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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


quarta-feira, fevereiro 08, 2006

As produções Vareta Funda saúdam a comunidade imigrante portuguesa e levam à cena uma revista talhada para a itinerância, moldada pela saudade e pela lonjura, enformada pela ânsia de regresso, balizada pelas memórias distorcidas próprias de quem se ausentou. Coisa de estilo e tradição, ainda que eivada de modernidade. Vamos a casa. Fazemos casamentos e baptizados. Não há lugarejo suficientemente indigno para que não possa acolher o novo sucesso…

…Ó Chupista!, Queres Revista?!

Quadro I – As Vizinhas do Bairro pequeno e pobre

Cenário: pode ser um qualquer que já tenha servido para isto. Devem haver às dúzias pelo Parque Mayer fora…

Entram duas vizinhas, uma pela esquerda alta e outra pela direita alta, para uma espécie de pátio, carregando alguidares com roupa. Há sempre pátios e estendais, nestes quadros, ainda que se vejam cada vez menos em Lisboa. Mas isto é Revista! Isto é Sonho! Isto é a Ivone!, o Parque Mayer!, o Henrique Viana!… esquece. Entrem as vizinhas que o público está à espera e pagou bilhete.

- ‘Tão?
- Tá tudo bom?
- Yep.
- Pois é…
(Estendem a roupa de costas voltadas. Uma delas tira um chocolate do bolso.)
- Queres uma beca?
- Pode ser…
- Tens o de 40 ou de 60 gigas?
- O iPod?
- Claro.
- Comprei o de 60. Uso-o como disco para os cartões da máquina digital.
- Fixe. Ando a falar ao gajo há uma data de tempo em comprarmos o de 60 mas ele não se resolve.
- O de 40 é porreiro…
- E compraste capa?
- Bem! É muita gira, em camurça!
- Boa!…
- É mesmo gira…
- Gostas do chocolate?
- Ya! É muita bom!
- Eu gosto mais deste semi-amargo que do de leite.
- Eu também. O de leite é muito doce.
- E é mais mole.
- Pois é… parece que fica sempre mais mole.
- E o trabalho?
- Ehn… é sempre a mesma merda, já se sabe como é.
- Eu digo o mesmo. Ontem ‘tava mesmo com a cabeça feita em água. Telefonei ao meu marido para comer uns congelados quaisquer ao jantar e eu fui para o cinema.
- Fixe. O que é que viste?
- Era uma estopada qualquer, americana. Se queres que te diga, adormeci antes do meio e só acordei quando acenderam as luzes. ‘Tava mesmo desfeita.
(Ouvem-se barulhos que indicam a chegada de uma terceira vizinha.)
- Vem aí alguém.
- Foda-se. Nunca se pode estar à vontade…
(Entra a terceira vizinha, pela esquerda baixa, igualmente com um alguidar de roupa. Tem a voz da Noémia Costa. E a cara da Noémia Costa. E a expressão corporal da Noémia Costa. Só não tem que ser, necessária e preferencialmente, a Noémia Costa.)
- (olhando para o público) Olha-me que lindo par de jarras!… (esperam-se risos e palmas, pela entrada de alguém tão parecido com a Noémia Costa) Olá! Então? Estão boazinhas, as minhas amigas?
(Qualquer uma das duas anteriores passa agora a ser tratada por vizinha 1, para maior comodidade narrativa. A outra é a vizinha 1b. A que se parece com a Noémia Costa passa a ser “A que se parece com a Noémia Costa”, ou, para poupar os dedos, AQSPCANC)
Vizinha 1: - Olha, olha… Cantas bem mas não m’alegras, ó rouxinol!…
Vizinha 1b: - Rouxinol?! Uma passarona destas?! Pfff…
AQSPCANC: - Estendam a roupinha, meninas; estendam a roupinha que a roupa lavada cheira melhor que a mééé… (para ser dito num guincho estrangulado, a repetir até à exaustão. Este é daqueles “crowd pleasers” garantidos: o palavrão subentendido. Quer dizer, pelo menos era, nos anos 50. Porque é que não havia de ser agora?) … mé,,, mé… mescla de parvoíces que vos sai da boca!
Vizinha 1b: - Ó filha!… Já tu, se tivesses mais cuidadinho com o que te entra na boca, não andavas p’raí tão cheia de herpes!…
AQSPCANC: - Ouve lá!… (atirando com o alguidar ao chão) Ó minha… Ó sua… Sonsa! Tu não me puxes pela língua!
Vizinha 1: - E p’ra quê?! Ainda ontem o Sousa da carpintaria me dizia que não era preciso puxar por ela para tu lhe dares bom uso…
AQSPCANC: - Ai as duas flores!… Ai as duas santinhas!… E antes de eu chegar, estavam a falar mal de quem?
Vizinha 1b: - Ó flausina!, tás-te a ver ao espelho?! P’ra tua informação, môr, estávamos a falar de iPods!
AQSPCANC: - iPods! Ai podes, podes! Ai não que não podes! Podes e é com as consoantes todas! (fazer o gesto largo de um “F” para o público. Esta é demolidora, hein? A piadinha ordinário-tecnológica…)
Vizinha 1: - Tu cala-te, mulher, tu cala-te que os teus lençóis já viram mais vergonhas que um sargento nas inspecções!…
AQSPCANC: - Ó suas renomadíssimas sujas!, eu bem vejo o correrio de homens para dentro e fora das vossas casas! Nem toda a frota da Carris chegava para os transportar!
Vizinha 1b: - (com ar intrigado) Espera lá! Como é que é isso?!…
AQSPCANC: - Ai não sabes?! Ai a donzela não sabe?! Pois eu digo-te: se apontasses os nomes todos, o teu caderninho chamava-se Páginas Amarelas!…
Vizinha 1b: - Ó minha estúpida, conta lá isso como deve ser… Homens a entrar e sair de minha casa? Mas se eu trabalho todo o dia… e o meu marido é que está em casa, de baixa…
AQSPCANC: - (com ar sério) Porra… olha que há alguns que não têm nada ar de fisioterapeutas…
Vizinha 1: - Bolas… Não me digas que o teu Roberto…
AQSPCANC: - Eh pá, eu não fazia ideia que o teu marido estava em casa, pá… Desculpa lá… Se calhar não devia ter dito nada, mas sabes como é que é… isto é revista…
Vizinha 1b: - Não, não… Fizeste bem… (chega-se à boca de cena, vira um alguidar ao contrário, senta-se e come chocolate)
Vizinha 1: - Não fiques assim…
AQSPCANC: - Pois… Vais ver que fui eu que me enganei. Se calhar eram só amigos dele… colegas do trabalho…
Vizinha 1b: - Não, não… eu já… eu ss… eu já sabia, acho eu…
(Levanta-se. com a boca suja de chocolate. As luzes diminuem e ela fica sob o follow spot. Canta.)

Querias ver a parada gay in loco
E fazias campanha pelo Bloco
E eu, coitada, vivia tão ceguinha
A pensar que era intolerância minha

Os requintes que davas à cozinha
Os olhares ao marido da vizinha
E eu tão parva, a não ver o que bem via
E que a culpa era daquilo que eu fazia

Roberto,
Não penses lá que és tão esperto
Agora eu sei o que procuras
Quando sais de casa às escuras…

Roberto,
Agora que está descoberto
Não penses mais que me endrominas
Sei que não gostas de meninas

O teu gosto por roupa bem justinha
Os meneios da anca e da mãozinha
E eu gostava de ti por seres artista
Com trabalho de free-lance em vitrinista

As madeixas, a base e o hidratante
O batom e o creme esfoliante
E eu feliz por ter marido com estilo
Que só comia saladinha como um grilo

Roberto, - vá, palminhas!
Não penses lá que és tão esperto
Querias abrir uma boutique
Chamada “Belle Dominique”…

Roberto, - todos!
Agora que foste coberto
Eras o meu amor de Outono
Mas afinal és um fanchono

Os boiões e tubos de vaselina
Os arranjos nos fatinhos da menina
E eu por ti tinha tão grande ternura
E gabava-te o jeitinho para a costura

Roberto
Só depois disto é que eu desperto
Até o toque do telefone
Era a canção do Elton Jóne

Roberto – vá lá, os homens também pode cantar!
Nem que tu penes no deserto
Não quero mais teu apelido
Qu’inda por cima é Margarido

Roberto,
Agora eu sei que estás aberto
Eras o meu doce capricho
Mas afinaaaaaaaaaaal…
És um rabicho!

(Acendem-se todas as luzes de palco e o cenário sobe, mostrando o interior despido, descarnado, cru, confuso do teatro. Entra o encenador, com uns papéis na mão – por uma questão de estatuto, uma pessoa com responsabilidades deve andar com papéis na mão, seja ou não funcionário público.)

Encenador: - Boa noite. Obrigado. Isto pode parecer-vos uma interrupção mas é muito mais do que isso. Isto é a nossa forma de demonstrarmos respeito pelo público, eximindo-o à acefalia dominante nas nossas artes populares. As senhoras e senhores sabem perfeitamente porque estão aqui: porque há muito mais subtexto e conteúdo na Revista do que normalmente é reconhecido. Não falamos só da ordinarice encapuçada ou da piadola política de esguelha, não. É isso que vamos agora tentar mostrar com a vossa ajuda e com a ajuda das nossas maravilhosas actrizes. (as actrizes tiram a caracterização e chegam-se à boca de cena; o encenador continua). Quando comecei a escrever o “Ó Chupista!, Queres Revista?” estava animado desta convicção de que a Revista à portuguesa é, acima de tudo, uma consagração da Mulher. Esta vertente do teatro de entretenimento enquanto documento social não tem sido suficientemente explorada, no meu entender. É preciso esmiuçar, é preciso decompor cada quadro palavra a palavra de forma a conseguirmos uma exegese que dignifique o espectáculo e enriqueça o espectador. Mas deixem-me dar voz às actrizes, a essas mulheres duplamente mulheres que encarnam estas sábias figuras.
AQSPCANC: - Obrigado. O meu nome é Fernanda Lapa e é uma honra participar neste espectáculo enquanto “Aquela que se parece com a Noémia Costa”. Suponho que estão habituados a ver-me como um nome incontornável da representação e encenação dramática de alta qualidade, pelo que, para mim, o “Ó Chupista!” foi um desafio redobrado, tanto pela dificuldade de fazer revista como pelo conceito de mulher que me é dado encarnar. Quando era nova e garbosa, fiz muitas vezes de “mulher objecto”, mas esta é a primeira vez que represento a “mulher abjecta”, a mulher despida de qualidades e atributos outros que não a benção básica de ser mulher. Abençoada e maldita, musa e puta, mãe e velhaca, mulher e o seu ortónimo negativo!
Encenador: - Se calhar já chega, Fernanda…
AQSPCANC: - Mulher!, mulher como Florbela ou Natália, Hélia ou Fiama!; mulher criadora e mulher Nero, que se compraz na destruição; Salomé clamando pela cabeça do desejado!; Maria, Virgem e Messalina!; mulher ventre; mulher sangue!; mulher exangue!; mulher despida, de seios flácidos e pescoço de peru!; mulher outrora fértil a quem se acabou o adubo!; mulher purgada da purgueira!; mulher mesquinha e maior!… MULHER!!!… mulher poema, mulher árvore e mulher fruto!; mulher plácida e revoltosa!; Maria da Fonte!; Rainha Santa!; mulher ardente e recatada, mulh…

(por esta altura o espectáculo costuma ser interrompido, transformando-se numa sessão de declamação de poemas de Maria Teresa Horta, ditos por Fernanda Lapa).

Arrotos do Porco:

tava a escrever-te um mail em que te mando a pior banda do mundo!!!!!!!!

agora vou ler-te
:)



AQSPCANC: - Obrigado. O meu nome é Fernanda Lapa e é uma honra participar neste espectáculo enquanto “Aquela que se parece com a Noémia Costa”. Suponho que estão habituados a ver-me como um nome incontornável da representação e encenação dramática de alta qualidade, pelo que, para mim, o “Ó Chupista!” foi um desafio redobrado, tanto pela dificuldade de fazer revista como pelo conceito de mulher que me é dado encarnar. Quando era nova e garbosa, fiz muitas vezes de “mulher objecto”, mas esta é a primeira vez que represento a “mulher abjecta”, a mulher despida de qualidades e atributos outros que não a benção básica de ser mulher. Abençoada e maldita, musa e puta, mãe e velhaca, mulher e o seu ortónimo negativo!
Encenador: - Se calhar já chega, Fernanda…
AQSPCANC: - Mulher!, mulher como Florbela ou Natália, Hélia ou Fiama!; mulher criadora e mulher Nero, que se compraz na destruição; Salomé clamando pela cabeça do desejado!; Maria, Virgem e Messalina!; mulher ventre; mulher sangue!; mulher exangue!; mulher despida, de seios flácidos e pescoço de peru!; mulher outrora fértil a quem se acabou o adubo!; mulher purgada da purgueira!; mulher mesquinha e maior!… MULHER!!!… mulher poema, mulher árvore e mulher fruto!; mulher plácida e revoltosa!; Maria da Fonte!; Rainha Santa!; mulher ardente e recatada, mulh…

(por esta altura o espectáculo costuma ser interrompido, transformando-se numa sessão de declamação de poemas de Maria Teresa Horta, ditos por Fernanda Lapa).




@;)*



Vareta, mene, és genial.

Nada mais a acrescentar.

E aos costumes disse «nada».



Isto sim: É TEATRO!
Qual Fernanda Lapa, qual São José Lapa, qual família Lapa inteira!
É preciso é ter lata!
Já agora, isto reflecte o verdadeiro triangulo conflitual, numa perspectiva de análise dramatúrgica, na perspectiva idiossincrática de um Bertolt Brecht, de um Kantor, de um Maiakovski. É soberbo a ligação entre as personagens, a atmosfera que se cria, a clivagem dramatúrgica, melhor, dramática, quando se descobre que é o marido que está lá em casa a receber aqueles homens. Basta entender a expressão da Vizinha, para se compreender o tormento psicológico que atravessa, o pormenor de vir à boca de cena, sentar-se sob o alguidar, num gesto de assombro, de lucidez perturbante, num devendar dos conflitos latentes. O alguidar, numa perspectiva semiológica, é o objecto que faz parte daquela pessoa, que, ao ser esvaziado de conteúdo (seja água, roupa, etc) perde a sua função simbólica original, para se transmutar em algo novo, anunciador de mudança, que é o que ocorre no palco, na trama, naquele momento. A boca de cena, é uma indicação cénica propositada, uma didascália para os entendidos, do dramaturgo, no sentido de aproximação e contacto mais emocional, logo mais pungente, com o público. Há assim, uma envolvência entre espectadores e actores, que faz com que a cena seja vivida, vivenciada nos seus matizes mais profundos, simbólicos, de comunhão, de quebra da quarta parede. Ali, somos todos e só um. Um grande texto, para um grande teatro! A não perder!





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