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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


quarta-feira, março 02, 2005

Microfábulas – X

Havia, certa vez, um jovem magarefe que trabalhava num talho de Alcântara enquanto acalentava outros sonhos de um futuro mais risonho e menos sangrento como cantor ligeiro na linha de nomes grandes como Samuel, Clemente, António Calvário ou o falecido Tony de Matos. “Lá vai o Pica-Miolos!”, diriam uns; “Lá vai o Óscar!”, diriam os mais educados. Mas, mais do que ir, Óscar estava – o mais das vezes estava à porta do estabelecimento, com a bata branca salpicada de sangue, atirando aparas de carne aos rafeiros das redondezas. Esforçava-se por assobiar mas o lábio leporino (ainda que corrigido por cirurgia) dificultava-lhe a tarefa, saindo um som mais comparável a uma rajada de vento que a uma qualquer melodia. Alguns dos cães uivavam em resposta ao seu silvo pouco musical e certos transeuntes ficavam surpreendidos e divertidos ante aquela espécie de coro surrealista e atonal, com um regente ensanguentando e uns canídeos famélicos. “Tu havias era de ir p’ó circo, ou o caralho!”, dizia-lhe o dono do talho com ar chocarreiro e com a prosápia serôdia de quem quer diferenciar hierarquias porque sim.
Ao serão, Óscar ouvia um pouco da emissão de uma rádio local que passasse música portuguesa daquela que ele gostava e depois descia, quase todos os dias, as carunchosas escadas do prédio onde habitava para ir à “c’let’vidade” do seu bairro beber um bagacinho. Pela sua natureza gentil, Óscar era alvo fácil de alguns fulanos que precisam de reforçar a auto-confiança amesquinhando os outros: “ó magarefe!, limpa-me os túbaros!, eh eh eh!”. A Óscar pouco mais se ouvia que um tímido e sorridente “deixe-se lá disso, deixe-se lá disso”. Apesar daquele ambiente meio hostil, em que a virilidade se provava nos copos sujos, no volume da voz e na violência relatada – que nunca a praticada – o nosso Óscar lá descia as escadas uma e outra vez na esperança de que alguém lhe proporcionasse os momentos por que mais ansiava: “ali o homem do cutelo é que podia cantar uma modinha!”. E Óscar corava, corava muito, ficava com o pescoço escarlate, fincava os olhos no chão e cantava, com uma voz não muito bela mas robusta e segura. Nesses momentos, tudo parava no bar da colectividade: as cartas da bisca lambida ficavam suspensas no ar, as bolas de snooker deixavam de fazer barulho, os que jogavam aos dardos ficavam petrificados com a mão à frente da cara em perpétua pontaria e a vozearia dos bêbedos cessava de modo abrupto. Assim que Óscar parava de cantar tudo voltava ao normal mas como que num ritmo mais pausado e tranquilo.
Certa noite, tendo Óscar entoado o célebre “Meu amor, vamos conversar os dois” – esse clássico da lavra de Fernando Chaby e Paulo de Carvalho, imortalizado no final dos anos 70 por Adelaide Ferreira – tudo voltou mais uma vez ao normal… “qual é que é o trunfo que já m’esqueci ou o caralho”; “joga à 7 para o buraco do fundo, meu pedaço de asno!”; “por a minha saúde se não buí uma grade de mines sozinho!”; “queche ver echta cheta ali memo memo no chentro du alve?!”…
Nisto, vzzzzzzzt!

Moral 1: há uma notória incúria dos proprietários dos estabelecimentos que permitem que se joguem dardos em zonas de passagem. Essa incúria é maior ainda quando o grau de alcoolemia dos jogadores não é levado em consideração.

Moral 2: os aspirantes a cantores deverão ter cuidado na escolha de repertório, procurando – pelo menos! – a adequação ao género e evitando-se os escolhos de termos um mocetão a cantar versos como “sou tua amiga e sou companheira” ou “o meu nome ainda é Maria”…

Arrotos do Porco:

Gosto muito das microfábulas e da tua escrita toda e quandoéquetensnetemcasa porque também gostava que aparecesses mais. Porque sim.


Muito bem escrito, Vareta. Começa-se na primeira linha e não se consegue parar de ler, num fôlego, até que vzzzzzt!...Um autêntico filme italiano neo-realista... em Portugal.

Mas o dardo estava electrificado?



espectáculo

roubei o texto para mostrar a uns labregos 8)

também tenho saudades, mas perdoo-te desde que continues a postar :)*



Esta do snooker e das cantorias fez-me lembrar a outra noite dos "óscares" de alfama. Livra que ainda bem que não havia dardos!!! :)




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