quinta-feira, janeiro 24, 2008 |
Pela porta entreaberta cintilava a luz da televisão, enquanto o morrão do cigarro cedia sob o peso, esquecido na mão de Nicholas Ouspenski. No dia anterior tinham-lhe batido à porta dois homens acompanhados de um terceiro, que Nicholas pensou ser apenas uma alucinação ou uma reificação de uma personalidade quasi-humana. Talvez uma mera emanação no limiar da matéria. Um candidato à realidade. Assomava-se por cima do ombro dos outros, escutando-os e sorria vagamente, como que esforçando-se por compreender e apreender. Tinha algo de criança. Nicholas viu-o primeiro como uma sombra, mas depois, de determinado ângulo, vira o ombro e os traços esbatidos de um rosto. Nada disse aos dois homens. Não tinha a certeza de apenas ele perceber aquela entrelinha humana. Um sorriso do gato de Cheschire. Havia "nele", pode-se chamar-lhe assim, algo simultaneamente familiar e inquietante. De repente, Nicholas sentiu um ténue calafrio no estômago. Teria Nemésio, A Entrelinha, denominara-o assim, ficado lá em casa ou voltado com os dois homens? Era irrelevante o que pretendiam. Depois de ver Nemésio, Nicholas já nem ouviu o que queriam. Eram do DSM IV 600.6, vinham ameaçá-lo e até lhe apontaram um revólver á testa. Levaram o disco externo do computador e reviraram gavetas. Gertrude entrou de copo na mão e cigarro aceso. “Hoje sonhei que tinha morrido. Sonhava que estava deitada na posição em que adormeci e quando decidi levantar-me o meu corpo não obedecia e estava inerte. Levantei os braços para fora do cobertor e eles não existiam. Gritei e não saiu som algum”. Nicholas em silêncio atravessou a sala e começou a cruzar a porta para o corredor. O tempo que demorou nesta passagem foram muitas horas, como se o malain genie tivesse, de súbito esticado o Tempo como uma pastilha elástica ou materializado os pesadelos de Zenão ao somar as decrescentes mas infinitas parcelas de espaço que Nicholas teria de percorrer. Nunca atingiu o corredor. Pelo canto do olho, Gertrude observava os seus esforços vãos. Teve tempo para desconfiar que Gertrude era o Diabo e lhe urdira esta estranha trama de encantamentos ridículos. Agora era claro que Nemésio era ele próprio. Ou melhor uma fantasmagórica caricatura de si-próprio. Uma brincadeira óbvia e fútil. Mas o que ele queria era sair dali e voltou para trás. O morrão do cigarro estava agora maior e a televisão só emitia estática. Da sua cadeira, Ouspenski via o corpo já frio de Gertrude sobre a poça de sangue no soalho.
FIM
terça-feira, janeiro 22, 2008 |
- Tens medo de quê?
- De não saber.
- O quê?
- Tudo.
...
- Tens medo de tudo...
...
- De mim. De ti não tenho medo.
...
- Tenho as mãos frias.
- Sopra.
...
- Apetecia-me pescada cozida.
...
- E o que é que te mete medo, em ti?
- Nada... nada de específico. É um medo geral.
- Geral...
- Raramente temos medo dos outros. Temos medo é da ideia de nós que os outros possam guardar. Temos medo do que projectamos. Enquanto mamíferos, somos muito ridículos.
- Falas no plural porque tens medo.
- Se calhar...
...
- Mais um café?
- Sim.
...
- Vês? Não tiveste medo de escolher.
...
- Tive. Há sempre um segundo de pânico, enquanto não sei se quero mais um café ou não, enquanto não sei se tu queres que eu queira mais um café ou não, enquanto não sei se o empregado me quer servir mais um café ou não, enquanto não sei se há alguém à espera de mesa que preferia que nos fôssemos embora.
...
- Olhas para ti de fora. Respeitas-te pouco.
...
- Como se vivesses num deslumbramento com o simples facto de existires e não te arrogasses mais direito nenhum. E mesmo assim tens medo.
- Às vezes.
- Tens o medo. Ele é que só emerge às vezes.
- Agora não tenho medo. Agora sinto-me confortável. Mais confortável e peidava-me...
...
- Há alguma expressão mais ridícula do que “tu dantes não eras assim”?
- Há. “Como é que te sentes?”. Fico sempre com vontade de responder “Sinto-me com as mãos, com o nariz, com a língua, com os olhos, com os ouvidos...”
- E “O que é que tens?”... uma hipoteca, roupas, livros e uma dívida pequena no merceeiro...
- Tensão baixa...
- Um negócio em vista...
- Fome...
- Tesão...
- Uma telefonia...
...
- Uma telefonia é bom. O que é que tu tens? Tenho uma telefonia.
...
- Isto é bom.
- O quê?
- Isto tudo. O que é que há para não gostar nisto tudo?
- Aqueles mosaicos...
...
- Incomodam-te?
- Não... são feios.
- Foram postos ali, com cuidado e profissionalismo, pelas mãos de alguém. Tu gostas de mãos...
- Mas eu não vejo as mãos.
- Mas as mãos estão lá.
- Se estão naquilo que vejo, são feias.
- Não há mãos feias.
- Unhas roídas? Dedos curtos e grossos? Crostas? Escrófulas? Psoríase?...
- As mãos; as mãos são boas... Custa-te assim tanto olhar para elas e ver o conceito?
- Merda debaixo das unhas? Pele gretada? Dedos deformados? Palmas sapudas e transpiradas?...
- Isto é bom. Pronto.
- Seja...
...
...
- Tenho mais apreço pela tua vida que pela minha.
- Tu tens mas é uma grandecíssima telefonia...
quarta-feira, janeiro 16, 2008 |
- à Martita e ao Puto, que sabem tudo ser verdade
Estávamos no nono ano, Manuela; eu com orelhas de abano e tu num lugar à janela numa carteira delapidada, o sol delineando-te o perfil na sala de aula atravancada. Estávamos no nono ano, Manuela; e tu gostavas de brincos de plástico em forma de talhada de melancia. Estávamos no nono ano e um certo rigor monástico, uma certa placidez bovina que dos teus olhos transparecia juntava-se à graça equina do teu nariz oleoso. Pontes, chumbos, um dente podre bem vistoso quando Manuela sorria – usavas saia pelo joelho, botas pelo artelho e o teu namorado tinha um Seat Ibiza vermelho. E eu, eu nem uma pizza te podia pagar na Bela Itália... nem um bolo de bolacha no snack-bar Cristina – existência prístina, espartana, remediadas solas de borracha no meu errar pelas ruas da cidade nabantina. Estávamos no nono ano, Manuela; e a Isabel Martins deu-te “um”. Engano, por certo; inferências ruins – sentada à janela tu bem lhe disseste que trabalharas para o “dois”. Reprovaste; e depois?... Atalharas caminho na matemática escolar; serões nos Brasões e visitas a Tomar era agora o que te esperava... Manicura e estética teórico-prática; mão segura nos cortes de cabelo e na mise de rolos – e o dente podre fincando-se em bolos; amuletos, Sete-Estrelo, sorte prá vida, saúde na pele e no pêlo... Manuela cabeleireira depois do nono ano. E eu? E eu e as orelhas de abano?... Recordo o teu ar ensosso, o teu esgar de permanente azia, teu corpo de menos carne e mais osso e a merda dos brincos-melancia... – quando não eram argolas da Matutano!... Eras boçal e tremenda; crente n’O Amor e uma Vivenda; voz gutural e aos repelões, rainha do Centro Social dos Brasões... Naquele nono ano não tiveste a escola toda... passados quase vinte anos pergunto-me se ainda terás quem te f...
quinta-feira, janeiro 10, 2008 |
Neuärkbitt VS. Aëalgblaadstrogöd
NEUÄRKBITT - 'Ó gorda, desencosta, vá..."
AËALGBLAADSTROGÖD - ' Vá lá, bébé,... isto não custa nada. É como cagar, mas ao contrário. Aqui o Cristiano só quer meter a cabecinha na tua baliza. É um rematezinho de cabeça'.
N - 'Não me apetece. Doi-me a cabeça. Além disso tenho a hemorróida um bocado saída."
A - 'Mas, ó bebé... é só um penaltizinho. Eu prometo que não enterro até aos tomates".
N - Já disse que não. Se insistes, pego nesta navalha de barba e...e...não me faças falar, que já estou a ficar nervosa...".
A - "Vá lá, bebé...deixa aqui o Reinaldinho da floresta de Aaël, fazer um pontapezinho de canto."
(Aëalgblaadstrogöd agarra Neuärkbitt pelo 'strap-on' e com um sorriso malandro, enterra-lhe tudo á bruta, incluíndo os testículos, de supetão, no ânus).
A - 'Grandioso remate de Reinaldo Aëalgblaadstrogöd em direção à baliza do guardião Ricardo Neuärkbitt!'
(Nisto: vvvvzzzzzzzzzzzzzztttttttttttt!!!!.... Neuärkbitt saca da navalha da barba e produz um gesto rápido atrás das suas costas).
N -'Corta Helder Postiga!!!!'
A - (com a voz fininha): -'AARRRRGHHHH....Ai! Aiiiiii! Ai, ai!...Ui, ui...'
FIM
segunda-feira, janeiro 07, 2008 |
LÄARSEN
Neuärkbitt ia apreensivo. Sem olhar para trás, atravessou depressa o musgoso e húmido caminho da Floresta de Aeäl. No seu encalço vinham os paneleiros de Askräasen. Havia que estugar o passo. Enrrolou-se melhor na sua capa de lã de Aardvark. Por baixo da roupa, segurou o amuleto élfico que a Raínha Badh A´lhookä de Konäa Relahsäd lhe tinha oferecido. Ainda ouvia a voz doce e sussurante da Raínha. "- Se passares pela floresta de Aeäl e os paneleiros de Askräasen te perseguirem e o Monstro de Aëalgblaadstrogöd te quiser transformar os miolos no expositor de queijos e enchidos do Minipreço, não deixes. Tu vê lá...". Uma luz opalescente reluziu por baixo da sua termotebe. Ouviu um ruído e olhou em redor. Parecera-lhe ouvir restolhar entre as folhas do Kinkshöften, ou talvez entre as folhas do Ubberältsbietrib. De repente, o monstro Aëalgblaadstrogöd surgiu à sua frente, barrando-lhe o caminho, de boca aberta e empestando o ar em redor com a sua fedente gosma de enxofre. Neuärkbitt estacou, transido de medo. Agarrou o amuleto e proferiu as palavras mágicas -"AARkk!Three quarks, for muster mark!Fuck, fuck, fuck!"
MONSTRO - "f...fuck?"
NEUÄRKBITT - "fuck."
M. - "OK."
N. - "Oh, yeah, fuck".
O monstro sacou de uma colherzinha de esmioçar santolas e começou a tirar pedacinhos do cérebro de Neuärkbitt pelo nariz, que substituiu judiciosamente por queijo chévre e galantine de azeitonas. Quero dizer, o cerebelo, o lobo frontal esquerdo e a área de Broca; porque o resto foi com Limiano barato e abatatado. O corpus calosus foi trocado por uma suculenta morcela de vinho temperada com cominhos. Neuärkbitt ficou muito melhor, pois - num repente vomitou a demonstração da conjectura de Poincarée ganhou a medalha Fields.
FIM