quarta-feira, fevereiro 01, 2006 |
As grandes questões da Humanidade dissecadas em 2 páginas - vol.2
- Das duas, uma: ou és muito mais ou és muito menos do que pareces. – disse-me ela, com o ar determinado de quem vê na afirmação uma verdade absoluta e perfeitamente clara. Chamem-me ceguinho, ou jumento com cabeçada mas, que não via ali clareza nenhuma, ai isso não via.
- E então?… Qual das duas?
Eu bem sei que não foi grande resposta. Que é que querem… fico embatucado quando falam para mim com “dois pontos”. As coisas que as pessoas dizem a seguir a esse sinal de pontuação – um dos que melhor se traduz na oralidade, por estranho que pareça – têm quase sempre um peso grande, o ar inamovível de um bloco de betão. É que não falha. “É isto e isto e isto e deixa-me que te diga: catchapum!” . O que quer que anteceda os dois pontos, é certo e sabido que se lhe segue um qualquer catchapum, equivalente ao som de uma bigorna a cair de um quinto andar. Azar o meu, calhava-me estar exactamente no sítio onde esta iria cair.
- Sabes perfeitamente o que eu quero dizer. Estou a tentar ter uma conversa séria e não penses que é fácil para mim. – se a vissem enquanto dizia isto… era a cara do Condestável quando viu que a táctica do quadrado tramaria os espanhóis em Aljubarrota! Se eu fosse menos burro, já teria aprendido com exemplos anteriores o que são os poderes extraordinários destas técnicas. Estraga-se um momento harmonioso com uma frase mais ou menos críptica sobre o outro, que implique uma resposta ou comentário que sabemos de antemão que o outro não tem como produzir, caindo assim no ridículo e dando azo a que se esmiucem as falhas de comunicação, a ausência de seriedade, a aversão ao compromisso assumido, até que tudo desemboque no “afinal, onde é que nós est…
- Onde é que nós estamos, afinal? – ou isso, a inversão frásica também colhe o mesmo efeito.
- Eu não quero fugir a responder-te mas já reparaste que as pessoas ainda não encontraram as expressões adequadas para falarem do que querem realmente falar?… “Onde é que nós estamos” é suposto remeter-nos para quê? Uma localização axial da nossa relação num gráfico da intensidade de sentimentos? E perguntas isso por quê? Por não o saberes tu ou porque me cabe a mim determinar? Podias antes perguntar “o que é que nós som…
- Porque é que não dizes logo?
- Desculpa?
- Porque é que não dizes logo o que queres dizer? – e isto, meus amigos, isto nunca estará ao meu alcance… É uma questão de segundos e a mudança processa-se sem que elas precisem de aplicar maquilhagem. Num momento são Cassius Clay a encostar-nos às cordas (mas em bonito), no momento seguinte são Jesus Cristo perguntando ao Pai porque o abandonou.
- Se calhar porque estou à procura do que tu queres que eu te diga.
- Isso! É isso mesmo! Agora a culpa é minha, eu é que estrago tudo porque quero uma resposta, porque quero perceber, olha: porque te quero perceber!, entendes? Mas, claro!: isso não se pode exigir, isso não é conversável, nem existem os termos adequados, “porque é que não guardas essas conversas para os anos da menopausa?”…
Ela é boa nisto, reconheço. Como eu invejo esta capacidade mefistofélica de ir repescar as minhas frases infelizes, sejam de ontem ou de há muitos anos. Triste mania a minha, de apagar as frases da memória para guardar só o seu sentido. Frases destas faziam-me falta, devia tê-las em carteira… A ver se a apanho a dizer alguma coisa sobre calvície ou problemas de próstata. E a ver se não me esqueço. Mas, para já, cá vai disto:
- Mas de onde é que vem isso tudo? Tu é que pareces ter qualquer coisa para dizer e queres por força que seja eu a dizê-la sem que perceba o que é. – é a minha pálida tentativa de lhe enfiar o rabo de pescada na boca. Ou o rabo é grande ou a pescada é curta. Seja como for, não resulta.
- E escondes-te, e escondes-te… Estes anos todos… Dentro do teu casulinho de inteligência, de bom humor, de despreocupação. Nada é grave. Nada tem que ser discutido, nem gritado, nem chorado. Muito menos nós, claro! Que raio de tema é esse, “nós”? E foges, e foges… Se te pergunto onde é que nós estamos é porque quero saber para onde é que tu foges… mas se tu nem isso consegues ver… é como eu digo: ou és muito mais ou és muito menos do que pareces.
Está visto que de peixes percebe ela, fechando a pescadinha com a mesma leveza com que fechou a carteira depois de pagar os cafés. Paga sempre, quando está irritada. Antes isso. Se é para voltar ao início, eu volto com denodo:
- Isto, francamente, parece-me uma questão de dioptrias. Eu “não consigo ver”; tu vês o que eu sou, o que eu pareço ser, o que eu mostro, o que eu escondo, o que eu quero dizer, o que eu evito dizer e, muito provavelmente, até o estado da minha flora intestinal num simples golpe de vista. É tudo absoluto, é tudo claro, é tudo evidente – mas eu “não vejo”; porque não quero, claro, tenho a retina preguiçosa ou descolada ou riscada, se calhar um glaucoma!, e confesso-te que queria ver, caramba!, como eu gostava de ver!, com essa mesma clareza tudo aquilo que tu vês de mim e de nós. E de ti? Vês? Queres conversar mas excluis-te enquanto objecto. Falemos de mim e de nós, mas não de ti, que não abdicas do papel de Santo Ofício para não teres que te pôr as mesmas perguntas e, assim como assim, já compraste a lenha e as acendalhas, não é?…
- Bravo! Bravo! Que espírito! Que graça!… “Vê como eu pego no assunto e o desmonto e remonto e fica tudo tão bonito e tão engraçado e tão resolvido, menos as pontas soltas que há do teu lado!”. É isso, não é?…
- É.
Felizmente, o miúdo entra a correr, corado e transpirado e alegre.
- Pai, mãe, podemos ir um bocadinho ao Parque Infantil?
É ela que responde, dizendo que sim. Levantamo-nos, saímos do café, o miúdo corre e ela dá-me o braço. Sabemos os dois que está tudo bem e que estamos onde ambos escolhemos estar, no “lugar” que construímos como soubemos e pudemos e que, se calhar, não é melhor nem pior que os outros, dois pontos: é apenas nosso. Ou nosso, apenas – a inversão frásica colhe o mesmo efeito. Catchapum.
Arrotos do Porco:
- E escondes-te, e escondes-te… Estes anos todos… Dentro do teu casulinho de inteligência, de bom humor, de despreocupação. Nada é grave. Nada tem que ser discutido, nem gritado, nem chorado. Muito menos nós, claro! Que raio de tema é esse, “nós”? E foges, e foges… Se te pergunto onde é que nós estamos é porque quero saber para onde é que tu foges… tenho saudades nossas! ;* |