sábado, dezembro 24, 2005 |
VÉSPERAS
Como se dizia na terra dos meus avós, isto usava a ser assim: eu ía para Tomar um ou dois dias antes da Véspera de Natal, ajoujado debaixo do peso de sacos e mais sacos de presentes e, uma vez lá chegado, ficava. No Natal fica-se. Pelo menos na casa dos meus pais é assim. Uma pessoa instala-se em qualquer cadeira ou sofá confortável e come-se (come-se tanto, comem-se coisas tão boas...), conversa-se, come-se, dormita-se, aquecem-se os pés na lareira, come-se, conversa-se, trocam-se presentes, come-se (e bebe-se, claro, não vá um gajo ficar embaçado...) e come-se mais um bocadinho, não vá o Diabo tecê-las, porque "quem vai para a cama sem ceia, toda a noite esperneia"**. O meu Natal tinha isso de especial: havia mais tempo para o conforto. Estávamos todos juntos - mas isso acontecia amiúde. Havia receitas especiais de Natal - mas sempre comi muito bem em casa dos meus pais. Trocavam-se presentes - mas não o fazíamos só no Natal. O que era realmente especial era o tempo que todos dedicávamos a sentir-mo-nos bem.
Este ano, pela primeira vez em 29 anos, eu não estou fisicamente no meu Natal. Sempre estivemos todos - uns só na Noite ou só no Dia, mas sempre estivemos todos. Houve Natais com problemas de saúde, houve Natais mais atribulados mas ausências, só as definitivas - como a do meu avô.
É claro que tenho saudades, é claro que queria muito estar lá. Mas isso não me atormenta; o que me preocupa é pensar que a felicidade, que o conforto de sempre da minha família neste Natal possa ser beliscado pela minha ausência. Que eu carregue saudades é justo: fui eu que escolhi este caminho; que a família sofra com isso é injusto - e seria um peso bem maior que o das saudades.
Apesar de não estar em Tomar nem na Pátria benquista, este deverá ser o Natal mais português que já passei. Não o será pela comida, nem pela paisagem, nem pela companhia, mas sê-lo-á por este meu sentimento tão português de uma felicidade comezinha, remediada, pobrezinha mas honrada - a tão tradicionalmente lusitana "felicidade apesar de tudo".
É por ter esta felicidadezinha instalada na "massa do sangue" que posso ser mesmo sincero quando escrevo que vos desejo um Feliz Natal.
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** provérbio da mesma família daqueloutro célebre dichote "quem vai para a cama com tusa, toda a noite se lambuza; quem vai para a cama sem ponta, faz à esposa uma afronta e quem vai para a cama dormir, é porque não gosta de cobrir"...
Arrotos do Porco: