quinta-feira, setembro 06, 2007 |
O tufão
Vareta sentou-se à secretária. Apetecia-lhe cofiar o cabelo mas lembrou-se que o tinha besuntado com uma espécie de fibra ou cera ou o raio que o partisse. Então não o cofiou e começou antes a pensar na vidinha. Sentar-se à secretária implicava ficar de costas para a janela, o que não era grande perda: da janela pouco mais se via que o prédio da frente e um céu carrancudo pejadinho de nuvens kamikaze que se desfaziam em bátegas grosseiras e inconvenientes.
Um tufão um bocado fora de época, pensou Vareta, ao mesmo tempo que o escrevia no teclado do seu pouco eficiente Dell. E percebeu, num momento de epifania, que tudo depende de tão pouco: não cofiava o cabelo porque o besuntara; não iria a pé até à estação de metro mais distante, como era sua vontade, porque chovia e ventava. “Condições, contingências, espartilhos... ou o caralho”, pensou de novo, num assomo de boçalidade. Assomos que lhe eram caros, convenhamos. Vocês conhecem-no quase tão bem como eu e se há palavra que lhe assenta é assomo. Era, portanto, um assomado Vareta que se sentava à secretária, de costas para a janela.
Tanta coisa que nos estreita as vontades, martelou Vareta no plástico preto do teclado. Como a vontade de que este texto chegasse a algum lado e o imperativo profissional de escrever outras coisas. Torceu o pescoço para olhar pela janela e lembrou-se dos Duplex Longa: “chuva, vapor e velocidade”. Tanta coisa que encontra lugar no boião de uma quinta-feira – e o nosso ziguezaguear pelo meio delas, atraídos para umas, empurrados por outras.
Vareta sentado à secretária, meio afundado na cadeira, uma manhosa gotícula de suor descendo-lhe pela espinha, calcanhares juntos e pernas entreabertas – também isto tinha um certo ar de fora de época, de situação em que se tropeça a destempo. Até porque um fato cinzento claro em dia de tufão...