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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


terça-feira, maio 31, 2005

Microfábulas - XIV

Havia, certa vez, um idoso rezingão e maldisposto que passava a velhice dedicado à pouco nobre missão de tornar a vida dos que o cercavam tão desagradável como a sua. “Lá vai o cabrão dos maus fígados!”, diriam uns; “Lá vai o Chico Zé!”, diriam os mais educados. E ele lá ia, passando os dias na rua, escolhendo as horas de maior movimento para fazer aquilo que mais pessoas estivessem a fazer: ou na fila dos Correios para “cobrar o cheque da pensão”, ou na paragem do autocarro, ou nas Tesourarias da Fazenda Pública nos últimos dias de entrega das declarações do IRS. O seu faro apurado levava-o ao mais improvável dos ajuntamentos, quer tivesse ou não qualquer coisa para fazer ali. Como morava mesmo ao lado da estação dos Correios na Rua das Mercês, passava ali todos os dias para tomar o pulso ao ambiente. Se via pouca gente, ia-se embora com um seco bom dia. Se via muita, lá ficava na fila com o pretexto de telefonar para um sítio qualquer de onde nunca atendiam. O importante era estar na fila.
- O senhor não se esteja a chegar à frente que eu posso ser velho mas não sou parvo, ouviu? Estou aqui há mais de meia hora e o senhor pensa que chega aqui e é sempre a andar?! Olhe que toda a vida ouvi dizer: quem vem atrás molha no vinagre!
- Mas eu só ia pedir uma esferográfica!
- Pois pois! Com as calças do meu pai também eu era um homem! Vocês pensam que nos atiram areia para os olhos! Como são velhos é passar-lhes à frente!
Ainda que o visado se colocasse no seu lugar devido na fila ou saísse da estação, Chico Zé não parava:
- E esta cambada de velhas sonsas não é capaz de abrir a boca! Depois admiram-se de ser roubadas e mais não sei quê! Não se dão ao respeito, é o que é! Depois admiram-se! Eu é que me admiro como é que não se põem ali dois ou três meliantes à porta da estação… era como limpar o cu a meninos!
- Então mas não vê que está ali um polícia?
- Polícia?! Você chama àquilo polícia?! Era o primeiro a fugir se aparecesse algum gatuno! Ainda há pouco saiu dos cueiros e já lhe vestiram a farda! Aquilo é um verbo-de-encher que ali está! Mais valia pôr um espantalho que ao menos não come nem caga!
- Ó homem!, cale-se!
- A senhora não me manda calar, ouviu?! A mim ninguém me manda calar!! Isso era noutros tempos!... Tens pinta de retornada, deves andar habituada a mandar! Mas olha que eu não sou preto, ouviste?!
Tudo isto para desembocar no desabafo do costume, quando chegava a sua vez de ser atendido:
- Mas uma pessoa sai de casa para quê? Para ser ofendido?!

A bem da verdade, uma pessoa era o bastante para que Chico Zé desse largas ao seu entusiasmo. Tinha por hábito estacar de repente nos passeios mais movimentados – e se alguém lhe pedia licença para passar lá vinha o arrazoado do costume:
- Pois pois… o velho está a estorvar, não é?! Uma pessoa pára dois minutos para recuperar o fôlego e leva logo rodas de parvo! Olhe que se eu sou velho é por direito mas você é estúpida por natureza, ouviu?! Muito empertigadinha, não lhe cabe uma lentilha no cu, mas no que toca ao respeito está mais nua que uma cadela! Quando chegar à minha idade é que vão ser elas! Aí é que vai ver se também gosta que a empurrem do passeio!
- Mas eu não o empurrei! Eu só lhe pedi licença!
- E ainda é capaz de dizer que não me empurrou, a sirigaita! Já não me admira que elas ganhem mais que os homens, hoje em dia! Não têm vergonha nenhuma, nem para abrir a boca nem para abrir as pernas! Isto está bem entregue, não haja dúvida!... E não me venha para cá dizer que é você que paga a minha reforma, ouviu?! ‘Inda lhes acho graça com essa de nos pagarem as reformas, pffff! Só o interesse que eu dei ao país toda a vida paga a minha reforma e a de mais quinze como eu! Quinze!, ouviu?! Eu trabalhei nas obras da Exposição do Mundo Português ainda você andava nos colhões do seu pai!! E agora vem-me para aqui dizer que os velhos são uns chulos, é?! Vocês é que nos chulam a nós!! Anos e anos nas “aniversidades” a passear os livros para dizerem que são doutores! Doutores, pffff! Para mim, doutores só houve dois, ‘tá a ouvir?! Foi o Sousa Martins e o Salazar!!

Como vivia sozinho, Chico Zé aproveitava para amortizar o passe social passeando de autocarro nas horas de ponta, ocasião que permitia regularmente umas interessantes trocas de ideias:
- A um velho doente ninguém dá o lugar mas se fosse uma mulher prenha levantavam-se logo…
- Mas o que é que tem a ver…
- O QUE É QUE TEM A VER?!! Ahh ainda pergunta?! Se ‘tá prenha é porque fodeu! Agora aguente-se, hom’essa! Eu não escolhi ficar velho mas ela escolheu apanhar com ele na pássara, não foi?! E depois ‘inda se vêm queixar que lhes dói as costas ou o catano… Havia de ser eu a mandar nisto só que fossem quinze dias!... Levava cá uma volta!... Isto ficava mais direitinho, ficava!... … … olha-me para os preparos desta gente! Eu ainda sou do tempo em que quem pintava os lábios eram as putas!!! Mas as putas do meu tempo eram mais sérias que as mulheres de hoje em dia!!! … … … olha-me ali o raio do preto a tentar roçar-se na rapariguita! oh oh oh… então mas o que é isso?! Não te ensinaram maneiras lá na merda da tua terra?! Olha que o meu irmão matou muitos como tu lá na…
Nisto, vzzzzzzzzzt!

Moral 1: os avisos da Carris sobre a conveniência de os passageiros se segurarem bem quando viajam de pé são para ser levados a sério.

Moral 2: ainda não foi devidamente valorizada a importância do clima enquanto tema de conversa anódino e inócuo, preferível o mais das vezes a outras trocas de opiniões.

Arrotos do Porco:

Ai minha mãezinha Vareta!...que me urino todo! Lindo.


:D


(uma pequena gralha, é certo:
artigo definido o em vez de
preposição a ) ;)





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