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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


terça-feira, junho 28, 2005

Microfábulas – XV

Havia, certa vez, uma adolescente que passeava as suas angústias e depressões pelo recreio da escola secundária onde procurava completar o 10º ano. “Lá vai a Morcegona!”, diriam uns; “Lá vai a Aida!”, diriam os mais educados. Mas, mais do que ir, Aida estava – estava quase sempre parada em contemplação ou assim nos seria sugerido pela placidez bovina com que parecia fitar o infinito. Às vezes parava de fitar o infinito (que, no caso concreto, correspondia ao muro mal rebocado da secundária construída à pressa nos finais dos anos 80) e garatujava qualquer coisa no seu inseparável caderno de capa preta. Era o seu confidente e era naquelas páginas que despejava, em rebuscada prosa poética, as frustrações acumuladas nos 16 anos de vida: “Eu sou um membro gangrenado. Eu sou a verruga na face perfeita. Eu sou o tique nervoso que nos obriga a olhar. Eu sou a marca da sarna na pelagem perfeita de um cão de raça. Eu sou a falha que tranquiliza os outros na sua superioridade. Está decidido: amanhã vou desfrisar o cabelo!”.

Para além de carregar um nome próprio que a tornava invariavelmente a primeira na chamada, Aida estava estigmatizada por um forte e crespo cabelo preto que usava muito comprido. A sua altura algo exagerada para a idade e a falta de quaisquer formas bem definidas no seu corpo faziam com que se salientasse de entre os colegas mas por razões inconvenientes para a psique de uma adolescente. Dos pais também não tinha grande apoio: a mãe era figurante do SIC 10 Horas e o pai era serralheiro, daqueles à antiga – sempre que falava com a Directora de Turma dizia-lhe “A senhora chegue-lhe, se for preciso! Eu levei muita lambada até à 4ª classe e só se perderam as que caíram no chão! Esta malta de agora tem muitas facilidades, é o que é! Sabe com que idade é que eu comecei a trabalhar?! (…) Sabe quantas vezes é que o meu pai chegava a casa entornado e me corria a mim e aos meus irmãos à cinturada? (…) Sabe o que é levar um pontapé no cu com umas botas cardadas? (…) E doutra vez estava eu e o comer à ceia só chegava para três… (…) Por isso já sabe: não se acanhe! Cá por mim pode arrear-lhe quando for preciso que a mim ensinaram-me cedo que, isto das letras, se não entra a bem pelos olhos adentro, entra a mal por onde as mãos puderem malhar!”. Tímida por natureza, Aida poucos ou nenhuns amigos fazia e só encontrava refúgio nos devaneios literários ingénuos a que se entregava com muita frequência.

Eu sou um corvo entre colibris. Eu sou o chanato raso entre saltos agulha. Eu sou o poste de basquetebol entre bailarinas. A puta da Lúcia mete-me nojo. O João Carlos é um estúpido e nunca olha para mim…”.

Pelo seu carácter fechado, Aida nunca ganhara muita destreza social nem tão pouco uma noção asseverada do que é ou não é próprio em cada ocasião. Daí que a turma estivesse numa expectativa mal contida quando a professora de português pediu a Aida que lesse em voz alta uma redacção sobre o tema “Eu…”. Levantando-se ao som de alguns gritinhos de “Mor-ce-go-na! Mor-ce-go-na!”, Aida encheu-se de brio e começou a ler:

Eu queria existir nos outros ou na ausência deles. Tudo menos ser eu ou este eu rodeado de outros eus padronizados que me devolvem as minhas diferenças ao ponto de sufocar e de sentir que estou a perder o pé num tsunami de características que o meu eu não possui. Eu sou mais acessória que os outros. Eu sou mais descartável porque não pertenço. Ninguém vê a minha dor e os meus passos são sempre só meus e ecoam num vazio tão cheio de vazio, num nada tão absoluto e negro como o meu cabelo que eu faço tenções de rapar quando for tirar sociologia para Lisboa. Eu sou um somatório de qualidades desnecessárias que resultam numa imagem de defeitos e assim ninguém vê que atrás do preto que transpareço há uma plêiade de cores vivas porque eu vivo e respiro mas respiro sozinha e choro sozinha as lágrimas que sorvo de volta e me sabem a sal e a muco. Eu sonho apenas nas asas das palavras que abortam de mim em torrentes volumosas e se espraiam em tinta como magma quente que me queima a carne dorida e a faz sarar até que um novo rasgão se abra pela indiferença dos outros e eu sofra de novo sem que ninguém algum dia pare para olhar para mim e pedir desculpa. É a mesma coisa em Educação Física, onde todos pensam que, por ser alta, não me magoo com os encontrões nos jogos de basquetebol mas magoo e sofro redobard… redrob… redobradamente com aquilo a que eu chamo as ofensas Twix que me fazem doer duas vezes, uma no corpo e outra no espírito. E os rapazes que me atiram as bolas com força dirigidas ao peito só porque os meus seios mal se notam e os que gozam com a minha falta de anca e as gajas que me chamam morcegona e os professores que me ignoram porque como me chamo Aida fico sempre na primeira carteira que é que fica mais perto da porta e tenho sempre que ser eu a abrir a porta às auxiliares quando elas vêm trazer o giz ou o livro de ponto e as pessoas que passam por mim na rua e reparam e pensam como deve ser triste ser-se tão saliente e desengraçada e o rapaz de quem eu gosto em segredo e que só tem olhos para uma bimba ordinária e mamalhuda a esses todos eu só digo que…”
Nisto, vzzzzzzzzzzzzzt!

Moral 1: as aulas continuam a ter lugar em períodos de 50 minutos e o toque de saída é religiosamente respeitado.

Moral 2: não há cu que aguente uma depressão adolescente.

Arrotos do Porco:

I´m the gin in the gin-soaked boy.

Boa malha.

Mas até há umas pitas góticas que levavam umas pranchadas. Pimba! Isso é que interessa e mainada.





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