quarta-feira, fevereiro 15, 2006 |
Isso são gases, senhora…
Gajos como eu pensam mais em entendimentos que em polémicas. Todavia, não me apetece passar por alforreca sem opinião quando toda a gente parece ter tomado posição na polémica da moda. Vai daí, dei por mim a perguntar-me: “Vareta, pá, que pensas tu, rapaz de reconhecida modéstia e honradez, capaz de lampejos de uma sagacidade ancestral que te corre nas veias por capricho do destino, rapaz de tino e muito caldinho de galinha sorvido com bom apetite, rapaz pouco opinativo quando não sabes do que falas, que pensas tu, insigne Vareta, desta questão dos cartuns dinamarqueses?” E isto, meus caros, se há pessoa por quem tenho respeito é por mim! Não me ia deixar ficar sem resposta. Vai daí, dei por mim a pensar: “Ai ele é isso? Então não digas que vais daqui!”. E não disse.
Parece que em Setembro de 2005, uns mariolas de um jornal dinamarquês – terra de valores notáveis como o Elkjaer Larssen ou a saudosa Wighfield que nos encantou com o “Saturday Night” – decidiram publicar uns cartuns (gosto à brava desta grafia! e já temos mais uma palavra no nosso léxico oficial que rima com Antunes!) sobre o Islão, o fundamentalismo, o terrorismo e toda a barda de conceitos que se vão confundindo alegremente. Claro, o assunto teve a repercussão esperada de qualquer coisa que se publique num jornal dinamarquês: nenhuma. Quem é que lê jornais dinamarqueses? E para quê? E como, se não se tem uma especialização em doenças da garganta? Adiante. Ao que consta, viviam, por esses dias, no país da Pequena Sereia uns quantos muçulmanos para quem os cartuns eram indigestos. Gente de boa memória, daquelas a quem não convém ficar a dever dinheiro, voltaram â Muçulmânia ou Muçulmarca ou lá como se chama a terra deles (há quem avente Mértola…) a fazer queixinha dos dinamarqueses tinhosos. “Ai, ai, ai, que nos desgraçam a memória do Profeta, aqueles malandros… Vejam bem esta pouca vergonha! E, para mais, as mulheres deles são peludas por baixo e nas axilas e avantajadas de seio e de anca e loiras como as areias do deserto em que o Profeta caminhou e gozavam connosco depois disto, dizendo ‘ó amor, deixa cá ver a tua bombinha’ ou ‘anda, faz de mim a primeira das tuas setenta virgens’ e outras coisas que não agradariam ao Profeta”. Como o sotaque deles já era cerradamente dinamarquês, os chefes da Muçulmólia tiveram dificuldade em perceber tudo mas, ao que consta, os escritórios daqueles chefes têm um ambiente entre o Parlamento de Taiwan e um acampamento cigano: se algum se queixa há logo gritos e tiros para o ar e gente de sapatos (ou alpercatas, dependendo das tendências da estação) em punho, silvando de fúria como um cisne atiçado e dizendo ‘quem é que fez mal ao meu menino?!’, ‘calhordas!’, ‘isto não fica assim!’ ou ‘já se bebia um chá de menta’. Bom. Assim como em Alfama, quando há caldo entornado, aparecem centos de pessoas “a ver o que é”, também em Muçulélgica (ou em Castro Verde, a bem da verdade…) as notícias se espalham depressa e, de mão dada com elas, a indignação, ramo em cuja perícia os muçulmanos rivalizam com os portugueses (sim, estou a generalizar desbragadamente, e depois?).
Gajos como eu pensam mais em entendimentos que em polémicas. Todavia, não me apetece passar por alforreca sem opinião quando toda a gente parece ter tomado posição na polémica da moda. Vai daí, dei por mim a perguntar-me: “Vareta, pá, que pensas tu, rapaz de reconhecida modéstia e honradez, capaz de lampejos de uma sagacidade ancestral que te corre nas veias por capricho do destino, rapaz de tino e muito caldinho de galinha sorvido com bom apetite, rapaz pouco opinativo quando não sabes do que falas, que pensas tu, insigne Vareta, desta questão dos cartuns dinamarqueses?” E isto, meus caros, se há pessoa por quem tenho respeito é por mim! Não me ia deixar ficar sem resposta. Vai daí, dei por mim a pensar: “Ai ele é isso? Então não digas que vais daqui!”. E não disse.
Parece que em Setembro de 2005, uns mariolas de um jornal dinamarquês – terra de valores notáveis como o Elkjaer Larssen ou a saudosa Wighfield que nos encantou com o “Saturday Night” – decidiram publicar uns cartuns (gosto à brava desta grafia! e já temos mais uma palavra no nosso léxico oficial que rima com Antunes!) sobre o Islão, o fundamentalismo, o terrorismo e toda a barda de conceitos que se vão confundindo alegremente. Claro, o assunto teve a repercussão esperada de qualquer coisa que se publique num jornal dinamarquês: nenhuma. Quem é que lê jornais dinamarqueses? E para quê? E como, se não se tem uma especialização em doenças da garganta? Adiante. Ao que consta, viviam, por esses dias, no país da Pequena Sereia uns quantos muçulmanos para quem os cartuns eram indigestos. Gente de boa memória, daquelas a quem não convém ficar a dever dinheiro, voltaram â Muçulmânia ou Muçulmarca ou lá como se chama a terra deles (há quem avente Mértola…) a fazer queixinha dos dinamarqueses tinhosos. “Ai, ai, ai, que nos desgraçam a memória do Profeta, aqueles malandros… Vejam bem esta pouca vergonha! E, para mais, as mulheres deles são peludas por baixo e nas axilas e avantajadas de seio e de anca e loiras como as areias do deserto em que o Profeta caminhou e gozavam connosco depois disto, dizendo ‘ó amor, deixa cá ver a tua bombinha’ ou ‘anda, faz de mim a primeira das tuas setenta virgens’ e outras coisas que não agradariam ao Profeta”. Como o sotaque deles já era cerradamente dinamarquês, os chefes da Muçulmólia tiveram dificuldade em perceber tudo mas, ao que consta, os escritórios daqueles chefes têm um ambiente entre o Parlamento de Taiwan e um acampamento cigano: se algum se queixa há logo gritos e tiros para o ar e gente de sapatos (ou alpercatas, dependendo das tendências da estação) em punho, silvando de fúria como um cisne atiçado e dizendo ‘quem é que fez mal ao meu menino?!’, ‘calhordas!’, ‘isto não fica assim!’ ou ‘já se bebia um chá de menta’. Bom. Assim como em Alfama, quando há caldo entornado, aparecem centos de pessoas “a ver o que é”, também em Muçulélgica (ou em Castro Verde, a bem da verdade…) as notícias se espalham depressa e, de mão dada com elas, a indignação, ramo em cuja perícia os muçulmanos rivalizam com os portugueses (sim, estou a generalizar desbragadamente, e depois?).
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Esta é a história, tal como me a contaram e me afiançaram ser verdade. Daí para a frente, já se sabe: um campeonato sem regras de “ninguém faz mais merda do que eu!”.
Já se disse de tudo e é muito fácil dizer, num caso como estes, em que a zona cinzenta é tão grande que, por grosso que seja o disparate, tem sempre uma franja de verdade – qualquer que seja a sua orientação. Talvez seja mais fácil ir pelo que não se deve dizer:
“Os cartuns foram um abuso da liberdade de expressão”
É a técnica da avestruz. “Ai Jesus, que eles fizeram merda e mais vale esconder a cabeça na areia até passar a borrasca…”. A liberdade de expressão no “Ocidente” é uma realidade de que nos devemos orgulhar e, se não é ainda tão perfeita como seria de desejar, isso deve-se às condicionantes ainda existentes e não a quaisquer excessos (é a mesma liberdade que nos permite representar Bush como primata, Bush como menina, Bush como terrorista, Bush como asno, Bush como tudo, sem que as Embaixadas europeias em Washington se transformem em churrasqueiras). Os cartuns podem ter sido “bons” ou “maus” – e foram, claramente, obras sem grande chama (se fossem realmente engraçados e bem conseguidos já andariam a circular pela internet muito antes da polémica rebentar…). Só se deveria admitir o seu julgamento com base nesses critérios.
A questão da “legalidade da mensagem” é uma questão que releva do ordenamento jurídico dinamarquês e nenhum outro povo se deve arrogar o direito de a pôr em causa. Afinal, os cartuns não foram lançados de avião sobre os países árabes. A questão da “oportunidade da mensagem” é irrelevante: suponho que um jornal dinamarquês não defina a sua linha editorial com base no que possa agradar ou desagradar aos “pontos sensíveis” da geopolítica mundial. A questão do “abuso” faria, porventura, sentido se tivesse sido negado direito de resposta a quem se tivesse considerado ofendido – ou se, considerando a ofensa séria, não lhe fosse possível accionar os mecanismos legais para procurar reparação. Deixem-se de tretas. Foi abuso mas foi o caralho.
“Alguma imprensa europeia solidarizou-se com os dinamarqueses e agora há 14 países que se arriscam a comer por tabela”
E só lhes fazia bem terem o rancho piorado por uns dias! Não me entendam mal: por mim, até a revista Maria podia reproduzir os cartuns (já a Gina ou a Tânia…). O público tinha curiosidade em vê-los e eles eram parte da notícia. Publicá-los, sim senhor. Publicá-los como “gesto de solidariedade”, alto e pára o baile. Solidariedade com quê? Publicá-los na Síria poderia ser “solidariedade”, com algum esforço, mas na Noruega ou em Portugal?… A sério que não percebo. Solidariedade com quê? Solidariedade institucional com a Dinamarca? Não faz sentido, nem caberia à imprensa. Solidariedade com o jornal que iniciou a questão? Porquê? Teve muitas assinaturas canceladas em Damasco? Faliu? Foi proibido? Queimaram a sede? E eu não dei por nada?… Solidariedade com os cartunistas? Menos sentido faz. Garanto-vos que me faz espécie. Se alguém percebeu, agradecia que me explicasse a mais-valia, para os supostos destinatários, de tamanha “solidariedade”. Publicar os cartuns enquanto “gesto”, enquanto “declaração”, foi um seguidismo um bocado acéfalo e foi o comprar de uma “guerrinha tonta”, perfeitamente inócua para a imprensa europeia que agora se compraz porque “esteve do lado certo” (os senhores das Embaixadas que se lixem, que, assim como assim, estão lá longe e são discretos…).
“O Ocidente foi o primeiro agressor, nesta questão”
Sem querer ser repetitivo, Ocidente o caralho! E, de caminho: agressão é ter tesão e não foder! Não houve agressão, até porque o Luisão não é cartunista! Houve um aproveitamento das circunstâncias para mais um exercício de manipulação de massas. E não é “uma coisa dos muçulmanos”, é a mesma histeria colectiva que leva aos linchamentos de aldeia ou a banhos de sangue maiores. Os cartuns não foram agressão; chegar fogo a uma Embaixada ou outra foi uma agressão não institucionalizada, um caso de polícia, mas não uma “declaração de guerra”. No relacionamento entre muçulmanos e os outros “netos de Abraão”, falar em agressões é entrar na questão do ovo e da galinha, acabando sempre por se recuar ao tempo dos “antigos” sem que se vislumbre quem atirou a primeira pedra.
O mais interessante é ver que a actual situação é benéfica para os países islâmicos mais hard-core: Síria e Irão, velhos conhecidos, encontram ali escapes bem vindos para situações menos interessantes do ponto de vista internacional (e, na Autoridade Palestiniana, é risível a tola tentativa da Fatah de ganhar em duas frentes: mostrar aos palestinianos que é capaz de tanta “indignação” como o Hamas e mostrar ao mundo que o Hamas não consegue manter a ordem pública). E a situação é benéfica também para o “Ocidente” mais hard-core: os EUA, antes de mais, que vêem, com gozo indisfarçado, os europeus metidos em assados sem que eles fiquem chamuscados na brincadeira e que assim podem aumentar a pressão em casos como… os do Irão e da Síria.
Como de costume, quem se lixa é o lingueirão, ou seja, os árabes moderados que perdem interna e externamente, e os ocidentais moderados que vão dando exemplos patéticos de “verdade e reconciliação”, a começar pelos próprios dinamarqueses e acabando no nosso Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, que, neste caso, se mostrou teólogo encartado, rei do simplismo, portento de vacuidade e muito contentinho por poder deixar implícito “eu bem avisei que o Iraque era asneira” (foi, mas não é ligação que se faça num caso destes, a menos que se ignore tudo o que se passou desde a morte de Abraão até à 2ª Guerra do Golfo).
“Eu conheço muçulmanos que são bons, logo, os muçulmanos são bons…”
…a droga e o putedo é que dão cabo da vida a alguns, não é? Sim, os muçulmanos são, na sua grande maioria, gente cordata e boa. Como o são as pessoas, em geral, sejam iranianas, americanas ou, até, de Torres Novas; muçulmanas, católicas, jeovás, fressureiras ou com psoríase. São cordatas e boas (digo eu, que sou positivo) até prova em contrário. Neste caso concreto, houve uma mão cheia de muçulmanos que provou não ser boa peça. O odioso fica apenas com esses indivíduos e não com “os muçulmanos”. Tentar centrar a questão (esta questão particular, dos cartuns) na “defesa” dos muçulmanos, “eternas vítimas de causas estruturais que o Ocidente só agrava”, é como confundir o olho do cu com a Exponor. Os muçulmanos não têm que ser defendidos nem explicados porque isto não lhes diz respeito enquanto grupo. Diz respeito a alguns Estados árabes que não querem perceber como é que um Governo não pode fechar um jornal, decapitar o seu director e amputar todos os trabalhadores e familiares; diz respeito a uns loucos que incitam à violência e a outros mais loucos ainda que a põem em prática, enquanto os incitadores jogam uma bisca lambida. Esses devem ser chamados à pedra com firmeza, sem as tibiezas de discurso do Governo dinamarquês, de Kofi Annan ou do Prof. Diogo – as assunções de uma culpa prévia aos incidentes é, a meu ver, conceder que, lá no fundo, até existe uma justificação para a violência de base religiosa, o que me parece intolerável e assustador. Mais a mais, a margem de manobra é pouca, qu’isto do pitróil está fodido. Se a gente chateia aqueles gajos, a OPEP ainda se lembra de subir o preço (ou, pelo menos, de fazer pouco para que ele desça). Então lá se vai tapando o sol com a peneira, a ver se isto acaba depressa.
“Vê-se bem pelo Corão e por outros escritos que o islamismo é uma doença”
Sim, sim, e a Bíblia é uma longa mensagem de amor, não? O que Deus fez a Sodoma e Gomorra é muito bonito e são muito edificantes algumas passagens sobre o tratamento a conferir aos inimigos da fé. Nisso o Prof. Freitas do Amaral tem razão: Abraão e tal, as três religiões monoteístas, são todas parecidas na génese e na predilecção por alguns passatempos menos salubres. Entrar em discussões destas é espúrio e é sinal de que o fundamentalismo e a intolerância (e a ignorância) não estão só do lado de lá.
“Isto ainda vai dar muito que falar”
Não. Não vai. Vai dar muitos posts, muitos artigos, muitos debates – no “Ocidente”, claro. De resto, este caso particular vai morrer, como morrem todos, porque já poucos ou nenhuns têm paciência para telenovelas longas que não se chamem “Ninguém como tu”. Casos destes são gases: fazem barulho, cheiram mal e às vezes deixam selo na roupa interior. Mas passam. O que é mais sério é a merda que fica na tripa – e nisto do Ocidente e do Islão, a obstipação é grande, bem grande, e eu não tenho cabeça para encontrar o laxante necessário. Quanto aos cartuns, se não é “much ado about nothing”, é “much ado about nothing much”.
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E pronto. Com a certeza de me ter respondido, continuei a embocar pão-de-forma, presunto e queijo até serem horas de dormir, sem que outras interrogações íntimas me perturbassem.
Arrotos do Porco:
Eu li a posta toda (e ri-me bastante nalgumas passagens, diga-se). Tendo a concordar que o caso dos cartoons não tem qualquer interesse ou relevância efectiva. O sentimento anti-ocidental no mundo árabe é permanente e rebenta ciclicamente sob qualquer que seja o pretexto. As posturas correntes são todas hipócritas e que oscilam entre a pós-moderna relativista e multiculturalista bacoca "os gajos têm o direito à sua especificidade cultural e como tal tem direito a sentir-se indignados" a defensora do primado dos valores humanistas ocidentais "ai jesus, que a liberdade de expressão é sagrada, a gente não tem culpa que aqueles atrasados não atinjam os nossos valores de respeito democrático universalista". Toda a gente sabe que os ocidentais desprezam efectivamente aquela tropa fandanga e aciganada, que vê como uma civilização irremediavelmente falhada. Mas também sabe que temos que viver com eles. É algo entre o asco e o paternalismo. Algo entre a vontade de os por em ordem recorrendo a umas quantas bombas atómicas e o programa de ajuda humanitário. Na última versão incluem-se as lições de democracia, claro está. Ora puta que pariu a indignação ocidental e a dos muçulmanos. Vão todos para o caralho. Os presidentes do Irão, os Al-Zarkawis, os defensores ocidentais da liberdade de expressão e mais os que acham que há valores intocáveis e ainda os que acham que os devemos por na linha. Puta que pariu a todos. Muito barulho para nada e eu ainda não provei a Super Bock Abadia. (Sabes o que é isto Vareta? É uma mixórdia parecida coma cerveja que agora se começou a vender na Pátria lusa e supostamente é uma antiga receita conventual portuguesa de cerveja (!!!!!!). Claro está que é só cerveja manhosa com caramelo pois nos conventos portugueses fazia-se era bom vinho e mais nada). Bem hajas. |
Eu sei que o caso é sério. Achei brilhante o que disseste e eu subscrevo praticamente tudo mas não pude deixar de me rir que nem uma perdida com algumas passagens. Brilhante. |