terça-feira, janeiro 31, 2006 |
Microfábulas - XIX
Havia, certa vez, uma velha japonesa a quem a vida nunca trouxera o que ela queria porque nunca soubera realmente o que queria. Animava os dias, geralmente amargos, com pequenas vinganças – “vitórias!”, chamava-lhe ela –, pequenos contentamentos que a alienavam por instantes da azia mental que era o seu viver. Saía cedo de casa todos os dias: aborrecia-a menos a rua e escapava ao jugo de uma nora que desprezava. “Lá vai a velhaca dos dentes podres!”, diriam alguns; “Lá vai a Tanaka-san!”, diriam os mais educados – e Tanaka-san lá ia, sem que os remoques dos primeiros implicassem que fosse ao dentista. Desprezava médicos quase tanto como desprezava a nora. E o mundo em geral, diga-se a bem da verdade.
Para Tanaka-san, poucos seriam os gestos diários que escapariam ao conceito de batalha. O pequeno-almoço, por exemplo. Para sorte de Naoko, sua nora, casada com o primogénito e a quem cabia o fardo de tratar da sogra, a língua japonesa é muito limitada no que toca a insultos ou palavras pouco delicadas. Assim, Tanaka-san limitava-se a dizer “o arroz está duro” ou “mal cozinhado” ou “cozido demais”, consoante os dias, quando o que lhe apetecia dizer seria algo mais contundente: “esta merda, na minha terra, nem os porcos a comiam!, ouviste?, ó serigaita?! Fosse eu mais nova e esfregava-te o focinho na porra da tigela até saberes como trabalhar com a arrozeira eléctrica!”. Se era limitado o léxico, não o eram tanto as expressões faciais. Dificilmente algum outro rosto que não o de Tanaka-san diria com tanta clareza “enfado”, “desprezo”, “revolta”, “queixa” ou, simplesmente, o intraduzível “vai-te foder”.
Conquistadas as primeiras vitórias diárias, que consistiam em comer o arroz com a cara de quem bebe cicuta, dizer à nora que cada dia parecia mais velha e mais doente, atazanar a neta pela escolha de roupa – “ eu nem culpo os estrangeiros que andam por aí a violar e a matar raparigas… elas põem-se a jeito…” – e relembrar ao neto as implicações do pecado original – “coitadinho… estás cada vez mais parecido com a tua mãe… que te sirva de lição: quando casares, não faças como o teu pai!, escolhe uma mulher bonita e certifica-te de que é virgem e de que os filhos são teus!” – Tanaka-san sentia-se então em condições de partilhar com o resto do mundo a sua bonomia.
Às 8h55, com precisão cronométrica, chegava à plataforma da estação de Ikebukuro para apanhar o comboio das 8h56 na linha Yamanote até à estação de Tóquio. Claro: as filas na plataforma eram muitas e longas, mas não faziam mossa na velha senhora que as ignorava violentamente, criando, à força de empurrões e cotoveladas, uma fila paralela que encabeçava com indisfarçado orgulho. A entrada para o comboio era dos seus momentos favoritos do dia e aquele que se revestia de uma certa aura pedagógica. Escolhia algum estrangeiro que ousasse entrar pela mesma porta que ela para o empurrar com denodo e surpreendente energia para uma mulher da sua idade, ensinando-lhe desta forma que a entrada no comboio se deve fazer sem demoras para evitar atrasos. Dando de barato que os estrangeiros não têm educação – em tantos anos, nunca algum lhe agradecera pela “ajudinha” na entrada – Tanaka-san dedicava-se então a fintar todos os outros para conseguir um lugar sentado. Se não o conseguia, escolhia um alvo que estivesse sentado nos “priority seats” e martirizava-o nos 28 minutos da viagem com uma ou outra pisadela, algumas pancadas com o saco de mão, muitas tossidelas e um constante esgar ameaçador. Para a eventualidade de apanhar uma vítima estrangeira, reservava o mimo de palitar os poucos e maus dentes com as unhas, fazendo tanto barulho quanto possível, no processo.
