terça-feira, agosto 16, 2005 |
Microfábulas - XVII
Havia, certa vez, um fulano hirsuto, mal apessoado e de olhar agressivo que vagabundeava pelas ruas da Sertã expelindo um ou outro comentário de mau tom a quem por ele passava. “Lá vai o Mija no Miradouro!”, diriam uns; “Lá vai aquele tipo manhoso.”, diriam os mais educados. E aquele tipo lá ia, invariavelmente terminando os seus percursos no Miradouro onde, verdade se diga, mijava de facto, com os olhos postos na serra.
Entre uma mijinha e outra, aquele tipo passeava-se – admirável existência essa, diriam alguns mais dados à inveja e à preguiça – tartamudeando qualquer coisa entre dentes que nunca alguém percebia (Percebê-la-ia eu, se a ouvisse, modestamente alcandorado que estou a esta condição de narrador omnisciente. Eu narro, tu lês, ele tartamudeia, ela engole… é assim o singular da minha existência presente e indicativa, no momento desta narração). Daquele tipo ninguém sabia ao certo os dados básicos que permitiriam uma maior ou menor sociabilização: nem nome ou apelido, nem onde vivia, nem quem lhe dava de comer, nada. Nem tão pouco alguém se lembrava desde quando andaria ele passeando por ali. Tiravam-se umas pelas outras para fazer um incompleto retrato: tinha um ar desgrenhado e de pouco asseio mas vestia roupa limpa duas ou três vezes na semana, o que deixava pressupor uma base com instalações sanitárias ou, pelo menos, um tanque de fibrocimento; era encorpado e enérgico na passada, o que o excluía da subnutrição; e usava calçado de qualidade, o que indicaria algumas posses, suas ou de quem o auxiliasse.
A um dado dia, já distante no tempo, pegou ao serviço na Sertã uma Assistente Social, recém formada em Política Social pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, com uma média miserável mas com uns dossiers muito bonitos e arrumadinhos que combinavam bem com o seu tailleur de mau corte e tecido barato e com a mise de rolos meio delambida que lhe emoldurava o rosto coberto de cicatrizes de acne juvenil. A Assistente Social, que se chamava Sandra como todas as outras assistentes sociais com menos de 40 anos (excepto uma, que se chama Dora), interessou-se pelo caso daquele tipo. As más-línguas diziam que, na raiz desse interesse, estaria uma olhadela furtiva que Sandra teria deitado ao sujeito enquanto ele mijava no Miradouro. Verdade ou não, o que é certo é que diariamente lá se via Sandra à porta do Clube da Sertã, aguardando a chegada daquele tipo ao seu urinol de estimação. Fiel à sua têmpera, aquele tipo ia enxotando Sandra com as habituais diatribes: “Santa Marta de Portuzelo! Chula rabela! Rancho do Folgosinho! Folclore do Minho! Põe aqui o teu pezinho! Abre as pernas e o cuzinho! Fandango de Riachos! Cubro fêmeas e machos! Corridinho da Fuzeta! Concertinas e ferrinhos! Adufe e reco-reco! ‘Inda viras o boneco! No alto daquela serra está quem em ti se enterra! Papagaio loiro de bico doirado leva-me esta carta p’ra mais um encornado!” – e por aí fora, que o folclore português é rico e diversificado.
Mas Sandra foi persistindo, com denodo, e aquele tipo lá se foi habituando à sua presença quotidiana nas cercanias do Miradouro até ao dia em que a interpelou: “Anda ver a serra, catraia”. E Sandra foi, seguindo aquele tipo até à vedação de ferro forjado e oxidado – quem sabe se pelo tempo se pela urina… – para além da qual se espraiava a serra e um declive de muitos metros.
- Como é que se chama? – perguntou Sandra, sentindo-se mais afoita pelo ar fresco e pela braguilha fechada do seu interlocutor.
Nisto, vzzzzzzzzttt!
Moral 1 – As autarquias deveriam ter cuidado com a manutenção de vedações em locais que podem constituir ameaças à integridade física dos cidadãos.
Moral 2 – O facto de existir um canteiro “lá em baixo” não deve ser contraposto aos ditames da consciência cívica de que é incorrecto mijar num miradouro.
Entre uma mijinha e outra, aquele tipo passeava-se – admirável existência essa, diriam alguns mais dados à inveja e à preguiça – tartamudeando qualquer coisa entre dentes que nunca alguém percebia (Percebê-la-ia eu, se a ouvisse, modestamente alcandorado que estou a esta condição de narrador omnisciente. Eu narro, tu lês, ele tartamudeia, ela engole… é assim o singular da minha existência presente e indicativa, no momento desta narração). Daquele tipo ninguém sabia ao certo os dados básicos que permitiriam uma maior ou menor sociabilização: nem nome ou apelido, nem onde vivia, nem quem lhe dava de comer, nada. Nem tão pouco alguém se lembrava desde quando andaria ele passeando por ali. Tiravam-se umas pelas outras para fazer um incompleto retrato: tinha um ar desgrenhado e de pouco asseio mas vestia roupa limpa duas ou três vezes na semana, o que deixava pressupor uma base com instalações sanitárias ou, pelo menos, um tanque de fibrocimento; era encorpado e enérgico na passada, o que o excluía da subnutrição; e usava calçado de qualidade, o que indicaria algumas posses, suas ou de quem o auxiliasse.
A um dado dia, já distante no tempo, pegou ao serviço na Sertã uma Assistente Social, recém formada em Política Social pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, com uma média miserável mas com uns dossiers muito bonitos e arrumadinhos que combinavam bem com o seu tailleur de mau corte e tecido barato e com a mise de rolos meio delambida que lhe emoldurava o rosto coberto de cicatrizes de acne juvenil. A Assistente Social, que se chamava Sandra como todas as outras assistentes sociais com menos de 40 anos (excepto uma, que se chama Dora), interessou-se pelo caso daquele tipo. As más-línguas diziam que, na raiz desse interesse, estaria uma olhadela furtiva que Sandra teria deitado ao sujeito enquanto ele mijava no Miradouro. Verdade ou não, o que é certo é que diariamente lá se via Sandra à porta do Clube da Sertã, aguardando a chegada daquele tipo ao seu urinol de estimação. Fiel à sua têmpera, aquele tipo ia enxotando Sandra com as habituais diatribes: “Santa Marta de Portuzelo! Chula rabela! Rancho do Folgosinho! Folclore do Minho! Põe aqui o teu pezinho! Abre as pernas e o cuzinho! Fandango de Riachos! Cubro fêmeas e machos! Corridinho da Fuzeta! Concertinas e ferrinhos! Adufe e reco-reco! ‘Inda viras o boneco! No alto daquela serra está quem em ti se enterra! Papagaio loiro de bico doirado leva-me esta carta p’ra mais um encornado!” – e por aí fora, que o folclore português é rico e diversificado.
Mas Sandra foi persistindo, com denodo, e aquele tipo lá se foi habituando à sua presença quotidiana nas cercanias do Miradouro até ao dia em que a interpelou: “Anda ver a serra, catraia”. E Sandra foi, seguindo aquele tipo até à vedação de ferro forjado e oxidado – quem sabe se pelo tempo se pela urina… – para além da qual se espraiava a serra e um declive de muitos metros.
- Como é que se chama? – perguntou Sandra, sentindo-se mais afoita pelo ar fresco e pela braguilha fechada do seu interlocutor.
Nisto, vzzzzzzzzttt!
Moral 1 – As autarquias deveriam ter cuidado com a manutenção de vedações em locais que podem constituir ameaças à integridade física dos cidadãos.
Moral 2 – O facto de existir um canteiro “lá em baixo” não deve ser contraposto aos ditames da consciência cívica de que é incorrecto mijar num miradouro.
Arrotos do Porco: