãe e depois a mim. Sentou-se um bocadinho na outra cama e conversaram sobre isto ou aquilo numa conversa sorridente e tranquila. Depois, foram os dois tratar do jantar e eu fui para a sala, ver “a animação” (dava às 18h, não era?). Senti-me tão seguro, tão protegido, tão confortável, tão tranquilo… Não era a alegria esfuziante das crianças que eu experimentava; era uma felicidade mais serena e mais bonita, sem causa ou efeito particular ou espectacular.
E pronto. Não sei dizer qual foi o “segredo” que me foi passado mas, muito mais do que uma memória agradável, essa tarde deixou-me cristalizado esse estado de espírito e uma imunidade a piores disposições que vêm durando há quase um quarteirão de anos e que sobrevivem à distância do quarto onde nasceram.
Análise Hortalícica by g2
Este ano os brócolos estão a nascer todos tombados para a direita. Os cientistas andam intrigados com tal acontecimento, tão abstruso ele é. Mas há que ter em conta que é próprio de nós, os cientistas, andarmos sempre nesse estado de intriga! Houve um que pôs a língua de fora, mas esse não conta, era extra-terrestre, como um assento que anda por aqui.
Já os tomates, mais práticos, pendem como sempre dos caules de onde devem pender. Se o tal se tivesse deitado debaixo de um tomateiro, não levaria com a maçã nos cornos e a esta hora não haveria gravidade que nos importunasse. Então, qualquer um de nós poderia voar. Uns, à maneira das libélulas, quiçá vestidos de cor-de-rosa. Outros, quais colibris, ávidos de tudo e com dificuldade em engolir o mel das flores, voariam desatinados. Há ainda uma terceira categoria de eventuais voadores, onde caibo eu, que seria mais à maneira das águias, altaneiras, soberbas, vaidosas, caçadoras e por aí fora. (Também é próprio de nós, os cientistas, sermos uns vaidosos do ca…raças).
Portanto, este ano os brócolos estão a nascer pendendo para o lado direito e, habitualmente, não era assim!
quarta-feira, fevereiro 15, 2006 |
Isso são gases, senhora…
Gajos como eu pensam mais em entendimentos que em polémicas. Todavia, não me apetece passar por alforreca sem opinião quando toda a gente parece ter tomado posição na polémica da moda. Vai daí, dei por mim a perguntar-me: “Vareta, pá, que pensas tu, rapaz de reconhecida modéstia e honradez, capaz de lampejos de uma sagacidade ancestral que te corre nas veias por capricho do destino, rapaz de tino e muito caldinho de galinha sorvido com bom apetite, rapaz pouco opinativo quando não sabes do que falas, que pensas tu, insigne Vareta, desta questão dos cartuns dinamarqueses?” E isto, meus caros, se há pessoa por quem tenho respeito é por mim! Não me ia deixar ficar sem resposta. Vai daí, dei por mim a pensar: “Ai ele é isso? Então não digas que vais daqui!”. E não disse.
Parece que em Setembro de 2005, uns mariolas de um jornal dinamarquês – terra de valores notáveis como o Elkjaer Larssen ou a saudosa Wighfield que nos encantou com o “Saturday Night” – decidiram publicar uns cartuns (gosto à brava desta grafia! e já temos mais uma palavra no nosso léxico oficial que rima com Antunes!) sobre o Islão, o fundamentalismo, o terrorismo e toda a barda de conceitos que se vão confundindo alegremente. Claro, o assunto teve a repercussão esperada de qualquer coisa que se publique num jornal dinamarquês: nenhuma. Quem é que lê jornais dinamarqueses? E para quê? E como, se não se tem uma especialização em doenças da garganta? Adiante. Ao que consta, viviam, por esses dias, no país da Pequena Sereia uns quantos muçulmanos para quem os cartuns eram indigestos. Gente de boa memória, daquelas a quem não convém ficar a dever dinheiro, voltaram â Muçulmânia ou Muçulmarca ou lá como se chama a terra deles (há quem avente Mértola…) a fazer queixinha dos dinamarqueses tinhosos. “Ai, ai, ai, que nos desgraçam a memória do Profeta, aqueles malandros… Vejam bem esta pouca vergonha! E, para mais, as mulheres deles são peludas por baixo e nas axilas e avantajadas de seio e de anca e loiras como as areias do deserto em que o Profeta caminhou e gozavam connosco depois disto, dizendo ‘ó amor, deixa cá ver a tua bombinha’ ou ‘anda, faz de mim a primeira das tuas setenta virgens’ e outras coisas que não agradariam ao Profeta”. Como o sotaque deles já era cerradamente dinamarquês, os chefes da Muçulmólia tiveram dificuldade em perceber tudo mas, ao que consta, os escritórios daqueles chefes têm um ambiente entre o Parlamento de Taiwan e um acampamento cigano: se algum se queixa há logo gritos e tiros para o ar e gente de sapatos (ou alpercatas, dependendo das tendências da estação) em punho, silvando de fúria como um cisne atiçado e dizendo ‘quem é que fez mal ao meu menino?!’, ‘calhordas!’, ‘isto não fica assim!’ ou ‘já se bebia um chá de menta’. Bom. Assim como em Alfama, quando há caldo entornado, aparecem centos de pessoas “a ver o que é”, também em Muçulélgica (ou em Castro Verde, a bem da verdade…) as notícias se espalham depressa e, de mão dada com elas, a indignação, ramo em cuja perícia os muçulmanos rivalizam com os portugueses (sim, estou a generalizar desbragadamente, e depois?).
Gajos como eu pensam mais em entendimentos que em polémicas. Todavia, não me apetece passar por alforreca sem opinião quando toda a gente parece ter tomado posição na polémica da moda. Vai daí, dei por mim a perguntar-me: “Vareta, pá, que pensas tu, rapaz de reconhecida modéstia e honradez, capaz de lampejos de uma sagacidade ancestral que te corre nas veias por capricho do destino, rapaz de tino e muito caldinho de galinha sorvido com bom apetite, rapaz pouco opinativo quando não sabes do que falas, que pensas tu, insigne Vareta, desta questão dos cartuns dinamarqueses?” E isto, meus caros, se há pessoa por quem tenho respeito é por mim! Não me ia deixar ficar sem resposta. Vai daí, dei por mim a pensar: “Ai ele é isso? Então não digas que vais daqui!”. E não disse.
Parece que em Setembro de 2005, uns mariolas de um jornal dinamarquês – terra de valores notáveis como o Elkjaer Larssen ou a saudosa Wighfield que nos encantou com o “Saturday Night” – decidiram publicar uns cartuns (gosto à brava desta grafia! e já temos mais uma palavra no nosso léxico oficial que rima com Antunes!) sobre o Islão, o fundamentalismo, o terrorismo e toda a barda de conceitos que se vão confundindo alegremente. Claro, o assunto teve a repercussão esperada de qualquer coisa que se publique num jornal dinamarquês: nenhuma. Quem é que lê jornais dinamarqueses? E para quê? E como, se não se tem uma especialização em doenças da garganta? Adiante. Ao que consta, viviam, por esses dias, no país da Pequena Sereia uns quantos muçulmanos para quem os cartuns eram indigestos. Gente de boa memória, daquelas a quem não convém ficar a dever dinheiro, voltaram â Muçulmânia ou Muçulmarca ou lá como se chama a terra deles (há quem avente Mértola…) a fazer queixinha dos dinamarqueses tinhosos. “Ai, ai, ai, que nos desgraçam a memória do Profeta, aqueles malandros… Vejam bem esta pouca vergonha! E, para mais, as mulheres deles são peludas por baixo e nas axilas e avantajadas de seio e de anca e loiras como as areias do deserto em que o Profeta caminhou e gozavam connosco depois disto, dizendo ‘ó amor, deixa cá ver a tua bombinha’ ou ‘anda, faz de mim a primeira das tuas setenta virgens’ e outras coisas que não agradariam ao Profeta”. Como o sotaque deles já era cerradamente dinamarquês, os chefes da Muçulmólia tiveram dificuldade em perceber tudo mas, ao que consta, os escritórios daqueles chefes têm um ambiente entre o Parlamento de Taiwan e um acampamento cigano: se algum se queixa há logo gritos e tiros para o ar e gente de sapatos (ou alpercatas, dependendo das tendências da estação) em punho, silvando de fúria como um cisne atiçado e dizendo ‘quem é que fez mal ao meu menino?!’, ‘calhordas!’, ‘isto não fica assim!’ ou ‘já se bebia um chá de menta’. Bom. Assim como em Alfama, quando há caldo entornado, aparecem centos de pessoas “a ver o que é”, também em Muçulélgica (ou em Castro Verde, a bem da verdade…) as notícias se espalham depressa e, de mão dada com elas, a indignação, ramo em cuja perícia os muçulmanos rivalizam com os portugueses (sim, estou a generalizar desbragadamente, e depois?).
