<$BlogRSDUrl$>

Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


segunda-feira, novembro 14, 2005

SEGISMUNDO NA TORRE




“Cielos, si es verdad que sueño,
suspendedme la memoria,
que no es posible que quepan
en un sueño tantas cosas.
¡Válgame Dios, quién supiera,
o saber salir de todas,
o no pensar en ninguna!”


In “A Vida é um Sonho” de Pedro Calderon de la Barca (1600-1681).


Antes de Segismundo havia o Caos. Vagas nuvens de matéria, sois negros, planetas incógnitos, ecos de prenhes fornalhas estelares, sombras de um universo virgem e sem palavras. As esferas dos céus rolaram em silêncio durante eons e as mutações do éter foram sem a testemunha de ninguém. Nas primeiras cidades, as leis da física eram vagas e foram sendo construídas ao sabor do entendimento que raças de homens órfãos, do esforço e do ócio foram tirando. Segismundo, na Torre que era o seu cárcere desde a nascença, leu sobre eles e foi-lhes dando o sentido. Ordenando e vendo com o olhar do espírito aquilo que antes apenas o solitário demiurgo do Cosmo, vira. Pensava naquele deus solitário, autor do seu próprio sonho, que se compraz num jogar às escondidas cósmico, que é um eterno fingir que não Se conhece, o surgir aos seus olhos que quisessem tudo veriam, sempre transcendente no tornar-se eternamente para além de si próprio, em multitudes de seres e de coisas. Ele, Segismundo, criado pelo Mundo e parte do Mundo como o mar cria ondas, que mais não são que o mar ele mesmo e, movido pela vontade de outras coisas ser e ser mais além, via o que Deus via através dos seu olhos. E era através dele que Segismundo via, sentia e se sentia. Deus reencontrava-se a Si mesmo através dele Segismundo, que também era Ele. Lia Segismundo sobre a visão de Deus, nas palavras de Nicolau de Cusa, enquanto olhava pela janela da sua torre e via os dias. Via o céu, as aves, casas e longínquos ecos de vozes que não sabia serem senão o eco dos seus pensamentos. Se outros homens existiam para além dele, ele não o sabia e Deus estava silencioso apesar de viver no seu coração eternamente presente, testemunhando. Deus segue com a sua visão, todos os movimentos dos átomos do Mundo como fora o olhar daquelas figuras pintadas que parecem seguir-me também a mim Segismundo quando passeio sem destino nos corredores da Torre. Reconheço-me em todas elas que são vãos retratos de pessoas que já fui, pois em cada instante que nunca sou os meus pensamentos, sou destruído e criado eternamente. Assim, já fui muita gente, famílias, povos e raças inteiras; estrangeiros uns dos outros apesar de serem sempre eu próprio. Tenho a memória da História deles, mas não me sinto nunca aquele que fui quando fui dormir ontem, ou após um instante de vão devaneio. No entanto, sei tudo o que eles souberam descontando alguma vagueza longínqua se muitos anos já tenham passado, pois humano sou e escrevo só do que me lembro. Sou Segismundo na Torre, mas não me chamo agora isso. Escrevo num computador, tenho agora outro nome e estou ao mesmo tempo na Torre, assim como estou no acordar do primeiro homem, que foi dando nexo ao Mundo e primeiro o construiu com o acordar das primeiras palavras. Mesmo antes das palavras, observei o Mundo, nú nos campos antes do tempo da escrita e dei-lhe o sentido. Observo-me a mim próprio, agora que Me vou começando a reconhecer.

FIM

Arrotos do Porco:


<< Voltar ao repasto.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?