sexta-feira, março 21, 2008 |
É preciso o novo. É preciso escrever furiosamente. Não basta deixar a tinta no papel. É preciso deixá-la com força, no gesto e na intenção. É preciso escrever tudo, inventariar as palavras até que elas percam o sentido e criá-lo de novo. A questão não está na linguagem, está no uso: é preciso usar as palavras até as gastar, até as matar de exaustão. Hão-de brotar sempe; novas, redivivas, renascidas, velhas de muitos anos, com a sabedoria de as dizer, já que não há nelas nenhuma sabedoria implícita. Há pessoas que passam uma vida inteira a fazer uma barragem de palavras, controlando o caudal na esperança de alguma faísca de sentido. Não adianta. NÃO ADIANTA. Nem adianta bater as palavras como se fossem dois calhaus de sílex. Escrever; as pessoas deviam escrever-se até se esvaírem em tinta. Ou falar; falar até a saliva se secar de vez, deixando um silêncio permanente nas bocas. Deixar as estruturas, as normas, pôr de lado a ligeireza, a preocupação com o estilo. É preciso ir buscar a escrita onde ela nasce; é preciso escrever e falar visceralmente, com todo o corpo, com todo o sangue, até se expurgar tudo o que não seja a verdade - uma verdade qualquer, a de cada um, até se ver se há ou não verdades diferentes ou se ela é una, apenas encoberta em linguagens que a deturpam e a tornam irreconciliável com o que lhe é igual. Mais: é preciso escrever até que a letra se não perceba já, até que o símbolo já não valha por si, já não implique hábitos velhos de associações de sentido - é preciso escrever de forma ritualizada. Escrever sem tempo até o tempo se deixar de medir. Como quem caminha; é preciso escrever como quem caminha. Sem qualquer preocupação pedagógica, sem pensar em acabar de escrever. É preciso o novo mas não um novo inventado. É preciso coçar esta linguagem até ao fio, até ao buraco - e remendar tudo; cerzir a linguagem que existe numa rede nova, cerzindo sempre até que ela se torne tão opaca e confusa como esta mas diferente. E depois romper tudo outra vez, como Penélope fazendo e desfazendo a manta mas sem a esperança espúria de um qualquer Ulisses que chegue de viagem longa muito rebarbado e a encha de nódoas suspeitas. É preciso escrever sem esperança, escrever enfastiado, escrever contrariado, esquecer o direito a não escrever, escrever por decreto, agrilhoar os dedos a qualquer instrumento que escreva e deixá-los presos até à paralisia - sem pausas, sequer, para tirar macacos do nariz. E não ler nada do que se escreve - a única preocupação deve ser a de escrever e não a de contar. Escreva-se tudo, primeiro; depois logo se conta a história de tudo o que ficou por escrever. Usar os tempos verbais todos, todos ao mesmo tempo até que o próprio tempo se ausente. No princípio É o verbo e o princípio nunca acabou. Proibidos terminantemente os neologismos! Criar novas palavras é desmazelo quando o que importa é acabar com as que há até que elas sejam outras nas mesmas letras. Nas mesmíssimas letras, sem tirar nem pôr. Se alguém ainda as perceber. Se não perceberem, tanto melhor: serão as mesmas letras correspondendo a outros sons ou ideias. Mate-se o símbolo, sim, mas deixe-se a forma como prémio pelo esforço. Não parar, não parar nunca, nunca separar o pensar do escrever, escrever continuamente o que está e o que se não está a pensar, sem desligar o cérebro do gesto e muito menos desligando o gesto do cérebro. Um ponto final é só uma conveniência, uma cedência a um conceito vago de clareza. Uma pausa no que se quer escrever mas nunca - nunca! - uma pausa física. As pausas físicas são um veneno. Se se pára o gesto, o exercício fica inválido. É pior que copiar no exame. Deve-se escrever sem dar descanso ao corpo. Um intervalo e muda tudo e as ideias sobrepõem-se umas às outras e a mania da organização pode muito bem matar a verdade. Que isso de ela ser como o azeite e vir sempre ao de cima é coisa que não convence. A verdade é que a verdade é como o ar: existe, é precisa, define-se sem nunca sem ver. Percebe-se. Perceber é uma faculdade extraordinária. Dito isto, deve-se escrever sem perceber e escrever-se sempre o que não se percebe. Escrever o que se percebe há muito quem faça e a Editora Rei do Livros ganha muito dinheiro à conta disso. Há que nunca nomear o que se escreve. Pensar em escrever uma história, poesia, o que quer que seja, é sempre um espartilho e as palavras não são um corpo nem gostam de apertos. Gostam da companhia umas das outras. Desavergonhadas! Há palavras que batem pratos umas com as outras!, que se acariciam e beijam mesmo à frente dos olhos de toda a gente! Impunemente! Ainda bem. Deixem as palavras pecar. Deixem que elas pequem e deixem-me exorcizar-me a escrevê-las. Ou não; prendam-me as mãos, calem-me a boca e obriguem-me a encontrar outra maneira de crescer e de digerir a existência. Hesito entre guardar tudo ou guardar nada. Vejo tanta coisa que podia ser dita de uma forma bonita - que o devia ser - mas depois falta-me encontrar a beleza da forma. Apetecia-me pegar numa luz, numa sombra, num reflexo, num gesto, levá-los a quem tem talento e dizer-lhes: "Toma. Escreve." Levá-los a ti, por exemplo, que tens talento. Tens sangue. Eu só tenho tinta correctora.
Arrotos do Porco: