terça-feira, julho 12, 2005 |
Microfábulas – XVI
Havia, certa vez, um homem que tinha a seu cargo a direcção de uns serviços do Estado, coisa pequena, um total de oito pessoas entre técnicos superiores, administrativos e auxiliares. Quem o via chegar ao local de trabalho num pequeno veículo motorizado tinha reacções mistas: “Lá vai o chato do caralho!”, diriam uns; “Lá vai o Senhor Doutor!”, diriam os mais educados. E o Senhor Doutor vinha todos os dias pelas 10h00 da manhã, avançando pelos corredores, o corpo entroncado a bambolear-se com a graça de um leão-marinho enfiado num blazer coçado e de mau corte.
O Senhor Doutor era temente a Deus, civilizado o suficiente, com noções básicas de educação e regras de comportamento bem aceites pela sociedade. Casara bem e cedo com a Esposa do Senhor Doutor, tinha descendência que em conjunto formava os Filhos do Senhor Doutor, tinha uma casa decorada com meia dúzia de antiguidades compradas a trouxe-mouxe para disfarçar a falta de pergaminhos familiares, tinha um carro com três anos e uma casinha no campo para poder dizer aos colegas que nesse fim-de-semana iria à terra.
Para o Senhor Doutor, a informalidade passava em exclusivo por tratar pelo primeiro nome e permitir igual tratamento aos seus quatro colaboradores mais próximos. Convencia-se plenamente de que isso era suficiente como prova de confiança, encorajamento e intimidade e tinha-se na conta de um bom condutor de pessoal. “A isto é que eu chamo um bom ambiente de trabalho!”, dizia ele quando entrava de rompante por algum dos gabinetes onde os seus funcionários estivessem à conversa. Repetia a frase duas ou três vezes, ficava com um sorriso parvo no rosto, girava como um pião coçando o seu cabelo já ralo e grisalho e saía, sem aparentemente se dar conta de que toda e qualquer animação cessava sempre no momento em que ele entrava na sala. Fora isso, presenteava as pessoas com sonoros bons dias e deslocados bem-haja nos quais se pressentia muito mais a obrigação que a simpatia.
A principal função do Senhor Doutor naquele serviço era a de se irritar com as “encomendas” de trabalho que chegavam “de cima”. O seu temor reverencial para com quem estava “em cima” encontrava naqueles momentos o seu escape: ia ter com o funcionário a quem caberia desempenhar a tarefa e, em vez de dar qualquer instrução, desabafava “Mas você já viu esta merda?! Estes gajos estão a gozar connosco, caralho! Só nos pedem trabalho, só nos pedem trabalho!… Você nunca queira chegar a Director de Serviços!”. Dito isto, voltava a sentar-se à sua secretária imaculadamente limpa, com um mata-borrão verde musgo, enquanto o funcionário lá procurava responder à solicitação “de cima”. Esta divisão de tarefas parecia-lhe eficiente: os outros trabalhavam enquanto ele se irritava com a natureza e a quantidade dos pedidos. No fundo, ele era o responsável pelo trabalho que ali se produzia mas o Senhor Doutor era um homem de valores, com grande apego à lealdade: se as coisas corriam bem, os Serviços estavam de parabéns; se as coisas corriam menos bem, o funcionário responsável era prontamente identificado e o seu nome e a nota de culpa apresentados aos “de cima” sem qualquer demora.
Apesar de ser um estorvo a um mais célere funcionamento dos serviços, o Senhor Doutor não incomodava nem importunava em demasia os seus funcionários. Nenhum diria declaradamente que não gostava do Senhor Doutor – como ninguém dirá declaradamente que não gosta de uma pedra da calçada a menos que esta venha arremessada contra si. O Senhor Doutor era um chefe normal; só não era uma pessoa. De resto, pensava de acordo com parâmetros aceites e premiados na administração pública: os funcionários aparecem com o trabalho feito e o chefe confere-lhes o valor acrescentado de os levar “lá acima”; qualquer lapso dos funcionários é um ataque pessoal ao chefe que os deve, pelo menos, sancionar com a expressão “Você hoje deixou-me ficar mal…”; as ocasiões de repreensão eram a única altura em que se devia deixar cair um elogio como “Eu tenho ouvido coisas boas sobre o seu trabalho MAS…”.
Nos verdadeiros dias de romaria que constituíam as idas do Senhor Doutor “lá acima”, os serviços ficavam num frenesim: era preciso produzir muita coisa para que o Senhor Doutor se sentisse escudado nos encontros a nível superior. Mais do que saber o que levava, importava-lhe levar algo, sentindo-se assim preparado para a eventualidade “de lhe estenderem uma casca de banana”. “Que os lá de cima conheço eu bem e não são gente de fiar!”, dizia ele com um sorriso compincha e parvo a que ninguém correspondia pois todos sabiam que: a) ele não conhecia bem os “lá de cima” e b) os “lá de cima” eram bem mais fiáveis que o Senhor Doutor.
Certo dia, um dos de “lá de cima” foi “lá abaixo” falar com o Senhor Doutor, que não perdeu a oportunidade de lhe mostrar as instalações pouco dignas e desleixadas e de o apresentar aos seus funcionários: “Este é o Senhor Doutor Beltrano, nosso Director e meu grande amigo!”. O “lá de cima” olhou-o de soslaio e disse que queria mesmo era falar com o funcionário responsável por um dado assunto.
Nisto, vzzzzzzzzzzzzzt!
Moral 1: há diverso material de escritório que se pode tornar numa arma perigosa, desde que nas mãos certas e brandido com violência.
Moral 2: o brio de um Senhor Doutor é coisa com que nem mesmo os “lá de cima” devem brincar sob pena de sofrerem represálias directas e muitas vezes violentas, como escoriações ou manchetes n’O Independente.