Quando saía na estação de Tóquio, via-se confrontada com a realidade de não haver nada que tivesse de fazer – nem tão pouco algo que lhe apetecesse fazer. “Uma mulher como eu não tem que ter apetites. Passei pela guerra, passei por muita coisa para dar dois filhos ao meu marido, sacrifiquei-me sempre que me foi exigido, agora só quero o que é meu por direito!”. Como ninguém lhe dissera ainda o que seria, então, seu por direito, Tanaka-san passava os dias na expectativa de uma revelação…
Passeava pelas ruas, aturdida com a pressa dos outros, ressentida ao ver tanta gente que estava ali porque precisava ou porque desejava. Entrava em lojas de onde saía com a sensação de superioridade moral por não ter comprado nada, fugindo a ser como “estas galdérias de agora, que sugam os maridos até ao tutano!”. Passava pelos correios para ver o estado das suas poupanças porque lhe sabia bem ouvir alguém dizer que tinha dois milhões de ienes que eram seus!, não dos filhos ou noras – “essas víboras!, que nem desfeitas em tatami teriam algum préstimo” – mas seus. E caminhava, consciente de que a sua vida fora tão completamente normal mas inconformada por ser só uma velha como as outras. De quem era a culpa? Sua, não lhe parecia que fosse – teria que ser dos outros, por exclusão de partes, de todos os outros que existiam da mesma maneira ou de maneiras melhores, dividindo com ela um mundo que a contrariava. Que podia ela fazer se não afrontar o mundo, pedir-lhe meças a cada hora, mostrar a sua revolta através do simples facto de viver? “Sim, que eles queriam era que eu morresse!”. Eles, quem? Isso era pormenor de somenos. “Eles” queriam mas ela não queria – e vivia, tirando prazer disso pela contrariedade que julgava causar-“lhes” .
Ora, em dado dia, numa destas suas excursões matinais à zona de Maronouchi, Tanaka-san viu do outro lado da rua uma menina a distribuir embalagens de lenços de papel gratuitas, prática publicitária corrente que agradava à idosa, ainda que não deixasse de comentar, a cada embalagem que conseguia, “antes os guardasses para ti, rapariga, que bem precisavas de limpar essas pinturas ordinárias dessa cara!”. Estugou o passo, planeando conseguir pelo menos três pacotinhos – e, quiçá, descompor a moça pelo teor da publicidade que os pacotes apresentassem – e dirigiu-se à passadeira.
Nisto, vzzzzzzzzzzzzzt!
Moral 1 – Acreditar na publicidade tem os seus riscos.
Moral 2 – Em Tóquio, há um respeito escrupuloso pelos sinais de trânsito mas as passadeiras sem semáforos são piores que a Boca do Inferno.
Havia, certa vez, uma velha japonesa a quem a vida nunca trouxera o que ela queria porque nunca soubera realmente o que queria. Animava os dias, geralmente amargos, com pequenas vinganças – “vitórias!”, chamava-lhe ela –, pequenos contentamentos que a alienavam por instantes da azia mental que era o seu viver. Saía cedo de casa todos os dias: aborrecia-a menos a rua e escapava ao jugo de uma nora que desprezava. “Lá vai a velhaca dos dentes podres!”, diriam alguns; “Lá vai a Tanaka-san!”, diriam os mais educados – e Tanaka-san lá ia, sem que os remoques dos primeiros implicassem que fosse ao dentista. Desprezava médicos quase tanto como desprezava a nora. E o mundo em geral, diga-se a bem da verdade.
Para Tanaka-san, poucos seriam os gestos diários que escapariam ao conceito de batalha. O pequeno-almoço, por exemplo. Para sorte de Naoko, sua nora, casada com o primogénito e a quem cabia o fardo de tratar da sogra, a língua japonesa é muito limitada no que toca a insultos ou palavras pouco delicadas. Assim, Tanaka-san limitava-se a dizer “o arroz está duro” ou “mal cozinhado” ou “cozido demais”, consoante os dias, quando o que lhe apetecia dizer seria algo mais contundente: “esta merda, na minha terra, nem os porcos a comiam!, ouviste?, ó serigaita?! Fosse eu mais nova e esfregava-te o focinho na porra da tigela até saberes como trabalhar com a arrozeira eléctrica!”. Se era limitado o léxico, não o eram tanto as expressões faciais. Dificilmente algum outro rosto que não o de Tanaka-san diria com tanta clareza “enfado”, “desprezo”, “revolta”, “queixa” ou, simplesmente, o intraduzível “vai-te foder”.
Conquistadas as primeiras vitórias diárias, que consistiam em comer o arroz com a cara de quem bebe cicuta, dizer à nora que cada dia parecia mais velha e mais doente, atazanar a neta pela escolha de roupa – “ eu nem culpo os estrangeiros que andam por aí a violar e a matar raparigas… elas põem-se a jeito…” – e relembrar ao neto as implicações do pecado original – “coitadinho… estás cada vez mais parecido com a tua mãe… que te sirva de lição: quando casares, não faças como o teu pai!, escolhe uma mulher bonita e certifica-te de que é virgem e de que os filhos são teus!” – Tanaka-san sentia-se então em condições de partilhar com o resto do mundo a sua bonomia.
Às 8h55, com precisão cronométrica, chegava à plataforma da estação de Ikebukuro para apanhar o comboio das 8h56 na linha Yamanote até à estação de Tóquio. Claro: as filas na plataforma eram muitas e longas, mas não faziam mossa na velha senhora que as ignorava violentamente, criando, à força de empurrões e cotoveladas, uma fila paralela que encabeçava com indisfarçado orgulho. A entrada para o comboio era dos seus momentos favoritos do dia e aquele que se revestia de uma certa aura pedagógica. Escolhia algum estrangeiro que ousasse entrar pela mesma porta que ela para o empurrar com denodo e surpreendente energia para uma mulher da sua idade, ensinando-lhe desta forma que a entrada no comboio se deve fazer sem demoras para evitar atrasos. Dando de barato que os estrangeiros não têm educação – em tantos anos, nunca algum lhe agradecera pela “ajudinha” na entrada – Tanaka-san dedicava-se então a fintar todos os outros para conseguir um lugar sentado. Se não o conseguia, escolhia um alvo que estivesse sentado nos “priority seats” e martirizava-o nos 28 minutos da viagem com uma ou outra pisadela, algumas pancadas com o saco de mão, muitas tossidelas e um constante esgar ameaçador. Para a eventualidade de apanhar uma vítima estrangeira, reservava o mimo de palitar os poucos e maus dentes com as unhas, fazendo tanto barulho quanto possível, no processo.
Quando saía na estação de Tóquio, via-se confrontada com a realidade de não haver nada que tivesse de fazer – nem tão pouco algo que lhe apetecesse fazer. “Uma mulher como eu não tem que ter apetites. Passei pela guerra, passei por muita coisa para dar dois filhos ao meu marido, sacrifiquei-me sempre que me foi exigido, agora só quero o que é meu por direito!”. Como ninguém lhe dissera ainda o que seria, então, seu por direito, Tanaka-san passava os dias na expectativa de uma revelação…
Passeava pelas ruas, aturdida com a pressa dos outros, ressentida ao ver tanta gente que estava ali porque precisava ou porque desejava. Entrava em lojas de onde saía com a sensação de superioridade moral por não ter comprado nada, fugindo a ser como “estas galdérias de agora, que sugam os maridos até ao tutano!”. Passava pelos correios para ver o estado das suas poupanças porque lhe sabia bem ouvir alguém dizer que tinha dois milhões de ienes que eram seus!, não dos filhos ou noras – “essas víboras!, que nem desfeitas em tatami teriam algum préstimo” – mas seus. E caminhava, consciente de que a sua vida fora tão completamente normal mas inconformada por ser só uma velha como as outras. De quem era a culpa? Sua, não lhe parecia que fosse – teria que ser dos outros, por exclusão de partes, de todos os outros que existiam da mesma maneira ou de maneiras melhores, dividindo com ela um mundo que a contrariava. Que podia ela fazer se não afrontar o mundo, pedir-lhe meças a cada hora, mostrar a sua revolta através do simples facto de viver? “Sim, que eles queriam era que eu morresse!”. Eles, quem? Isso era pormenor de somenos. “Eles” queriam mas ela não queria – e vivia, tirando prazer disso pela contrariedade que julgava causar-“lhes” .
Ora, em dado dia, numa destas suas excursões matinais à zona de Maronouchi, Tanaka-san viu do outro lado da rua uma menina a distribuir embalagens de lenços de papel gratuitas, prática publicitária corrente que agradava à idosa, ainda que não deixasse de comentar, a cada embalagem que conseguia, “antes os guardasses para ti, rapariga, que bem precisavas de limpar essas pinturas ordinárias dessa cara!”. Estugou o passo, planeando conseguir pelo menos três pacotinhos – e, quiçá, descompor a moça pelo teor da publicidade que os pacotes apresentassem – e dirigiu-se à passadeira.
Nisto, vzzzzzzzzzzzzzt!
Moral 1 – Acreditar na publicidade tem os seus riscos.
Moral 2 – Em Tóquio, há um respeito escrupuloso pelos sinais de trânsito mas as passadeiras sem semáforos são piores que a Boca do Inferno.
Arrotos do Porco:
Os velhos são iguais em todo o lado. Amargos e malcriados. Como se todo o Mundo lhes devesse. Só estou á espera da minha vez para levar toda a gente à frente do meu cajado. |
Não sao sso os velhos que nao sabem o que quer! ANdam por ai muitos cerebros enraizados em conqwuistas +passadas e remotas |