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Esta é a história, tal como me a contaram e me afiançaram ser verdade. Daí para a frente, já se sabe: um campeonato sem regras de “ninguém faz mais merda do que eu!”.
Já se disse de tudo e é muito fácil dizer, num caso como estes, em que a zona cinzenta é tão grande que, por grosso que seja o disparate, tem sempre uma franja de verdade – qualquer que seja a sua orientação. Talvez seja mais fácil ir pelo que não se deve dizer:
“Os cartuns foram um abuso da liberdade de expressão”
É a técnica da avestruz. “Ai Jesus, que eles fizeram merda e mais vale esconder a cabeça na areia até passar a borrasca…”. A liberdade de expressão no “Ocidente” é uma realidade de que nos devemos orgulhar e, se não é ainda tão perfeita como seria de desejar, isso deve-se às condicionantes ainda existentes e não a quaisquer excessos (é a mesma liberdade que nos permite representar Bush como primata, Bush como menina, Bush como terrorista, Bush como asno, Bush como tudo, sem que as Embaixadas europeias em Washington se transformem em churrasqueiras). Os cartuns podem ter sido “bons” ou “maus” – e foram, claramente, obras sem grande chama (se fossem realmente engraçados e bem conseguidos já andariam a circular pela internet muito antes da polémica rebentar…). Só se deveria admitir o seu julgamento com base nesses critérios.
A questão da “legalidade da mensagem” é uma questão que releva do ordenamento jurídico dinamarquês e nenhum outro povo se deve arrogar o direito de a pôr em causa. Afinal, os cartuns não foram lançados de avião sobre os países árabes. A questão da “oportunidade da mensagem” é irrelevante: suponho que um jornal dinamarquês não defina a sua linha editorial com base no que possa agradar ou desagradar aos “pontos sensíveis” da geopolítica mundial. A questão do “abuso” faria, porventura, sentido se tivesse sido negado direito de resposta a quem se tivesse considerado ofendido – ou se, considerando a ofensa séria, não lhe fosse possível accionar os mecanismos legais para procurar reparação. Deixem-se de tretas. Foi abuso mas foi o caralho.
“Alguma imprensa europeia solidarizou-se com os dinamarqueses e agora há 14 países que se arriscam a comer por tabela”
E só lhes fazia bem terem o rancho piorado por uns dias! Não me entendam mal: por mim, até a revista Maria podia reproduzir os cartuns (já a Gina ou a Tânia…). O público tinha curiosidade em vê-los e eles eram parte da notícia. Publicá-los, sim senhor. Publicá-los como “gesto de solidariedade”, alto e pára o baile. Solidariedade com quê? Publicá-los na Síria poderia ser “solidariedade”, com algum esforço, mas na Noruega ou em Portugal?… A sério que não percebo. Solidariedade com quê? Solidariedade institucional com a Dinamarca? Não faz sentido, nem caberia à imprensa. Solidariedade com o jornal que iniciou a questão? Porquê? Teve muitas assinaturas canceladas em Damasco? Faliu? Foi proibido? Queimaram a sede? E eu não dei por nada?… Solidariedade com os cartunistas? Menos sentido faz. Garanto-vos que me faz espécie. Se alguém percebeu, agradecia que me explicasse a mais-valia, para os supostos destinatários, de tamanha “solidariedade”. Publicar os cartuns enquanto “gesto”, enquanto “declaração”, foi um seguidismo um bocado acéfalo e foi o comprar de uma “guerrinha tonta”, perfeitamente inócua para a imprensa europeia que agora se compraz porque “esteve do lado certo” (os senhores das Embaixadas que se lixem, que, assim como assim, estão lá longe e são discretos…).
“O Ocidente foi o primeiro agressor, nesta questão”
Sem querer ser repetitivo, Ocidente o caralho! E, de caminho: agressão é ter tesão e não foder! Não houve agressão, até porque o Luisão não é cartunista! Houve um aproveitamento das circunstâncias para mais um exercício de manipulação de massas. E não é “uma coisa dos muçulmanos”, é a mesma histeria colectiva que leva aos linchamentos de aldeia ou a banhos de sangue maiores. Os cartuns não foram agressão; chegar fogo a uma Embaixada ou outra foi uma agressão não institucionalizada, um caso de polícia, mas não uma “declaração de guerra”. No relacionamento entre muçulmanos e os outros “netos de Abraão”, falar em agressões é entrar na questão do ovo e da galinha, acabando sempre por se recuar ao tempo dos “antigos” sem que se vislumbre quem atirou a primeira pedra.
O mais interessante é ver que a actual situação é benéfica para os países islâmicos mais hard-core: Síria e Irão, velhos conhecidos, encontram ali escapes bem vindos para situações menos interessantes do ponto de vista internacional (e, na Autoridade Palestiniana, é risível a tola tentativa da Fatah de ganhar em duas frentes: mostrar aos palestinianos que é capaz de tanta “indignação” como o Hamas e mostrar ao mundo que o Hamas não consegue manter a ordem pública). E a situação é benéfica também para o “Ocidente” mais hard-core: os EUA, antes de mais, que vêem, com gozo indisfarçado, os europeus metidos em assados sem que eles fiquem chamuscados na brincadeira e que assim podem aumentar a pressão em casos como… os do Irão e da Síria.
Como de costume, quem se lixa é o lingueirão, ou seja, os árabes moderados que perdem interna e externamente, e os ocidentais moderados que vão dando exemplos patéticos de “verdade e reconciliação”, a começar pelos próprios dinamarqueses e acabando no nosso Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, que, neste caso, se mostrou teólogo encartado, rei do simplismo, portento de vacuidade e muito contentinho por poder deixar implícito “eu bem avisei que o Iraque era asneira” (foi, mas não é ligação que se faça num caso destes, a menos que se ignore tudo o que se passou desde a morte de Abraão até à 2ª Guerra do Golfo).
“Eu conheço muçulmanos que são bons, logo, os muçulmanos são bons…”
…a droga e o putedo é que dão cabo da vida a alguns, não é? Sim, os muçulmanos são, na sua grande maioria, gente cordata e boa. Como o são as pessoas, em geral, sejam iranianas, americanas ou, até, de Torres Novas; muçulmanas, católicas, jeovás, fressureiras ou com psoríase. São cordatas e boas (digo eu, que sou positivo) até prova em contrário. Neste caso concreto, houve uma mão cheia de muçulmanos que provou não ser boa peça. O odioso fica apenas com esses indivíduos e não com “os muçulmanos”. Tentar centrar a questão (esta questão particular, dos cartuns) na “defesa” dos muçulmanos, “eternas vítimas de causas estruturais que o Ocidente só agrava”, é como confundir o olho do cu com a Exponor. Os muçulmanos não têm que ser defendidos nem explicados porque isto não lhes diz respeito enquanto grupo. Diz respeito a alguns Estados árabes que não querem perceber como é que um Governo não pode fechar um jornal, decapitar o seu director e amputar todos os trabalhadores e familiares; diz respeito a uns loucos que incitam à violência e a outros mais loucos ainda que a põem em prática, enquanto os incitadores jogam uma bisca lambida. Esses devem ser chamados à pedra com firmeza, sem as tibiezas de discurso do Governo dinamarquês, de Kofi Annan ou do Prof. Diogo – as assunções de uma culpa prévia aos incidentes é, a meu ver, conceder que, lá no fundo, até existe uma justificação para a violência de base religiosa, o que me parece intolerável e assustador. Mais a mais, a margem de manobra é pouca, qu’isto do pitróil está fodido. Se a gente chateia aqueles gajos, a OPEP ainda se lembra de subir o preço (ou, pelo menos, de fazer pouco para que ele desça). Então lá se vai tapando o sol com a peneira, a ver se isto acaba depressa.
“Vê-se bem pelo Corão e por outros escritos que o islamismo é uma doença”
Sim, sim, e a Bíblia é uma longa mensagem de amor, não? O que Deus fez a Sodoma e Gomorra é muito bonito e são muito edificantes algumas passagens sobre o tratamento a conferir aos inimigos da fé. Nisso o Prof. Freitas do Amaral tem razão: Abraão e tal, as três religiões monoteístas, são todas parecidas na génese e na predilecção por alguns passatempos menos salubres. Entrar em discussões destas é espúrio e é sinal de que o fundamentalismo e a intolerância (e a ignorância) não estão só do lado de lá.
“Isto ainda vai dar muito que falar”
Não. Não vai. Vai dar muitos posts, muitos artigos, muitos debates – no “Ocidente”, claro. De resto, este caso particular vai morrer, como morrem todos, porque já poucos ou nenhuns têm paciência para telenovelas longas que não se chamem “Ninguém como tu”. Casos destes são gases: fazem barulho, cheiram mal e às vezes deixam selo na roupa interior. Mas passam. O que é mais sério é a merda que fica na tripa – e nisto do Ocidente e do Islão, a obstipação é grande, bem grande, e eu não tenho cabeça para encontrar o laxante necessário. Quanto aos cartuns, se não é “much ado about nothing”, é “much ado about nothing much”.
_____________________________________________
E pronto. Com a certeza de me ter respondido, continuei a embocar pão-de-forma, presunto e queijo até serem horas de dormir, sem que outras interrogações íntimas me perturbassem.
segunda-feira, fevereiro 13, 2006 |
As grandes questões da humanidade dissecadas em 2 páginas – vol. 3
- Era o que se esperava de mim; era o que toda a gente fazia à minha volta; era a única forma de mudar de vida. Éramos criadas para isso, mas sem sermos preparadas para isso. Aprendi mais sobre a vida a olhar para os animais da nossa criação que em conversa com o meu pai ou a minha mãe. Era o que se esperava: nascias, arrancavas a pouca instrução que estavam dispostos a dar-te, trabalhavas e esperavas que alguém te pedisse em namoro e te falasse em casamento. E pronto. Casavas-te. Podias renascer ou continuar a morrer aos bocadinhos, aprendias o que querias e o que não querias e trabalhavas tanto ou mais do que antes. Sabes o que é mais triste? É que, por negativo que parecesse o cenário depois do casamento, ainda assim era sempre melhor do que antes. Não era o melhor dos tempos para ser filha, fosse qual fosse a família, rica ou pobre. Não havia préstimo para uma mulher em casa que não fosse a matriarca – ou as velhas. Era essa a escolha: ou casavas ou envelhecias depressa.
Ela parou, ajeitou a almofada atrás das costas, reclinou-se melhor no sofá e continuou:
- O namoro, naquela altura, funcionava mais como entrevista profissional. Falávamos, tentávamos perceber com o que contávamos e não podíamos ser demasiado esquisitas. No “meu universo”, quando eu tinha os meus 18 ou 20 anos, havia quê… 30 rapazes casadoiros nas redondezas. E raparigas eram tantas ou mais. Alguns dos rapazes iam para Lisboa e casavam por lá. Ainda hoje me pergunto se alguma das raparigas do meu tempo casou por amor… Amor era palavrinha de cantigas. O mais importante era casar com alguém que tivesse sustento. Gostávamos mais de uns que doutros. Mas sabíamos tão pouco… Qualquer pequena prenda nos parecia uma promessa de felicidade eterna. Sabes que eu me lembro e muito bem de todas as prendas que a minha mãe me deu, até eu casar. Foram as poucas que ela me pôde dar, sempre com muito custo. Se um namoro nos dava alguma coisa, era sinal de que o interesse era sério. Lembro-me de uma vizinha minha que se casou com um rapaz porque ele lhe deu um dedal de prata. Durante semanas ninguém a calou com a história do dedal de prata. E lá casaram, para mal dela, que ele tinha maus vinhos e batia-lhe… fez-lhe a vida num inferno. Saiu-lhe caro, o dedal. Também… Qualquer rapaz são passava por jeitoso. Desde que não tivesse defeitos físicos demasiado visíveis… A primeira escolha era entre os que ficavam apurados nas sortes, nas inspecções. Conhecíamo-nos todos quase desde que nascêramos, mas nunca havia proximidade suficiente para saber como é que as pessoas realmente eram. Sabíamos que eram mais estarolas ou mais sérios; mais trabalhadores ou mais manaças; mais para os bailes ou mais para as tareias; mais bem apessoados ou com mais terras. Eles todos tinham projectos, quase sempre o mesmo: sair da terra e ganhar dinheiro e voltar e comprar mais terras. Olhando para trás, quase metade dos que diziam isso não o fizeram. Mas, se não o fizeram eles, fizeram-no os filhos. A algumas metia medo, a perspectiva de uma vida maior, de uma vida longe. A outras não, claro: qualquer burro com calças era pretexto para sair dali e ir ver outras coisas. Mas éramos sérias, com uma outra excepção. Mais uma coisa em que não havia grande escolha. Se não fossemos sérias estávamos “perdidas”, “desgraçadas”, “estragadas”. E isto não eram só palavras, era mesmo um desvio no destino. Ou te casavas com um viúvo ou tinhas que sair da terra, sozinha e quase sem nada.
Fez mais uma pausa, ajeitando uma prega da saia com minúcia e seriedade.
- Havia muitas contas a fazer, antes de casar. Tinha que se pensar se ele tinha posses para pôr casa ou se tínhamos que ir para casa dos pais dele; tínhamos que ver a questão das terras que a família dele tinha: se eram muitas, eram uma prisão para ele e para nós; se eram poucas, não ficávamos com nada no fim das partilhas; tínhamos que ver se tinha irmãos ou irmãs que precisassem de ajuda ou que acabassem por vir viver connosco… Era um exercício exigente e em que muitas vezes se errava. Não havia segunda vez. Não havia possibilidade de “pensar melhor”. Escolhias um e estava escolhido, para o bem e para o mal.
Nova pausa, para recuperar fôlego e pôr as ideias em ordem.
- Tive muita sorte com o teu pai. Muita, muita sorte. Vivíamos perto um do outro, sempre nos demos bem e gostávamos um do outro. Não te consigo dizer se o amava, quando casámos. Era uma palavra que não nos pertencia, não tínhamos direito a ela. Nenhuma de nós foi criada para ser independente. Deixávamos de “ser dos pais” e entregávamo-nos a um marido. Eles davam-nos de comer e tu, felizmente, não consegues ver a força dessa realidade básica, esse laço primário da coabitação. O marido permitia que a mulher subsistisse e a ela cabia-lhe ser orientada, poupada, servil e fértil. Tive muita sorte com o teu pai. Ele já tinha uma vida muita cheia de experiências, muitas más e outras boas, e tinha a cabeça arejada. Tem-me tratado sempre do modo que veio a ser padronizado como o bom tratamento de uma esposa. Mas outras raparigas do meu tempo não tiveram tanta sorte… Pessoas como o teu pai são os criadores da classe média, filha. Gente que não subiu nem desceu a essa condição mas que a criou, que a arrancou com muito esforço e não para ele, não para nós, mas para poder ter filhos que vivessem melhor. Ainda hoje me espanto como se mudou tanto no espaço de uma geração ou duas. Os nossos pais sacrificavam-se para que os filhos pudessem viver; eu o teu pai já nos sacrificámos para que vocês pudessem viver melhor. Hoje em dia, parece-me que os pais querem viver melhor e que os filhos vivam melhor. Já podem pedir para eles. Nós não pudemos. Mas ainda bem que é assim.
Cruzou as mãos no regaço, olhou para ela e disse:
- Tive muita sorte com o teu pai, filha. Passámos por muito; discutimos muito e ele ainda me agarrou com mais violência uma vez ou outra. Houve dias em que o odiei; houve dias em que ele foi a razão para eu viver. Sei que gosto muito dele, mais hoje que no dia em que me casei. E tu, filha? Eu preocupo-me... O Filipe é o terceiro namorado que te vejo este ano…
- Era o que se esperava de mim; era o que toda a gente fazia à minha volta; era a única forma de mudar de vida. Éramos criadas para isso, mas sem sermos preparadas para isso. Aprendi mais sobre a vida a olhar para os animais da nossa criação que em conversa com o meu pai ou a minha mãe. Era o que se esperava: nascias, arrancavas a pouca instrução que estavam dispostos a dar-te, trabalhavas e esperavas que alguém te pedisse em namoro e te falasse em casamento. E pronto. Casavas-te. Podias renascer ou continuar a morrer aos bocadinhos, aprendias o que querias e o que não querias e trabalhavas tanto ou mais do que antes. Sabes o que é mais triste? É que, por negativo que parecesse o cenário depois do casamento, ainda assim era sempre melhor do que antes. Não era o melhor dos tempos para ser filha, fosse qual fosse a família, rica ou pobre. Não havia préstimo para uma mulher em casa que não fosse a matriarca – ou as velhas. Era essa a escolha: ou casavas ou envelhecias depressa.
Ela parou, ajeitou a almofada atrás das costas, reclinou-se melhor no sofá e continuou:
- O namoro, naquela altura, funcionava mais como entrevista profissional. Falávamos, tentávamos perceber com o que contávamos e não podíamos ser demasiado esquisitas. No “meu universo”, quando eu tinha os meus 18 ou 20 anos, havia quê… 30 rapazes casadoiros nas redondezas. E raparigas eram tantas ou mais. Alguns dos rapazes iam para Lisboa e casavam por lá. Ainda hoje me pergunto se alguma das raparigas do meu tempo casou por amor… Amor era palavrinha de cantigas. O mais importante era casar com alguém que tivesse sustento. Gostávamos mais de uns que doutros. Mas sabíamos tão pouco… Qualquer pequena prenda nos parecia uma promessa de felicidade eterna. Sabes que eu me lembro e muito bem de todas as prendas que a minha mãe me deu, até eu casar. Foram as poucas que ela me pôde dar, sempre com muito custo. Se um namoro nos dava alguma coisa, era sinal de que o interesse era sério. Lembro-me de uma vizinha minha que se casou com um rapaz porque ele lhe deu um dedal de prata. Durante semanas ninguém a calou com a história do dedal de prata. E lá casaram, para mal dela, que ele tinha maus vinhos e batia-lhe… fez-lhe a vida num inferno. Saiu-lhe caro, o dedal. Também… Qualquer rapaz são passava por jeitoso. Desde que não tivesse defeitos físicos demasiado visíveis… A primeira escolha era entre os que ficavam apurados nas sortes, nas inspecções. Conhecíamo-nos todos quase desde que nascêramos, mas nunca havia proximidade suficiente para saber como é que as pessoas realmente eram. Sabíamos que eram mais estarolas ou mais sérios; mais trabalhadores ou mais manaças; mais para os bailes ou mais para as tareias; mais bem apessoados ou com mais terras. Eles todos tinham projectos, quase sempre o mesmo: sair da terra e ganhar dinheiro e voltar e comprar mais terras. Olhando para trás, quase metade dos que diziam isso não o fizeram. Mas, se não o fizeram eles, fizeram-no os filhos. A algumas metia medo, a perspectiva de uma vida maior, de uma vida longe. A outras não, claro: qualquer burro com calças era pretexto para sair dali e ir ver outras coisas. Mas éramos sérias, com uma outra excepção. Mais uma coisa em que não havia grande escolha. Se não fossemos sérias estávamos “perdidas”, “desgraçadas”, “estragadas”. E isto não eram só palavras, era mesmo um desvio no destino. Ou te casavas com um viúvo ou tinhas que sair da terra, sozinha e quase sem nada.
Fez mais uma pausa, ajeitando uma prega da saia com minúcia e seriedade.
- Havia muitas contas a fazer, antes de casar. Tinha que se pensar se ele tinha posses para pôr casa ou se tínhamos que ir para casa dos pais dele; tínhamos que ver a questão das terras que a família dele tinha: se eram muitas, eram uma prisão para ele e para nós; se eram poucas, não ficávamos com nada no fim das partilhas; tínhamos que ver se tinha irmãos ou irmãs que precisassem de ajuda ou que acabassem por vir viver connosco… Era um exercício exigente e em que muitas vezes se errava. Não havia segunda vez. Não havia possibilidade de “pensar melhor”. Escolhias um e estava escolhido, para o bem e para o mal.
Nova pausa, para recuperar fôlego e pôr as ideias em ordem.
- Tive muita sorte com o teu pai. Muita, muita sorte. Vivíamos perto um do outro, sempre nos demos bem e gostávamos um do outro. Não te consigo dizer se o amava, quando casámos. Era uma palavra que não nos pertencia, não tínhamos direito a ela. Nenhuma de nós foi criada para ser independente. Deixávamos de “ser dos pais” e entregávamo-nos a um marido. Eles davam-nos de comer e tu, felizmente, não consegues ver a força dessa realidade básica, esse laço primário da coabitação. O marido permitia que a mulher subsistisse e a ela cabia-lhe ser orientada, poupada, servil e fértil. Tive muita sorte com o teu pai. Ele já tinha uma vida muita cheia de experiências, muitas más e outras boas, e tinha a cabeça arejada. Tem-me tratado sempre do modo que veio a ser padronizado como o bom tratamento de uma esposa. Mas outras raparigas do meu tempo não tiveram tanta sorte… Pessoas como o teu pai são os criadores da classe média, filha. Gente que não subiu nem desceu a essa condição mas que a criou, que a arrancou com muito esforço e não para ele, não para nós, mas para poder ter filhos que vivessem melhor. Ainda hoje me espanto como se mudou tanto no espaço de uma geração ou duas. Os nossos pais sacrificavam-se para que os filhos pudessem viver; eu o teu pai já nos sacrificámos para que vocês pudessem viver melhor. Hoje em dia, parece-me que os pais querem viver melhor e que os filhos vivam melhor. Já podem pedir para eles. Nós não pudemos. Mas ainda bem que é assim.
Cruzou as mãos no regaço, olhou para ela e disse:
- Tive muita sorte com o teu pai, filha. Passámos por muito; discutimos muito e ele ainda me agarrou com mais violência uma vez ou outra. Houve dias em que o odiei; houve dias em que ele foi a razão para eu viver. Sei que gosto muito dele, mais hoje que no dia em que me casei. E tu, filha? Eu preocupo-me... O Filipe é o terceiro namorado que te vejo este ano…
sexta-feira, fevereiro 10, 2006 |
Isto que vêem aqui em cima é uma representação gráfica do Profeta Maomé. Nem fui eu que a desenhei, mas decidi que era esta a imagem do Profeta.
E agora?
Por mim, podem começar a fazer manifestações à porta deste belogue, que a mim não me interessa nada.
Se quiserem atacar as embaixadas blóguicas que temos espalhadas pelo Mundo, façam o favor de fazê-lo.
Mas façam-no depressa e com uma reacção violenta, está bem? Ah, e não se esqueçam de banir os produtos do blogger, só porque sim.
Obrigado pela vossa atenção.
E agora?
Por mim, podem começar a fazer manifestações à porta deste belogue, que a mim não me interessa nada.
Se quiserem atacar as embaixadas blóguicas que temos espalhadas pelo Mundo, façam o favor de fazê-lo.
Mas façam-no depressa e com uma reacção violenta, está bem? Ah, e não se esqueçam de banir os produtos do blogger, só porque sim.
Obrigado pela vossa atenção.
quinta-feira, fevereiro 09, 2006 |
O FAX
“A Scarlett Johanson é fantástica, deliciosa, sensual e linda de morrer” – pensou Aurélio Seborreia – mas o Jonathan Rhys Meyers é que não lhe saía da cabeça. Aquele olhar um bocadinho insinuante e algo triste, o meio-sorriso de quem só diz a metade do que lhe vai no coração. Esta pequenina obsessão incomodava-o, mas tentou relevar, tratando das facturas que tinha de processar ainda antes do almoço. Pensando bem, já tinha sentido aquilo antes com homens, que reconhecia no íntimo – pronto –eram mesmo bonitos, o Johnny Depp, por exemplo e mais alguns outros. “Mas pôrra, não podia ser – nah – eu cá gosto é de gajas boas”. Havia umas que o tiravam do sério: a Juliette Binoche, a Juliette Lewis, e - ah – aquela outra, fabulosa, a …isso, Ellen Barkin. Se bem que as mulheres demasiado “mulheres” nas formas e no trato tinham algo de intimidatório, de excessivamente dominador. Mamas muito grandes e ancas largas não gostava lá muito. Preferias mais ameninadas, com um ar doce e adolescente. Rabos bem feitinhos são fundamentais. Lá no escritório, os colegas, eram mais pelo estilo “gaja grande e boazôna”. Ele dizia que sim, meio entaramelado e desviando o olhar, que gostava, mas a Bárbara Guimarães não lhe dizia absolutamente nada. “Demasiado cavalona para o meu gosto”. O tique-taque das máquinas de escrever eléctricas, as campainhas dos telefones e as galhofas ocasionais dos colegas distraiam-no e não se conseguia concentrar, incomodado pelo persistente pensamento de que achara um homem bonito. A máquina do fax começou a zumbir e um fax de uma única página caiu no tabuleiro. –“ Oh, Aurélio, tens aqui um fax para ti. Toma.” – disse um colega que passava com uma chávena de café e uns papeis. Aurélio começou a ler. As mãos suaram frio. Rezava o fax:
“Caro Senhor
Aurélio Seborreia
Vem a Comissão de Aviso à Bichas Distraídas (CABD) informá-lo daquilo que já há muito sabe mas não tem coragem de assumir, nem para si próprio. O senhor já tem 40 anos e está na altura de sair do armário. Sabemos efectivamente que até deu umas voltas com umas gajas, mas no íntimo isso nunca o satisfez plenamente. Ora pense bem. Você é um rapaz sensível e educado. Tem gostos culturais requintados: ópera, ballet, exposições de design contemporâneo, teatro independente, arquitectura de interiores, etc. Sente solidariedade pelas causas das minorias sexuais; os seus amigos sempre gozaram consigo por algum gesto mais exuberante, não foi? Sente um arrepio na espinha quando ouve a Casta Diva cantada pela Callas, não é? E gosta de flores. Pense nos cartazes do Freddy Mercury que tinha no seu quarto de adolescente e nos filmes do Conan o Bárbaro que tanto apreciava. Não sentia o Arelho a apertar com o Schwartznneger? E o convívio no balneário com os colegas nas aulas de educação física, que tanto apreciava. Especialmente o cheiro a suor que recorda com alguma saudade. As mulheres mandonas, com mamas grandes incomodam-no não é? É um rapaz muito agarrado á mãe, se bem que ela o oprime um bocadinho. É muito dominadora. E os seu pai um gajo um pouco apagado que sempre se esteve nas tintas para si. Desculpe a franqueza mas é de facto assim. Na brincadeira com os colegas estão sempre a chamar maricas uns aos outros e fá-lo amiúde para frizar bem a sua masculinidade e para que não eles não tenham dúvidas, não é? – Que o senhor efectivamente tem e muitas! Sente um tremendo vazio no recto que precisa preencher. Não nos vai dizer que não costuma esgalhar umas á conta do Tom Cruise, pois não?
