quinta-feira, janeiro 12, 2006 |
A.P.
É oficial: já não tenho avós.
Soube ontem à noite que a mãe do meu pai, a minha avó, faleceu no dia 10.
Depois do funeral do meu avô, fiquei a acreditar nos muitos benefícios das cerimónias fúnebres. Carregar a urna do meu avô fez-me bem porque sei que ele ficaria satisfeito por serem os netos a levá-lo. Foi a última coisa que pude fazer por ele. Um funeral é mais uma das várias “cerimónias do adeus”, sendo a mais definitiva e com maior potencial de catarse. Um funeral é para os vivos, para tomarem consciência definitiva de que aquela pessoa não é mais, de que aquele corpo se ausenta de vez. E isso é bom, é uma estalada de realismo, é um embate com a noção de fim quando vemos os coveiros cobrir de terra o corpo da pessoa que amávamos ou estimávamos ou respeitávamos.
Foi a mim que coube dizer à minha mãe que o seu pai tinha morrido. Nunca antes as minhas palavras tinham provocado uma dor tão funda noutra pessoa. Só que eu estava ali, ao lado dela, e a dor dela foi minha também e condoemo-nos os dois, que é melhor que sofrer sozinho. Eu não posso estar agora ao lado do meu pai que, nisso somos parecidos, deve estar a calar a dor dele para não a impor aos outros. Foi a sua mãe e tenho a certeza que a amava da mesma forma incondicional que eu amo a minha.
Mas a minha avó não morreu bem no dia 10. A minha avó vinha morrendo devagar há algum tempo. A minha avó já quase não existia, entregando a memória e as faculdades a uma doença degenerativa. Essa avó que era a minha era a avó que vivia na sua casa de sempre, pequena, com um alpendre em que eu gostava de estar. Nos dias de melhor humor e mais calor, ela fazia-me limonada com água do poço e limões do quintal – era sempre doce demais, avó, mas eu não me queixava porque percebia que, para quem passou por tanta dificuldade, encheres-me o copo de açúcar era uma partilha de riqueza e um gesto de bem-querer.
Com o passar dos anos, a doença matou de facto essa avó que era minha e deixou no seu lugar uma pessoa diferente, difícil, injusta a espaços, capaz de fazer sofrer os outros, capaz de revisitar o passado de forma deturpada e de ferir quem se sacrificara – e muito – por ela. Ainda assim, era ela, ou parte dela, e foi sempre acarinhada e acompanhada com esmero. Anteontem, aos 94 anos, deixou de ser ela, deixou de ser.
A morte da minha avó custa-me. Mas é irremediável e nunca dependeu de mim. Custa-me mais ainda não poder estar “lá” e não poder tentar minorar a dor dos vivos.
Desculpem. Não quero fazer deste blog um obituário da família Vareta. Mas, à falta de um funeral, esta é a minha cerimónia do adeus.