segunda-feira, novembro 27, 2006 |
Sobre nada ou Os meus sapatos novos
Tenho um par de sapatos novos. São pretos, de atacadores, fabricados no Japão. Nem por isso de plástico, entenda-se. Longe vão os tempos em que do Japão só saía plástico. Agora sai de tudo, como se o país inteiro tivesse tomado um laxante. A imagem não é muito feliz mas o dia está de chuva. E um gajo precisa de desculpas como esta – está de chuva – para não se sentir disparatado por disparatar. Para comprar os sapatos novos não precisei de desculpa: foi um caso de necessidade, um caso, quase, de force majeur – it goes without saying que os estrangeirismos nunca são demais, nos tempos que correm.
Não foram caros nem baratos, o raio dos sapatos. O que paguei pareceu-me justo. São pretos, já disse; são jeitosinhos e confortáveis. Por debaixo da pele têm um material chamado Gore-Tex. Não sei se terá alguma coisa a ver com o Al Gore ou com o cinema gore. Sei que, pelo que dizem os senhores que escreveram o folheto explicativo – agrada-me esta ideia de sapatos com bula medicinal – , o Gore-Tex conserva os pés quentinhos. Ora um gajo, à noite, ainda pode procurar solução para o problema dos pés frios, demandando um par de pés quentes. Já durante o expediente, a coisa muda de figura. Não me parece curial andar pelo local de trabalho a gritar “Ó fulana!, traz-me aí esses chispes! É só um bocadinho, depois já vais à tua vida”...
Hoje o dia está de chuva e os meus sapatos novos não repassam. A sola é de couro (não italiano) mas tem uma camada fina de borracha impermeável. Posso chapinhar nas poças de água. Posso caminhar à chuva. Posso atravessar o Mar Vermelho. Ainda bem que tenho sapatos impermeáveis. Compensam a minha permeabilidade. Desassossegado, sim; mas com uma base firme, seca e quente, sem joanetes nem unhas encravadas. Gosto dos meus sapatos novos e devia tomá-los como exemplo: resistente às forças exteriores, confortável no interior – assim devia ser o meu carácter. Parece-me hoje, claro; que isto da forma como uma pessoa acha que devia ser é coisa mais inconstante que a minha produção para este blog.
A bem da verdade, comprei dois pares de sapatos. Mas só me apetece falar destes, dos que tenho calçados hoje, que são japoneses, pretos e de atacadores, forrados a Gore-Tex por dentro e com rasto impermeável. Fica, portanto, tomada a decisão de nunca falar dos outros – sim, que o Vareta não é o site oficial dos industriais de curtumes. Fica só registado, para benefício de inventário, que, num qualquer dia estavanado, fui até Shibuya e comprei dois pares de sapatos. Uns com grande importância, porque hoje me seguram ao chão; outros sem importância alguma porque hoje está de chuva e os preteri em favor dos impermeáveis.
Foi um acesso de vontade algo raro em mim, esse de comprar dois pares de sapatos assim de uma assentada. A minha vontade é como o lince da Malcata: diz que há mas ninguém o vê. Gosto de pessoas que têm vontades próprias. Pessoas que vão muitas vezes à casa de banho, por exemplo. Têm vontade, vão. Eu, vou pouco. Só ouço a minha vontade quando ela já é gritada e já não se deixa suprimir. Também gosto de pessoas que têm vontades mas as deixam de lado em favor das vontades alheias, sem que tenha como critério de apreciação o número de vezes que as pessoas vão à casa de banho. Isso é só um sintoma, seja de vontade, de infecção urinária ou de hipertrofia da próstata.
Os meus sapatos novos foram concebidos para pés que meçam 26 centímetros. Mais milímetro menos milímetro, é esse o meu tamanho. Olho para uma régua de 30 centímetros, tapo-lhe 4, e concluo que a nossa verticalidade depende de muito pouco. Será, também aqui, mais uma questão de vontade que de predeterminação.
Vontade vontadinha é o que parece faltar aos pandas. Noticiava o Japan Times de 6ª feira, na capa, sob o título “Panda Porn”: “Zoo keepers hope that all it takes is a little panda porn to get these cuddly creatures into the mood to fornicate”. Até pode ser que sim mas espero que haja o cuidado de digitalizar as genitálias desnudadas dos pobres dos ursos. Tristes pandas, sem tesão nem calçado novo...
vareta não tenhas saudades que todos pensan en ti até eu que no te conozco e eres muito querido toma um besito |
Caro Vareta Venham lá esses ossos! Mas como percebes de sapatos, diz-me: ultimamente tenho pisado muita merda de cão. Aí no Japão também se diz que pisar merda "é dinheiro"? |
"If I were in your shoes", Vareta, não contava aos sapatos preteridos o quão gostas desses que hoje calçaste. Nem imaginas do que é capaz um par de sapatos ressaibiados. |