quarta-feira, novembro 16, 2005 |
SINAIS
Um capítulo apócrifo presente numa única edição da Enciplopedia Britannica levou, no passado, ao conhecimento do país de Uqbar e da sua geografia e gramática. Tratava-se de um país completamente desconhecido na sua localização do qual não se conhece qualquer outra descrição e referência. Mais intrigante, mas certamente com alguma relação com este misterioso país é a região mitológica de Orbis Tertis, no planeta Tlhon, que é central naquilo que se conhece da mitologia uqbariana. Da enciclopédia de Thlon, apenas se conhece a referência a um único tomo do volume XI, constante de um conhecido relato do, na altura, director da Biblioteca Nacional da Argentina, feita nos anos quarenta do século passado. A relação entre as duas obras apócrifas é óbvia, pois Thlon e Orbis Tertis, além de serem referidas no primeiro texto, têm obvias afinidades no que concerne à gramática e literatura. A língua falada nos dois locais também é a mesma. Numa das versões, a língua de Uqbar é constituída apenas por longas cadeias de substantivos e adjectivos, não sendo conhecido o uso de verbos. Noutra versão, na linguagem escrita, os uqbarianos recorrem apenas a longas cadeias de adjectivos. Acabou por descobrir-se que qualquer dos três locais seria tão só imaginário e o fruto do labor de uma academia de sábios geógrafos, gramáticos, naturalistas, matemáticos e historiadores, que criaram ad novum tudo acerca dos supostos lugares. Seria então um puro exercício académico de imaginação literária sem qualquer correspondência a um país real ou uma qualquer alusão metafórica a uma utopia filosófica. Começaram por Uqbar, um país e mais tarde, à medida que a Academia crescia, aventuraram-se na descrição do virtual planeta Thlon. A língua orbiterciana teria inclusivamente sido ensinada às crianças nalgumas escolas. Acontece que ontem recebi o volume XII (Dioscoriáceas a Hippuridáceas, partim) da Flora Ibérica, obra editada pelo Jardim Botânico de Madrid, de que sou colaborador. Espantosamente, muitas das plantas de alguns dos géneros têm com área de ocorrência algumas províncias de Orbis Tertis. Tentei indagar quem seria o responsável por tais referências até porque todas se tratam de espécies incógnitas até à data e novas para a ciência. Nas publicações originais dos nomes, a numeração, por lapso diz o editor, salta as páginas onde estariam as descrições e as figuras originais. O colaborador argentino, responsável pela revisão desses géneros não responde a telefonemas ou aos correios electrónicos. Diz uma empregada, que é habitual desaparecer assim durante dois ou três meses e deixar apenas instruções para enviar semanalmente o correio para um apartado anónimo em Buenos Aires. Recebi entretanto um pedido para devolver o volume em causa, que teria alguns erros, sendo-me então enviada uma reimpressão, mas temo que não contenha menção ás plantas orbitercianas. Entre as bizarras plantas ora descritas, cito apenas as árvores aéreas dos nimbo-estratos de Orbis Tertis e a Affzelia ferox, uma árvore devoradora de turfa. Perturbador é o facto de ter a estranha impressão de que cada vez que folheio o volume, as páginas onde as plantas são referidas mudarem sempre. Comecei a apontar esse número em cada consulta e voltei a fechar o livro. Procurei novamente e voltei a encontrá-las, mas de facto, na mesma página. Não sei porque persisto nesta estranha convicção. Aparentemente, muitas dessas plantas pertencem a várias famílias em simultâneo, o que não tem sentido na lógica hierárquica do sistema de classificação. Estou agora convencido que, de algum modo, exista desde então uma sociedade secreta que persiste na empresa de descrever Thlon e Orbis Tertis. Talvez já tenham surgido mais fragmentos noutros livros que passaram despercebidos. Se a quem teve contacto com os seus sinais, a perplexidade os fez quedar em silêncio, não posso saber. Mas, pelo menos a vós digo que devemos estar atentos, pois certamente não serão nem os únicos nem os últimos.
FIM
Arrotos do Porco: