sexta-feira, abril 21, 2006 |
PESADELO
Nos pesadelos, o terror é uma qualidade das coisas. Não existe, no universo onírico, uma relação obrigatória entre o medo que o sonhador sente e eventuais características ameaçadoras ou terríveis dos objectos sonhados. O sentimento de medo é simplesmente um atributo das coisas. Assim, uma sala, um copo, uma jarra ou uma pessoa simplesmente sentada, podem infundir medo extremo no sonhador. Isto é, o carácter monstruoso pode surgir associado a objectos e situações neutras no contexto da vigília. Esta observação não é original e por exemplo, J. L. Borges no texto de uma conferência sua, discorre sobre este tema. Diz, a certa altura, que na cultura anglo-saxónica a própria palavra que expressa o pesadelo – nightmare – se associa a um animal benigno, a égua (mare). É a horrenda égua da noite, o pesadelo opressor. Se o pesadelo foi intenso e a sensação persiste muito tempo depois de acordado, o sujeito pode transferir definitivamente a emoção associada, em sonho para as entidades correspondentes quando acordado. Por força de sonhar com eles, Borges achava particularmente monstruosos os espelhos, pois duplicam o sujeito. E a ideia do duplo, um potencial usurpador daquilo que é intimamente mais nosso, nós próprios, perturbava-o, diz. Sonhava com espelhos muitas vezes e evitava-os enquanto acordado. Estes objectos obcecam frequentemente o sonhador. Teme-os mas procura-os. Talvez se intua que a discrepância entre a real qualidade neutra do objecto e a desproporcionada emoção que se lhe associa é, de algum modo, profundamente significativa para o próprio nalgum nível da existência. Tais filões exploram os psicanalistas, os místicos e os filósofos que se ocupam do Significado. Lembro-me do estado de terror puro que, nos meus pesadelos, diversas figuras estáticas e silenciosas me causam de tempos a tempos. Simplesmente observam e estão ali. Ás vezes outros me acordavam, pois ouviam-me gritar. O degrau seguinte no medo sonhado surge se o objecto aterrorizador é o próprio sujeito. Reparemos que, no sonho, o sujeito muitas vezes é também sonhado(transfigurado é certo), isto é auto-representa-se no sonho.Raras vezes é apenas a testemunha da acção. O simples sentimento de Si, o corpo ou partes do corpo adquirem o carácter terrível. Aqui o medo é correlativo da próprio-percepção em versão onírica. Uma comparação a este sentimento surge no popular livro do neurologista Oliver Sacks (o autor de “Despertares”). Este descreve casos de pessoas que acordam aterrorizadas com a sensação (ou até a convicção) de que uma parte do seu corpo, uma perna, por exemplo, não lhes pertence. Que lhes foi malevolamente enxertada ao corpo enquanto dormiam e tentam, em pânico, livrar-se dela. Neste tipo de pesadelo, pode ou não existir uma auto-repulsa declarada explicitamente. No meu caso, esta noite, tudo em que tocava esboroava-se irremediavelmente. Tudo, todos os objectos familiares, apresentavam a fragilidade de algo já muito seco e muito velho. A roupa, o pão, os talheres, as portas, o relógio. Tal fenómeno também não é original e ocorre, por exemplo na novela Ubik de P.K. Dick em que os personagens passam, a certa altura, por uma experiência análoga. Neste livro, após um acidente fatal (uma bomba) alguns personagens vivem interiormente num mundo virtual de semi-morte: o processo da morte é artificialmente suspenso no momento em que ocorre e persiste a vivência mental interior. (O processo é revertido temporariamente por um spray chamado Ubik). A dúvida era se era eu que causava a decrepitude instantânea das coisas, ou por alguma razão, tinham elas adquirido essa terrível qualidade. Eu era uma espécie de Midas negro e destruidor, potenciando aceleradamente a velocidade da inexorável e normalmente mais lenta, segunda lei da termodinâmica. Com a passagem do tempo, tudo tende inevitavelmente para a desorganização, que é também o estado mais provável e o destino de tudo. E eu catalizava de forma hiperbólica essa inevitabilidade simplesmente tocando. Fiquei quieto sem tocar em nada. O chão, estranhamente persistia em nome de alguma consistência das frouxas leis da Física dos sonhos. Aterrorizado, não sabia se era eu o repulsivo causador disto ou se tudo em redor, tinha adquirido tal qualidade monstruosa. Talvez o Tempo, a variável fundamental da segunda Lei, se tivesse acelerado vertiginosamente. Uma espécie de avaria no tecido cósmico da Realidade que se produzia, terrível, pelo menos, na minha cozinha. Salvou-me esta dúvida e acordei. Mas a intranquilidade persiste ainda.
Arrotos do Porco: