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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


sexta-feira, setembro 28, 2007

Seria do quê, Francesca? Se calhar metias coca nessas narinas como uma maluca, para dar realismo ao espírito “anos 20”. E eras tu que me encantavas ou a Tuppence? Havia qualquer coisa nos teus olhos e havia a tua frivolidade inteligente e eu era um puto como os outros putos e tu eras bonita – tu, Francesca/Tuppence, tu parecias mais bonita que as mulheres que eu via à minha volta. Terá sido culpa tua, minha valente cabra, o eu ter idealizado tantas vezes essa graça e essa segurança que tu emanavas? E era tudo tão simples: havia um puto, uma família, uma sala de estar e uma mulher bonita na televisão. Eu tinha quê... oito anos? Não ia estar aqui a mentir, Francesca: não, não me davas tesão; como nada me “dava” tesão na altura. Eras bonita. Tinhas graça. E eu era um puto. Não quiseste saber de mim, não foi? Apanhaste o Ralph Fiennes e foi um vê se te avias! E agora?! E agora eu vejo o que eras há mais de 20 anos e o que eu era há mais de 20 anos. Tu continuas a parecer bonita e eu continuo a parecer um puto (por dentro; que por fora...). Assim como assim: obrigado, Francesca. Podia ter sido outra galdéria qualquer... ou a Helena Isabel.

quarta-feira, setembro 19, 2007


Vareta estendeu-se no chão em frente ao computador. Apetecia-lhe cofiar o cabelo e podia fazê-lo à vontade - já era de noite, estava em casa e tomaria um duche antes de dormir. Não esperava visitas, não a esta hora, não de surpresa, não no Japão. Se alguém viesse, seria bem vindo - desde que se não importasse de ser recebido em pijama por alguém que cheirava a um dia longo, quente e trabalhoso. Não vale a pena disfarçar: por alguém que cheirava mal. Excepto o cabelo; esse ainda cheirava a fibra ou cera ou o raio que o partisse. "O meu rótulo ainda pode dizer 'sem corantes nem conservantes' apesar de me sentir com formol no cabelo".

Olhara há pouco para o frigorífico. Lá para dentro, entenda-se: ainda não chegara ao ponto de perder o olhar em superfícies brancas esmaltadas. Estava compostinho, o bicho . Era um frigorífico com cara de quem pensava em cozinhar - com uma ou outra solução de recuo. Uma embalagem de atum em sashimi, por exemplo. Haveria de o comer, mais logo. Para já, para já, havia essa decisão de monta: cofiar ou não cofiar o cabelo.

Olhara para o frigorífico porque o abrira para encher um copo com chá gelado. Lembrava-se perfeitamente de que não pensara "apetece-me chá gelado". Lembrava-se perfeitamente de que não pensara. Não o conseguia evitar: sentia-se particularmente agradado sempre que o seu corpo o surpreendia. A menos que fosse uma cólica... Mas não fora, desta vez. Antes uma espécie de apetite inconsciente - e uma certeza rara nas mãos: no frigorífico havia cerveja, sumo de laranja, café em lata, iogurte líquido e chá gelado. Escolhera sem pensar. "Não deveria ser sempre assim?"

Se calhar, não. Não era muito seu hábito mas também lhe acontecia enganar-se. O terreno das escolhas pareceu-lhe lodoso e profundo e decidiu não ir por ali. Estava cansado, afinal - e o cheiro entre o acre e o adocicado de um corpo cansado servia de aviso: "um corpo a cheirar mal ainda se lava, mas uma mente..." Arrepiar caminho mental era coisa que não lhe custava. Conseguia não pensar sem esforço - ou pensar à volta, no que não era peciso, no que já conhecia. Daí a preguiça, provavelmente. Conseguia distrair-se sem "fazer".

A música de Desmond Dekker era preguiçosa também. Combinava bem: rocksteady, early reaggae, um corpo cansado mas satisfeito e em repouso e... chá gelado? Bom... servia. Com isto tudo, ainda não cofiara o cabelo - o que não era bom nem mau, apenas era. Uma noite assim sabia a recompensa - sabor que, em boa verdade, se estendia a toda a sua existência. Em mais um assomo, Vareta apoiou-se no cotovelo esquerdo e escreveu a última frase: era altura de ver se o sashimi sabia ao mesmo.

quinta-feira, setembro 06, 2007


O tufão

Vareta sentou-se à secretária. Apetecia-lhe cofiar o cabelo mas lembrou-se que o tinha besuntado com uma espécie de fibra ou cera ou o raio que o partisse. Então não o cofiou e começou antes a pensar na vidinha. Sentar-se à secretária implicava ficar de costas para a janela, o que não era grande perda: da janela pouco mais se via que o prédio da frente e um céu carrancudo pejadinho de nuvens kamikaze que se desfaziam em bátegas grosseiras e inconvenientes.
Um tufão um bocado fora de época, pensou Vareta, ao mesmo tempo que o escrevia no teclado do seu pouco eficiente Dell. E percebeu, num momento de epifania, que tudo depende de tão pouco: não cofiava o cabelo porque o besuntara; não iria a pé até à estação de metro mais distante, como era sua vontade, porque chovia e ventava. “Condições, contingências, espartilhos... ou o caralho”, pensou de novo, num assomo de boçalidade. Assomos que lhe eram caros, convenhamos. Vocês conhecem-no quase tão bem como eu e se há palavra que lhe assenta é assomo. Era, portanto, um assomado Vareta que se sentava à secretária, de costas para a janela.
Tanta coisa que nos estreita as vontades, martelou Vareta no plástico preto do teclado. Como a vontade de que este texto chegasse a algum lado e o imperativo profissional de escrever outras coisas. Torceu o pescoço para olhar pela janela e lembrou-se dos Duplex Longa: “chuva, vapor e velocidade”. Tanta coisa que encontra lugar no boião de uma quinta-feira – e o nosso ziguezaguear pelo meio delas, atraídos para umas, empurrados por outras.
Vareta sentado à secretária, meio afundado na cadeira, uma manhosa gotícula de suor descendo-lhe pela espinha, calcanhares juntos e pernas entreabertas – também isto tinha um certo ar de fora de época, de situação em que se tropeça a destempo. Até porque um fato cinzento claro em dia de tufão...


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