terça-feira, novembro 15, 2005 |
SICASAL, RAINHA DOS CÉUS
Havia anos que Alberto construía a gigantesca aeronave. Tinha gigantescas asas de lona, uma complicada estrutura de cabos, tirantes e esticadores de aço e ocupava uma antiga pastagem. O avião movido por quarenta motores de explosão era grande como uma pequena cidade e lembrava um gigantesco morcego ou um réptil voador pré-histórico de pano, madeira e cordas de metal. A tripulação atingia quase os cinquenta homens e distribuir-se-ia por três habitáculos interligados por pontes e cabrestantes. Havia para além da ponte de comando, as camaratas, as cozinhas, um laboratório aerostático e uma cabine de radiotelegrafia. A gigantesca aeronave, chegada às grandes altitudes, podia ainda vogar por meio de um enorme balão de hidrogénio, que era então inflado e percorrer grandes distâncias sem auxílio dos motores. Alberto estava na ponte encostado à roda do leme, revendo cartas de navegação e mapas meteorológicos. Ultimava os últimos preparativos logísticos. Ventos de feição, os alísios de noroeste encarregar-se-iam de os fazer chegar, primeiro ao Chile e à Terra do Fogo e finalmente à Antártida em menos de dois meses. No grande dia da partida, o Maire, a fanfarra e uma condecoração colectiva com a Legião de Honra fez as despedidas. Largaram, ganhando altitude por entre benévolos nimbos brancos, com os motores na potência máxima sob o sopro ensurdecedor do vento no velame de lona das asas duplas de duzentos e quarenta metros de envergadura. Sobrevoavam já o Atlântico em direcção ás Canárias, a primeira escala. Aparício era um experimentado marinheiro holandês que Alberto lograra descobrir embriagado numa taberna infecta do Quartier Latin. Agora era pensionista após longos anos de serviço na Companhia das Índias. O pior era a sífilis de que padecia mor da vida desregrada de bebedeira e convívio com rameiras desdentadas baratas. Tossia constantemente, expelindo espessas bolas de expectoração verde e amiúde apalpava por dentro das cuecas, as moças da cozinha e a enfermeira. Alberto designara-o despenseiro e tratava do aprovisionamento de alimentos a bordo. Mas Aparício sofria de uma grave disfunção cognitiva que o levava a afeiçoar-se aos mais diversos tipos de enchidos com que recheara a despensa: morcelas, das de arroz e doces inclusive, catalães de Barrancos, mouras, buchos, chouriços de sangue, alheiras, farinheiras, paios e paiolas. Introduzia-os no recto com sofreguidão enquanto emitia animalescos grunhidos e urros infra-humanos enquanto maldizia um misterioso e antigo manuscrito egípcio-barranquenho, que bramia entre os dedos crispados. Uma vez, ao ruído atraiu, Meireles, um ex-camionista parisiense, que com Lelo, o seu amigo inseparável, que era o cigano-cantor de serviço. Passaram a ponte de cabos entre a messe e a cozinha e depararam-se com Aparício com um enorme chouriço de metro e meio introduzido no recto. Sodomizaram-no com brutalidade. – Aparício gritou – “Ah! Desvalidos estultos!...A Maldição do Chouriço será implacável! Parai danados! Estais perdidos!...Ai, ai, ai, que me rebentam a tripa!...cabrões!” Os fungos acinzentados que se criam nos chouriços já havia muito que criavam abundantemente nas paredes do cólon ascendente de Aparício, pelo que os dois amigos folgazões apanharam também o fungo, que lhes subiu pela uretra até à bexiga, ocupando mesmo as prolíficas próstatas. Durante a noite, Meireles e Lelo deram voltas e mais voltas nas redes de dormir. A pele começava a tornar-se gordurosa, enrugada e a cheirar a chouriço. A metamorfose dos desvalidos violadores de Aparício completava-se perante o horror das vítimas da terrível maldição. Meireles transformara-se num enorme enchido humano e Lelo num bucho de arroz descomunal. Eram os tremendos Chouriços-Vampiros, escorrendo gordura e pimentão. Saltitaram para fora da camarata e atacaram os membros da tripulação com os seus enormes e aguçados dentes ensanguentados. Alberto, que entretanto acordara, pegou na sua espingarda e dirigiu-se à messe. Já uma multidão de horrendos chouriços vampiros, que eram os membros da tripulação transformados corria na sua direcção. Disparou vários tiros, fazendo saltar jorros de sangue temperado com cominhos e pimentão que mancharam as paredes de lona da areonave. Nacos de gordura de porco-prêto e nervos saltavam em todas as direcções inundando os corredores, por entre os gritos demoníacos dos chouriços-vampiros. Uma gigantesca e mole morcela, que fora antes a gorda cozinheira de bordo, agarrou-o pelo pescoço e mordeu-o selvaticamente. Alberto quase sucumbia com a dor lancinante mas alcançou a manivela que cortava o combustível aos motores. A aeronave guinou violentamente perdendo altitude e dirigindo-se vertiginosamente ao solo. Uma enorme bola de fogo que subia das montanhas foi vista ao longe pelos índios araucanos. Três dias depois atingiram o local do desastre e pasmaram com espectáculo de dezenas de enormes chouriços assados. Rapa-Nui, o chefe dos índios, com a boca cheia de gordura avermelhada e sorvendo um caldo-verde ao som dum leitor de cartuchos portátil onde tocava o Alfredo Marceneiro, virou-se para o leitor deste texto e diz-lhe: “Agora posta por cima, Chouriço!”.
FIM
Arrotos do Porco: