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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


quarta-feira, março 08, 2006

As grandes questões da humanidade dissecadas em 2 páginas – vol. 4

- Então e o que é que contas de ti, pá? – perguntou o outro, com o ar bonacheirão e assertivo de quem se tem por garantido.

Para ele, era das piores perguntas que lhe podiam fazer. Apetecia-lhe sempre responder “Bom, começou tudo num dia frio e chuvoso de Primavera, quando a minha mãe sentiu as primeiras contracções. O meu pai levou-a à clínica e o parto correu bem, sem grande história. Aos dois meses pesava não sei quanto e media um palmo e meio…” mas nunca o fazia. Se calhar eram demasiadas as vezes em que não fazia o que lhe apetecia, se bem que as coisas raramente lhe apetecessem instantaneamente. Havia uma renitência do corpo em manifestar-se, por um lado, e havia também, por outro, uma ligeira tibieza do espírito em tudo o que dizia respeito aos outros. Tudo somado, não era pessoa de muitos apetites. Para compensar, quando os tinha eram grandes e intensos e pesavam-lhe no corpo e tremia e ficava com as pulsações alteradas. Volta e meia desmaiava, como se o corpo exigisse que lhe deixasse de apetecer o que quer que fosse que o deixara naquele estado. O mais das vezes não desmaiava: saciava o apetite e ficava sempre intrigado por que lhe apetecera tanto aquilo, fosse “aquilo” uma mulher ou um prato de esparguete. “Tu é que és parvo, que até a satisfação relativizas…”, acusava-se. E não sem alguma justiça. Tanto quanto podia julgar, a sua vida não era nem mais nem menos excitante ou intensa que a dos outros. Ainda assim, sentia que tudo o que lhe acontecia era como que filtrado por um antibiótico de largo espectro, que expurgava o muito mau e relativizava tudo o resto.
Ora, tudo o que lhe acontecia era tudo – sim, que a sua vida vinha-lhe acontecendo. Não era uma questão de acaso, longe disso. Era antes uma sucessão de semi-escolhas instintivas e uma disponibilidade do tamanho dos seus dias. Sem dar por isso, enchera-se-lhe a vida de gente sem que os dias houvessem crescido. Ajudava-o a facilidade que tinha em gostar dos outros, genuinamente e sem fretes, sem que isso o fizesse perceber melhor o que raio levaria as outras pessoas a gostarem dele. “Conheces-te tão completamente que não sabes nada de ti” – guardava para si este hábito bizarro dos aforismos de pacotilha, felizmente, por mais acertados que fossem, como era o caso. E conhecia-se, tudo leva a crer que sim, mas não sabia dizer-se. Que ele há quem saiba (ou pense que sim) dizer-se e o faça com denodo… “Eu cá sou assim e assim; não sou nada assim nem assado; e eu nessa situação reagia de outra maneira que eu conheço-me bem…” até que os ouvidos se nos tapam de tanto discurso-serúmen. Mas outros não, ou não sabem dizer-se ou se calam, para bem de quem não quer conhecer as pessoas por uma espécie de powerpoint de café.
“O que é que eu conto de mim… ainda não tenho história… não há nada de definitivo para contar e qual é o valor de contar qualquer coisa em construção?”, ia-se desculpando – e relativizando, lá está, qualquer coisa que ficava entre a timidez e a inabilidade.

- Nada de especial. E tu? – respondeu, por fim, quando lhe pesou demais o olhar inquiridor do outro.

O outro olhara-o, sim, mas não como quem olha para o boneco. Havia ali um querer saber sincero e urgente, como sincera e urgente era a sua existência. A sua vida era para fazer e ele fazia, sempre, com entusiasmo, sem se perguntar ou pensar duas vezes. Teria, talvez, as horas mais cheias de si que de outros – fosse como fosse, era ele quem definia o seu próprio horário, sem desconforto algum porque havia sempre mais qualquer coisa para fazer. O seu espírito era avesso ao verbo “estar” . Custava-lhe “estar” com os amigos, por exemplo: “com os amigos vai-se jantar; toma-se um café; bebe-se um copo; vai-se ver a bola ou vai-se à discoteca ver as gajas!”, pressupondo uma qualquer acção que se encerra de vez, sem deixar as pontas soltas do simples estar.
Confrangiam-no os momentos de indecisão dos outros e sentia-se sempre no dever de resolver as coisas. Não se considerava particularmente qualificado para o efeito mas era compelido a isso pelo pavor de estar a perder tempo e pela angústia que sentia quando os outros “não sabiam o que fazer”, fosse em caso de divórcio ou de decidir para onde ir depois do jantar. Acreditava que qualquer situação fornecia pistas evidentes e assim sentia que o seu caminho estava sempre sinalizado pela sua própria determinação. Se isto não o desresponsabilizava, deixava-o. pelo menos, sem receio de errar.
Sem receio de errar nem de outras coisas. Só receava não ter tempo e deixar coisas por fazer e só se recriminava pelas oportunidades perdidas – gaveta em que cabia tudo o que lhe fugira, mais do que perdera.
Olhava o amigo à espera de resposta e antecipava o prazer de a receber. A sua memória era pouco menos que prodigiosa e gostava de “conhecer o percurso” das pessoas que estimava – e ficava-lhe ferrado, sendo capaz de relembrar qualquer pequeno episódio contado de relance, qualquer nome soprado apenas uma vez, por mais ou menos conveniente que isso fosse. Lembrava-se sem esforço, como se lembrar fosse o principal traço do seu gostar dos outros. “Vês? Eu nunca me esqueço!” era uma frase bem verdadeira quando ele a pronunciava.

A resposta do amigo desconcertou-o, como o desconcertavam sempre as evasivas.

- Pois, pois… Quem te ouvisse havia de pensar que andas pela vida sem fazer nada…

Arrotos do Porco:

:)*


vens cá!
:)



bem.




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