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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


terça-feira, janeiro 30, 2007



'Tu queres ver que este palhaço foi ressuscitar o...'
Arlindo, o gay homófobo - 10º episódio

Estavam quatro latas de cerveja na bancada da cozinha de Arlindo. Ele estava à frente delas, encostado à parede oposta, e o que lhe passava pela cabeça não era bom. Nem mau. O que lhe passava pela cabeça só ele saberia e nunca nos poderia dizer – que nem sempre o que nos passa pela cabeça é linguagem.

Tinha a ponta da lâmina de um canivete suíço encostado ao antebraço e os seus olhos olhavam porque sim sem que nada por trás deles registasse o que viam. O que lhe passava pela cabeça era visão suficiente.

Encostara a lâmina ao braço provando que conseguia encostar a lâmina ao braço. Não havia necessidade de sangue. Aliás, a presença da cor não seria bem vinda. Que o sangue é vermelho demais para se expor sem vergonha, ainda que mais ninguém o veja – e ninguém o veria, nem mesmo as latas que não tinham culpa nenhuma e não merecem uma antropomorfização saloia, do género “só as latas lhe serviam de testemunha”. Ninguém lhe servia de testemunha nem alguma vez poderia. Arlindo estava sozinho, como todos tendemos a ser – sozinhos. Todos SOMOS sozinhos; depois há uns que estão e outros que não. Arlindo estava.

Porquê? “É um calhar”, diria o povo – e nem diria mal.

Assim lhe calhava.
“Cada novo encantamento é a repetição das mesmas asneiras. E nisso não estou sozinho: nascemos todos com uma espécie de irredutível estupidez que se nota menos nos que menos decisões tomam. ‘Walking and falling’, como diria a Laurie Anderson. Por mais evidentes que sejam os sintomas do precipício, maior é a determinação no passo em frente. E nunca nos dói o suficiente. A velha história do ‘não aguento mais’, do ‘eu qualquer dia’… tudo isso é pieguice. Aguentamos, pois. Bem albardados e profundamente asnáticos – aguentamos sem estrebuchar.

Cada novo encantamento é mais um exercício da ‘cozinha de restos’ – e é sempre qualquer coisa que vale mais aproveitar que deixar estragar. O proveito é que é pouco. E o estrago sempre grande, de qualquer das maneiras. Todas as lições que se tiram no final de um são alegremente esquecidas assim que outro começa. E nunca se aprende nada. E nunca mudamos. E é preciso perceber isto e continuar a caminhar com fé cega na validade da viagem. E sem culpa. Está sempre tudo bem. Eu não peso nada. Há só o dom de existir e de sentir, de experimentar. Não há mais nada a ganhar, em coisa nenhuma. Em ninguém.

Nunca partilhei nada, parece-me. Então a verdade, a verdade mais indizível e inominável, essa nunca poderá ser partilhada por mais vezes que seja dita, por mais adequadas que as palavras possam ser. Só resta o corpo – e mesmo aí… Somos todos objectos de desejo (e objectos de desejos – não me apetece explicar o peso que dou a este plural). Mas raramente gostamos de o saber. A reciprocidade é o mais nefasto dos conceitos supostamente virtuosos. Particularmente nisto do desejo – o desejo, a luxúria animal é das poucas coisas isentas de egoísmo que experimentamos com regularidade. Desejamos o outro, muito primeiro e muito mais intensamente que qualquer desejo conexo e sempre acessório de ser desejado por aquele que se deseja. Isso é só um aval, uma garantia de que não estamos “errados”. E assim o desejo fica com uma linguagem emperrada, disparatada e furtiva. Filha da puta da furtividade. E ele há gente que fica presa a esse carácter furtivo – até porque é mais seguro e permite sempre espaço de recuo. Ora foda-se para isto. É mais perigoso eu dizer-lhe ‘és bonito’ que dizer ‘eh pá, eu estava mesmo com a mão em cima do teu caralho?; desculpa lá, é que eu tenho má circulação e às vezes perco a sensibilidade…’. Gostava que houvesse mais espaço para a verdade. E para o desejo. E o cabrão nunca mais disse nada… E virá o próximo e eu cá continuarei no desmando de sentir pelos outros aquilo de que eles não precisam. Seja.”

Assim lhe calhava. Fechou o canivete e abriu uma das latas. Bebeu a cerveja. Soube-lhe bem.

Arrotos do Porco:


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