Pois, caro senhor, é nosso dever informá-lo que, sem qualquer margem para dúvidas o senhor é um grandessíssimo PANELEIRO.
Deixe-se de ambiguidades e assuma que já tem idade para isso. Eu sei que admira o Papa Bento XVI e que é um católico sincero e ferveroso e que isso lhe causa um transtorno íntimo. Mas o que tem de ser tem muita força. Abra o corpo ao espaço! Frequente meios intelectuais e artísticos! Comente sem pudor os bícepes do Brad Pitt! Vá ao ginásio fazer uns aparelhos! Pratique step e hidroginástica! Passe pelo Trump´s! Vá ao cabeleireiro e compre os discos todos do Rufus Wainright! Faça um ADOCH (alargamemto do cú na Holanda)! Inteire-se dos estilistas de moda portugueses contemporâneos! Compre uma casa no Bairro Alto e vá á padaria ter cavaqueiras com os empregados do Stacha! Sinta o frémito arcaico da sensação de preenchimento anal, o prazer da transgressão e o regresso à volúpia infantil da retenção anal! Isso não custa nada, é como cagar mas ao contrário! Vai ver que a vida lhe corre melhor. Pode ser até que arranje um emprego cultural…
Senhor Seborreia, esperamos que esteja ciente da sua nova condição de bicha desvairada. Vai ver que nem a sua ex-mulher nem os seus filhos vão estranhar que rape a cabeça, se vista sempre de preto e ande com umas calças de ganga muito justinhas nos tomates e curtas nos tornozelos. Mesmo com essa idade.
P.S. Evite a vaselina mentolada.
Com os melhores cumpimentos.
Pela CABD.”
Aurélio dobrou o fax e foi ao quiosque comprar a Spartacus.
FIM
quarta-feira, fevereiro 08, 2006 |
As produções Vareta Funda saúdam a comunidade imigrante portuguesa e levam à cena uma revista talhada para a itinerância, moldada pela saudade e pela lonjura, enformada pela ânsia de regresso, balizada pelas memórias distorcidas próprias de quem se ausentou. Coisa de estilo e tradição, ainda que eivada de modernidade. Vamos a casa. Fazemos casamentos e baptizados. Não há lugarejo suficientemente indigno para que não possa acolher o novo sucesso…
…Ó Chupista!, Queres Revista?!
Quadro I – As Vizinhas do Bairro pequeno e pobre
Cenário: pode ser um qualquer que já tenha servido para isto. Devem haver às dúzias pelo Parque Mayer fora…
Entram duas vizinhas, uma pela esquerda alta e outra pela direita alta, para uma espécie de pátio, carregando alguidares com roupa. Há sempre pátios e estendais, nestes quadros, ainda que se vejam cada vez menos em Lisboa. Mas isto é Revista! Isto é Sonho! Isto é a Ivone!, o Parque Mayer!, o Henrique Viana!… esquece. Entrem as vizinhas que o público está à espera e pagou bilhete.
- ‘Tão?
- Tá tudo bom?
- Yep.
- Pois é…
(Estendem a roupa de costas voltadas. Uma delas tira um chocolate do bolso.)
- Queres uma beca?
- Pode ser…
- Tens o de 40 ou de 60 gigas?
- O iPod?
- Claro.
- Comprei o de 60. Uso-o como disco para os cartões da máquina digital.
- Fixe. Ando a falar ao gajo há uma data de tempo em comprarmos o de 60 mas ele não se resolve.
- O de 40 é porreiro…
- E compraste capa?
- Bem! É muita gira, em camurça!
- Boa!…
- É mesmo gira…
- Gostas do chocolate?
- Ya! É muita bom!
- Eu gosto mais deste semi-amargo que do de leite.
- Eu também. O de leite é muito doce.
- E é mais mole.
- Pois é… parece que fica sempre mais mole.
- E o trabalho?
- Ehn… é sempre a mesma merda, já se sabe como é.
- Eu digo o mesmo. Ontem ‘tava mesmo com a cabeça feita em água. Telefonei ao meu marido para comer uns congelados quaisquer ao jantar e eu fui para o cinema.
- Fixe. O que é que viste?
- Era uma estopada qualquer, americana. Se queres que te diga, adormeci antes do meio e só acordei quando acenderam as luzes. ‘Tava mesmo desfeita.
(Ouvem-se barulhos que indicam a chegada de uma terceira vizinha.)
- Vem aí alguém.
- Foda-se. Nunca se pode estar à vontade…
(Entra a terceira vizinha, pela esquerda baixa, igualmente com um alguidar de roupa. Tem a voz da Noémia Costa. E a cara da Noémia Costa. E a expressão corporal da Noémia Costa. Só não tem que ser, necessária e preferencialmente, a Noémia Costa.)
- (olhando para o público) Olha-me que lindo par de jarras!… (esperam-se risos e palmas, pela entrada de alguém tão parecido com a Noémia Costa) Olá! Então? Estão boazinhas, as minhas amigas?
(Qualquer uma das duas anteriores passa agora a ser tratada por vizinha 1, para maior comodidade narrativa. A outra é a vizinha 1b. A que se parece com a Noémia Costa passa a ser “A que se parece com a Noémia Costa”, ou, para poupar os dedos, AQSPCANC)
Vizinha 1: - Olha, olha… Cantas bem mas não m’alegras, ó rouxinol!…
Vizinha 1b: - Rouxinol?! Uma passarona destas?! Pfff…
AQSPCANC: - Estendam a roupinha, meninas; estendam a roupinha que a roupa lavada cheira melhor que a mééé… (para ser dito num guincho estrangulado, a repetir até à exaustão. Este é daqueles “crowd pleasers” garantidos: o palavrão subentendido. Quer dizer, pelo menos era, nos anos 50. Porque é que não havia de ser agora?) … mé,,, mé… mescla de parvoíces que vos sai da boca!
Vizinha 1b: - Ó filha!… Já tu, se tivesses mais cuidadinho com o que te entra na boca, não andavas p’raí tão cheia de herpes!…
AQSPCANC: - Ouve lá!… (atirando com o alguidar ao chão) Ó minha… Ó sua… Sonsa! Tu não me puxes pela língua!
Vizinha 1: - E p’ra quê?! Ainda ontem o Sousa da carpintaria me dizia que não era preciso puxar por ela para tu lhe dares bom uso…
AQSPCANC: - Ai as duas flores!… Ai as duas santinhas!… E antes de eu chegar, estavam a falar mal de quem?
Vizinha 1b: - Ó flausina!, tás-te a ver ao espelho?! P’ra tua informação, môr, estávamos a falar de iPods!
AQSPCANC: - iPods! Ai podes, podes! Ai não que não podes! Podes e é com as consoantes todas! (fazer o gesto largo de um “F” para o público. Esta é demolidora, hein? A piadinha ordinário-tecnológica…)
Vizinha 1: - Tu cala-te, mulher, tu cala-te que os teus lençóis já viram mais vergonhas que um sargento nas inspecções!…
AQSPCANC: - Ó suas renomadíssimas sujas!, eu bem vejo o correrio de homens para dentro e fora das vossas casas! Nem toda a frota da Carris chegava para os transportar!
Vizinha 1b: - (com ar intrigado) Espera lá! Como é que é isso?!…
AQSPCANC: - Ai não sabes?! Ai a donzela não sabe?! Pois eu digo-te: se apontasses os nomes todos, o teu caderninho chamava-se Páginas Amarelas!…
Vizinha 1b: - Ó minha estúpida, conta lá isso como deve ser… Homens a entrar e sair de minha casa? Mas se eu trabalho todo o dia… e o meu marido é que está em casa, de baixa…
AQSPCANC: - (com ar sério) Porra… olha que há alguns que não têm nada ar de fisioterapeutas…
Vizinha 1: - Bolas… Não me digas que o teu Roberto…
AQSPCANC: - Eh pá, eu não fazia ideia que o teu marido estava em casa, pá… Desculpa lá… Se calhar não devia ter dito nada, mas sabes como é que é… isto é revista…
Vizinha 1b: - Não, não… Fizeste bem… (chega-se à boca de cena, vira um alguidar ao contrário, senta-se e come chocolate)
Vizinha 1: - Não fiques assim…
AQSPCANC: - Pois… Vais ver que fui eu que me enganei. Se calhar eram só amigos dele… colegas do trabalho…
Vizinha 1b: - Não, não… eu já… eu ss… eu já sabia, acho eu…
(Levanta-se. com a boca suja de chocolate. As luzes diminuem e ela fica sob o follow spot. Canta.)
Querias ver a parada gay in loco
E fazias campanha pelo Bloco
E eu, coitada, vivia tão ceguinha
A pensar que era intolerância minha
Os requintes que davas à cozinha
Os olhares ao marido da vizinha
E eu tão parva, a não ver o que bem via
E que a culpa era daquilo que eu fazia
Roberto,
Não penses lá que és tão esperto
Agora eu sei o que procuras
Quando sais de casa às escuras…
Roberto,
Agora que está descoberto
Não penses mais que me endrominas
Sei que não gostas de meninas
O teu gosto por roupa bem justinha
Os meneios da anca e da mãozinha
E eu gostava de ti por seres artista
Com trabalho de free-lance em vitrinista
As madeixas, a base e o hidratante
O batom e o creme esfoliante
E eu feliz por ter marido com estilo
Que só comia saladinha como um grilo
Roberto, - vá, palminhas!
Não penses lá que és tão esperto
Querias abrir uma boutique
Chamada “Belle Dominique”…
Roberto, - todos!
Agora que foste coberto
Eras o meu amor de Outono
Mas afinal és um fanchono
Os boiões e tubos de vaselina
Os arranjos nos fatinhos da menina
E eu por ti tinha tão grande ternura
E gabava-te o jeitinho para a costura
Roberto
Só depois disto é que eu desperto
Até o toque do telefone
Era a canção do Elton Jóne
Roberto – vá lá, os homens também pode cantar!
Nem que tu penes no deserto
Não quero mais teu apelido
Qu’inda por cima é Margarido
Roberto,
Agora eu sei que estás aberto
Eras o meu doce capricho
Mas afinaaaaaaaaaaal…
És um rabicho!
(Acendem-se todas as luzes de palco e o cenário sobe, mostrando o interior despido, descarnado, cru, confuso do teatro. Entra o encenador, com uns papéis na mão – por uma questão de estatuto, uma pessoa com responsabilidades deve andar com papéis na mão, seja ou não funcionário público.)
Encenador: - Boa noite. Obrigado. Isto pode parecer-vos uma interrupção mas é muito mais do que isso. Isto é a nossa forma de demonstrarmos respeito pelo público, eximindo-o à acefalia dominante nas nossas artes populares. As senhoras e senhores sabem perfeitamente porque estão aqui: porque há muito mais subtexto e conteúdo na Revista do que normalmente é reconhecido. Não falamos só da ordinarice encapuçada ou da piadola política de esguelha, não. É isso que vamos agora tentar mostrar com a vossa ajuda e com a ajuda das nossas maravilhosas actrizes. (as actrizes tiram a caracterização e chegam-se à boca de cena; o encenador continua). Quando comecei a escrever o “Ó Chupista!, Queres Revista?” estava animado desta convicção de que a Revista à portuguesa é, acima de tudo, uma consagração da Mulher. Esta vertente do teatro de entretenimento enquanto documento social não tem sido suficientemente explorada, no meu entender. É preciso esmiuçar, é preciso decompor cada quadro palavra a palavra de forma a conseguirmos uma exegese que dignifique o espectáculo e enriqueça o espectador. Mas deixem-me dar voz às actrizes, a essas mulheres duplamente mulheres que encarnam estas sábias figuras.
AQSPCANC: - Obrigado. O meu nome é Fernanda Lapa e é uma honra participar neste espectáculo enquanto “Aquela que se parece com a Noémia Costa”. Suponho que estão habituados a ver-me como um nome incontornável da representação e encenação dramática de alta qualidade, pelo que, para mim, o “Ó Chupista!” foi um desafio redobrado, tanto pela dificuldade de fazer revista como pelo conceito de mulher que me é dado encarnar. Quando era nova e garbosa, fiz muitas vezes de “mulher objecto”, mas esta é a primeira vez que represento a “mulher abjecta”, a mulher despida de qualidades e atributos outros que não a benção básica de ser mulher. Abençoada e maldita, musa e puta, mãe e velhaca, mulher e o seu ortónimo negativo!
Encenador: - Se calhar já chega, Fernanda…
AQSPCANC: - Mulher!, mulher como Florbela ou Natália, Hélia ou Fiama!; mulher criadora e mulher Nero, que se compraz na destruição; Salomé clamando pela cabeça do desejado!; Maria, Virgem e Messalina!; mulher ventre; mulher sangue!; mulher exangue!; mulher despida, de seios flácidos e pescoço de peru!; mulher outrora fértil a quem se acabou o adubo!; mulher purgada da purgueira!; mulher mesquinha e maior!… MULHER!!!… mulher poema, mulher árvore e mulher fruto!; mulher plácida e revoltosa!; Maria da Fonte!; Rainha Santa!; mulher ardente e recatada, mulh…
(por esta altura o espectáculo costuma ser interrompido, transformando-se numa sessão de declamação de poemas de Maria Teresa Horta, ditos por Fernanda Lapa).
…Ó Chupista!, Queres Revista?!
Quadro I – As Vizinhas do Bairro pequeno e pobre
Cenário: pode ser um qualquer que já tenha servido para isto. Devem haver às dúzias pelo Parque Mayer fora…
Entram duas vizinhas, uma pela esquerda alta e outra pela direita alta, para uma espécie de pátio, carregando alguidares com roupa. Há sempre pátios e estendais, nestes quadros, ainda que se vejam cada vez menos em Lisboa. Mas isto é Revista! Isto é Sonho! Isto é a Ivone!, o Parque Mayer!, o Henrique Viana!… esquece. Entrem as vizinhas que o público está à espera e pagou bilhete.
- ‘Tão?
- Tá tudo bom?
- Yep.
- Pois é…
(Estendem a roupa de costas voltadas. Uma delas tira um chocolate do bolso.)
- Queres uma beca?
- Pode ser…
- Tens o de 40 ou de 60 gigas?
- O iPod?
- Claro.
- Comprei o de 60. Uso-o como disco para os cartões da máquina digital.
- Fixe. Ando a falar ao gajo há uma data de tempo em comprarmos o de 60 mas ele não se resolve.
- O de 40 é porreiro…
- E compraste capa?
- Bem! É muita gira, em camurça!
- Boa!…
- É mesmo gira…
- Gostas do chocolate?
- Ya! É muita bom!
- Eu gosto mais deste semi-amargo que do de leite.
- Eu também. O de leite é muito doce.
- E é mais mole.
- Pois é… parece que fica sempre mais mole.
- E o trabalho?
- Ehn… é sempre a mesma merda, já se sabe como é.
- Eu digo o mesmo. Ontem ‘tava mesmo com a cabeça feita em água. Telefonei ao meu marido para comer uns congelados quaisquer ao jantar e eu fui para o cinema.
- Fixe. O que é que viste?
- Era uma estopada qualquer, americana. Se queres que te diga, adormeci antes do meio e só acordei quando acenderam as luzes. ‘Tava mesmo desfeita.
(Ouvem-se barulhos que indicam a chegada de uma terceira vizinha.)
- Vem aí alguém.
- Foda-se. Nunca se pode estar à vontade…
(Entra a terceira vizinha, pela esquerda baixa, igualmente com um alguidar de roupa. Tem a voz da Noémia Costa. E a cara da Noémia Costa. E a expressão corporal da Noémia Costa. Só não tem que ser, necessária e preferencialmente, a Noémia Costa.)
- (olhando para o público) Olha-me que lindo par de jarras!… (esperam-se risos e palmas, pela entrada de alguém tão parecido com a Noémia Costa) Olá! Então? Estão boazinhas, as minhas amigas?
(Qualquer uma das duas anteriores passa agora a ser tratada por vizinha 1, para maior comodidade narrativa. A outra é a vizinha 1b. A que se parece com a Noémia Costa passa a ser “A que se parece com a Noémia Costa”, ou, para poupar os dedos, AQSPCANC)
Vizinha 1: - Olha, olha… Cantas bem mas não m’alegras, ó rouxinol!…
Vizinha 1b: - Rouxinol?! Uma passarona destas?! Pfff…
AQSPCANC: - Estendam a roupinha, meninas; estendam a roupinha que a roupa lavada cheira melhor que a mééé… (para ser dito num guincho estrangulado, a repetir até à exaustão. Este é daqueles “crowd pleasers” garantidos: o palavrão subentendido. Quer dizer, pelo menos era, nos anos 50. Porque é que não havia de ser agora?) … mé,,, mé… mescla de parvoíces que vos sai da boca!
Vizinha 1b: - Ó filha!… Já tu, se tivesses mais cuidadinho com o que te entra na boca, não andavas p’raí tão cheia de herpes!…
AQSPCANC: - Ouve lá!… (atirando com o alguidar ao chão) Ó minha… Ó sua… Sonsa! Tu não me puxes pela língua!
Vizinha 1: - E p’ra quê?! Ainda ontem o Sousa da carpintaria me dizia que não era preciso puxar por ela para tu lhe dares bom uso…
AQSPCANC: - Ai as duas flores!… Ai as duas santinhas!… E antes de eu chegar, estavam a falar mal de quem?
Vizinha 1b: - Ó flausina!, tás-te a ver ao espelho?! P’ra tua informação, môr, estávamos a falar de iPods!
AQSPCANC: - iPods! Ai podes, podes! Ai não que não podes! Podes e é com as consoantes todas! (fazer o gesto largo de um “F” para o público. Esta é demolidora, hein? A piadinha ordinário-tecnológica…)
Vizinha 1: - Tu cala-te, mulher, tu cala-te que os teus lençóis já viram mais vergonhas que um sargento nas inspecções!…
AQSPCANC: - Ó suas renomadíssimas sujas!, eu bem vejo o correrio de homens para dentro e fora das vossas casas! Nem toda a frota da Carris chegava para os transportar!
Vizinha 1b: - (com ar intrigado) Espera lá! Como é que é isso?!…
AQSPCANC: - Ai não sabes?! Ai a donzela não sabe?! Pois eu digo-te: se apontasses os nomes todos, o teu caderninho chamava-se Páginas Amarelas!…
Vizinha 1b: - Ó minha estúpida, conta lá isso como deve ser… Homens a entrar e sair de minha casa? Mas se eu trabalho todo o dia… e o meu marido é que está em casa, de baixa…
AQSPCANC: - (com ar sério) Porra… olha que há alguns que não têm nada ar de fisioterapeutas…
Vizinha 1: - Bolas… Não me digas que o teu Roberto…
AQSPCANC: - Eh pá, eu não fazia ideia que o teu marido estava em casa, pá… Desculpa lá… Se calhar não devia ter dito nada, mas sabes como é que é… isto é revista…
Vizinha 1b: - Não, não… Fizeste bem… (chega-se à boca de cena, vira um alguidar ao contrário, senta-se e come chocolate)
Vizinha 1: - Não fiques assim…
AQSPCANC: - Pois… Vais ver que fui eu que me enganei. Se calhar eram só amigos dele… colegas do trabalho…
Vizinha 1b: - Não, não… eu já… eu ss… eu já sabia, acho eu…
(Levanta-se. com a boca suja de chocolate. As luzes diminuem e ela fica sob o follow spot. Canta.)
Querias ver a parada gay in loco
E fazias campanha pelo Bloco
E eu, coitada, vivia tão ceguinha
A pensar que era intolerância minha
Os requintes que davas à cozinha
Os olhares ao marido da vizinha
E eu tão parva, a não ver o que bem via
E que a culpa era daquilo que eu fazia
Roberto,
Não penses lá que és tão esperto
Agora eu sei o que procuras
Quando sais de casa às escuras…
Roberto,
Agora que está descoberto
Não penses mais que me endrominas
Sei que não gostas de meninas
O teu gosto por roupa bem justinha
Os meneios da anca e da mãozinha
E eu gostava de ti por seres artista
Com trabalho de free-lance em vitrinista
As madeixas, a base e o hidratante
O batom e o creme esfoliante
E eu feliz por ter marido com estilo
Que só comia saladinha como um grilo
Roberto, - vá, palminhas!
Não penses lá que és tão esperto
Querias abrir uma boutique
Chamada “Belle Dominique”…
Roberto, - todos!
Agora que foste coberto
Eras o meu amor de Outono
Mas afinal és um fanchono
Os boiões e tubos de vaselina
Os arranjos nos fatinhos da menina
E eu por ti tinha tão grande ternura
E gabava-te o jeitinho para a costura
Roberto
Só depois disto é que eu desperto
Até o toque do telefone
Era a canção do Elton Jóne
Roberto – vá lá, os homens também pode cantar!
Nem que tu penes no deserto
Não quero mais teu apelido
Qu’inda por cima é Margarido
Roberto,
Agora eu sei que estás aberto
Eras o meu doce capricho
Mas afinaaaaaaaaaaal…
És um rabicho!
(Acendem-se todas as luzes de palco e o cenário sobe, mostrando o interior despido, descarnado, cru, confuso do teatro. Entra o encenador, com uns papéis na mão – por uma questão de estatuto, uma pessoa com responsabilidades deve andar com papéis na mão, seja ou não funcionário público.)
Encenador: - Boa noite. Obrigado. Isto pode parecer-vos uma interrupção mas é muito mais do que isso. Isto é a nossa forma de demonstrarmos respeito pelo público, eximindo-o à acefalia dominante nas nossas artes populares. As senhoras e senhores sabem perfeitamente porque estão aqui: porque há muito mais subtexto e conteúdo na Revista do que normalmente é reconhecido. Não falamos só da ordinarice encapuçada ou da piadola política de esguelha, não. É isso que vamos agora tentar mostrar com a vossa ajuda e com a ajuda das nossas maravilhosas actrizes. (as actrizes tiram a caracterização e chegam-se à boca de cena; o encenador continua). Quando comecei a escrever o “Ó Chupista!, Queres Revista?” estava animado desta convicção de que a Revista à portuguesa é, acima de tudo, uma consagração da Mulher. Esta vertente do teatro de entretenimento enquanto documento social não tem sido suficientemente explorada, no meu entender. É preciso esmiuçar, é preciso decompor cada quadro palavra a palavra de forma a conseguirmos uma exegese que dignifique o espectáculo e enriqueça o espectador. Mas deixem-me dar voz às actrizes, a essas mulheres duplamente mulheres que encarnam estas sábias figuras.
AQSPCANC: - Obrigado. O meu nome é Fernanda Lapa e é uma honra participar neste espectáculo enquanto “Aquela que se parece com a Noémia Costa”. Suponho que estão habituados a ver-me como um nome incontornável da representação e encenação dramática de alta qualidade, pelo que, para mim, o “Ó Chupista!” foi um desafio redobrado, tanto pela dificuldade de fazer revista como pelo conceito de mulher que me é dado encarnar. Quando era nova e garbosa, fiz muitas vezes de “mulher objecto”, mas esta é a primeira vez que represento a “mulher abjecta”, a mulher despida de qualidades e atributos outros que não a benção básica de ser mulher. Abençoada e maldita, musa e puta, mãe e velhaca, mulher e o seu ortónimo negativo!
Encenador: - Se calhar já chega, Fernanda…
AQSPCANC: - Mulher!, mulher como Florbela ou Natália, Hélia ou Fiama!; mulher criadora e mulher Nero, que se compraz na destruição; Salomé clamando pela cabeça do desejado!; Maria, Virgem e Messalina!; mulher ventre; mulher sangue!; mulher exangue!; mulher despida, de seios flácidos e pescoço de peru!; mulher outrora fértil a quem se acabou o adubo!; mulher purgada da purgueira!; mulher mesquinha e maior!… MULHER!!!… mulher poema, mulher árvore e mulher fruto!; mulher plácida e revoltosa!; Maria da Fonte!; Rainha Santa!; mulher ardente e recatada, mulh…
(por esta altura o espectáculo costuma ser interrompido, transformando-se numa sessão de declamação de poemas de Maria Teresa Horta, ditos por Fernanda Lapa).
terça-feira, fevereiro 07, 2006 |
A Hard Day's Night
Não me venham dizer que não se trabalha neste país, que eu não aceito isso. Aceito que me digam que, tal como o dinheiro, o trabalho anda mal distribuído.
Razão tinham os Beatles, mais precisamente o John e o Paul, quando escreveram e interpretaram esta letra. Não a tinham toda, mas tinham-na.
Atentai nesta parte:
It's been a hard day's night
And I've been working like a dog
It's been a hard day's night
I should be sleeping like a log
But when I get home to you
I find the things that you do
Will make me feel alright.
You know I work all day
To get you money to buy you things
And it's worth it just to hear you say
You're going to give me ev'rything
So why on earth should I moan'
Cause when I get you alone
You know I feel ok
Pois. Ultimamente tenho andado neste espírito.
Não me venham dizer que não se trabalha neste país, que eu não aceito isso. Aceito que me digam que, tal como o dinheiro, o trabalho anda mal distribuído.
Razão tinham os Beatles, mais precisamente o John e o Paul, quando escreveram e interpretaram esta letra. Não a tinham toda, mas tinham-na.
Atentai nesta parte:
It's been a hard day's night
And I've been working like a dog
It's been a hard day's night
I should be sleeping like a log
But when I get home to you
I find the things that you do
Will make me feel alright.
You know I work all day
To get you money to buy you things
And it's worth it just to hear you say
You're going to give me ev'rything
So why on earth should I moan'
Cause when I get you alone
You know I feel ok
Pois. Ultimamente tenho andado neste espírito.
quarta-feira, fevereiro 01, 2006 |
As grandes questões da Humanidade dissecadas em 2 páginas - vol.2
- Das duas, uma: ou és muito mais ou és muito menos do que pareces. – disse-me ela, com o ar determinado de quem vê na afirmação uma verdade absoluta e perfeitamente clara. Chamem-me ceguinho, ou jumento com cabeçada mas, que não via ali clareza nenhuma, ai isso não via.
- E então?… Qual das duas?
Eu bem sei que não foi grande resposta. Que é que querem… fico embatucado quando falam para mim com “dois pontos”. As coisas que as pessoas dizem a seguir a esse sinal de pontuação – um dos que melhor se traduz na oralidade, por estranho que pareça – têm quase sempre um peso grande, o ar inamovível de um bloco de betão. É que não falha. “É isto e isto e isto e deixa-me que te diga: catchapum!” . O que quer que anteceda os dois pontos, é certo e sabido que se lhe segue um qualquer catchapum, equivalente ao som de uma bigorna a cair de um quinto andar. Azar o meu, calhava-me estar exactamente no sítio onde esta iria cair.
- Sabes perfeitamente o que eu quero dizer. Estou a tentar ter uma conversa séria e não penses que é fácil para mim. – se a vissem enquanto dizia isto… era a cara do Condestável quando viu que a táctica do quadrado tramaria os espanhóis em Aljubarrota! Se eu fosse menos burro, já teria aprendido com exemplos anteriores o que são os poderes extraordinários destas técnicas. Estraga-se um momento harmonioso com uma frase mais ou menos críptica sobre o outro, que implique uma resposta ou comentário que sabemos de antemão que o outro não tem como produzir, caindo assim no ridículo e dando azo a que se esmiucem as falhas de comunicação, a ausência de seriedade, a aversão ao compromisso assumido, até que tudo desemboque no “afinal, onde é que nós est…
- Onde é que nós estamos, afinal? – ou isso, a inversão frásica também colhe o mesmo efeito.
- Eu não quero fugir a responder-te mas já reparaste que as pessoas ainda não encontraram as expressões adequadas para falarem do que querem realmente falar?… “Onde é que nós estamos” é suposto remeter-nos para quê? Uma localização axial da nossa relação num gráfico da intensidade de sentimentos? E perguntas isso por quê? Por não o saberes tu ou porque me cabe a mim determinar? Podias antes perguntar “o que é que nós som…
- Porque é que não dizes logo?
- Desculpa?
- Porque é que não dizes logo o que queres dizer? – e isto, meus amigos, isto nunca estará ao meu alcance… É uma questão de segundos e a mudança processa-se sem que elas precisem de aplicar maquilhagem. Num momento são Cassius Clay a encostar-nos às cordas (mas em bonito), no momento seguinte são Jesus Cristo perguntando ao Pai porque o abandonou.
- Se calhar porque estou à procura do que tu queres que eu te diga.
- Isso! É isso mesmo! Agora a culpa é minha, eu é que estrago tudo porque quero uma resposta, porque quero perceber, olha: porque te quero perceber!, entendes? Mas, claro!: isso não se pode exigir, isso não é conversável, nem existem os termos adequados, “porque é que não guardas essas conversas para os anos da menopausa?”…
Ela é boa nisto, reconheço. Como eu invejo esta capacidade mefistofélica de ir repescar as minhas frases infelizes, sejam de ontem ou de há muitos anos. Triste mania a minha, de apagar as frases da memória para guardar só o seu sentido. Frases destas faziam-me falta, devia tê-las em carteira… A ver se a apanho a dizer alguma coisa sobre calvície ou problemas de próstata. E a ver se não me esqueço. Mas, para já, cá vai disto:
- Mas de onde é que vem isso tudo? Tu é que pareces ter qualquer coisa para dizer e queres por força que seja eu a dizê-la sem que perceba o que é. – é a minha pálida tentativa de lhe enfiar o rabo de pescada na boca. Ou o rabo é grande ou a pescada é curta. Seja como for, não resulta.
- E escondes-te, e escondes-te… Estes anos todos… Dentro do teu casulinho de inteligência, de bom humor, de despreocupação. Nada é grave. Nada tem que ser discutido, nem gritado, nem chorado. Muito menos nós, claro! Que raio de tema é esse, “nós”? E foges, e foges… Se te pergunto onde é que nós estamos é porque quero saber para onde é que tu foges… mas se tu nem isso consegues ver… é como eu digo: ou és muito mais ou és muito menos do que pareces.
Está visto que de peixes percebe ela, fechando a pescadinha com a mesma leveza com que fechou a carteira depois de pagar os cafés. Paga sempre, quando está irritada. Antes isso. Se é para voltar ao início, eu volto com denodo:
- Isto, francamente, parece-me uma questão de dioptrias. Eu “não consigo ver”; tu vês o que eu sou, o que eu pareço ser, o que eu mostro, o que eu escondo, o que eu quero dizer, o que eu evito dizer e, muito provavelmente, até o estado da minha flora intestinal num simples golpe de vista. É tudo absoluto, é tudo claro, é tudo evidente – mas eu “não vejo”; porque não quero, claro, tenho a retina preguiçosa ou descolada ou riscada, se calhar um glaucoma!, e confesso-te que queria ver, caramba!, como eu gostava de ver!, com essa mesma clareza tudo aquilo que tu vês de mim e de nós. E de ti? Vês? Queres conversar mas excluis-te enquanto objecto. Falemos de mim e de nós, mas não de ti, que não abdicas do papel de Santo Ofício para não teres que te pôr as mesmas perguntas e, assim como assim, já compraste a lenha e as acendalhas, não é?…
- Bravo! Bravo! Que espírito! Que graça!… “Vê como eu pego no assunto e o desmonto e remonto e fica tudo tão bonito e tão engraçado e tão resolvido, menos as pontas soltas que há do teu lado!”. É isso, não é?…
- É.
Felizmente, o miúdo entra a correr, corado e transpirado e alegre.
- Pai, mãe, podemos ir um bocadinho ao Parque Infantil?
É ela que responde, dizendo que sim. Levantamo-nos, saímos do café, o miúdo corre e ela dá-me o braço. Sabemos os dois que está tudo bem e que estamos onde ambos escolhemos estar, no “lugar” que construímos como soubemos e pudemos e que, se calhar, não é melhor nem pior que os outros, dois pontos: é apenas nosso. Ou nosso, apenas – a inversão frásica colhe o mesmo efeito. Catchapum.